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América Latina e Mundo

Nada será como antes: uma radiografia do 8 de Aborto na Argentina

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Por: Fernanda Paixão e Antônio Ferreira, do Coletivo Passarinho

 

 8 de Aborto

 Na madrugada da última quinta-feira, depois de mais de 17horas de pronunciamentos, o senado argentino vetou o projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez (IVA). A longa jornada de mobilização nas imediações do Congresso desde as primeiras horas do dia 8 de Aborto, ou “8A”, como se intitulou a data histórica, terminava com o rechaço decidido por 24 senadores e 14 senadoras. Nas ruas, o lado dos lenços azuis “pró-vida”, à direita do edifício do Congresso, não economizou fogos de artifício e cartazes alçados com os dizeres “Cristo venceu”. O lema “Que seja lei”, difundido nos últimos meses por toda Argentina junto com a maré verde pró-aborto legal, ao final da noite deu lugar com força ao “Será lei”. Talvez não hoje, mas amanhã, como ressaltaram em seus discursos senadores que votaram pelo “sim”, como Pino Solanas e a ex-presidenta Cristina Kirchner. O projeto, que já foi apresentado ao Congresso Nacional sete vezes, agora espera o início das sessões legislativas de 2019 para ser apresentado novamente.[1]

 

Na manhã seguinte, em contraste com um 8 de agosto coberto de chuva, abriu-se um dia estranhamente ensolarado. O aborto seguia na clandestinidade, deixando em jogo a vida, a saúde e a autonomia das mulheres de todo um país. Porém, aquela jornada épica de quase 2 milhões de pessoas que passaram todo o dia sob uma incessante chuva e sensação térmica de 2ºC, mostrou com clareza que alguma coisa estava fora da velha ordem. O país foi tomado pelos lenços verdes, símbolo da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Até o mais reacionário dos senadores antidireitos e pró-aborto clandestino pôde sentir que este rio que tudo arrasta não vai parar.

 

A maré verde

 

Tanto nesse 8A quanto na vigília daquele 13 de junho, quando o projeto foi aprovado pela câmara dos deputados, os arredores à esquerda do Congresso se transformaram em um espaço e contexto de sororidade, onde milhares de mulheres desconhecidas encontravam algo em comum, profundamente familiar. O microcosmos da avenida Callao, entre a avenida Corrientes e a rua Sarmiento, estava repleto de tendas de diversas organizações, como o Nenhuma a Menos, a Assembleia Popular Feminista (APF) e a Não Tão Diferentes, organização de mulheres em situação de rua.

 

O movimento de mulheres conseguiu enraizar socialmente o tema da legalização do aborto. Levou o assunto para a rua, escolas, hospitais e, sobretudo, para dentro das famílias. Furou o bloqueio da mídia hegemônica e conseguiu pautar o debate. Desmantelou a separação entre o público e o privado, que sempre se prestou para reforçar o machismo, politizando a sala de jantar. Fez irromper uma identidade feminista forte, descentralizada, que alimentou as ações cotidianas com alegria e energia desmedidas. Daí a pujança do 8A e a convicção desse verso tão cantado em coro feminino: “Abaixo o patriarcado, que vai cair, que vai cair”.

 

A luta pela legalização do aborto na Argentina é a ponta de um iceberg que tem por debaixo décadas de organização feminista. A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal foi gestada nos Encontros Nacionais de Mulheres de Rosário e Mendoza e lançada oficialmente em 28 de maio de 2005, no Dia Internacional de Ação pela Saúde das Mulheres. De lá pra cá, o movimento foi incansável no debate científico-universitário e nas discussões sobre políticas públicas para mulheres. Construiu um mote claro: “Educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrer”.

 

Assim, a questão do aborto legal entrou na agenda dos direitos humanos e da democracia, e foi incorporada por diversas outras organizações denominadas “socorristas”, que cumprem um importante papel de dar assistência a mulheres que desejam realizar um aborto, enquanto a lei não sai.

 

“O compartilhamento de experiências é necessário entre as mulheres que vivenciam uma gravidez indesejada. As equipes de saúde que prestam informações relevantes a quem opta por realizar um aborto são criminalizadas”, afirma Yamila, integrante da Assembleia Popular Feminista, destacando o papel do Protocolo ILE (Protocolo para a Atenção Integral das Pessoas com Direito a Interrupção Legal da Gravidez[2]), que foi base para determinar o reconhecimento do aborto por lei no Brasil: casos de estupro, risco de vida da mãe e anencefalia do feto.

 

Um novo cenário

 

A grande maré verde contou com a ocupação de escolas por estudantes secundaristas para exigir a aprovação do projeto, como ocorreu na Escola Superior de Educação Artística Rogelio Yrurtia, na cidade de Buenos Aires[3]. No colégio Católico Instituto Padre Márquez os alunos foram obrigados a colar cartazes “pró-vida” e a resposta foi uma chuva de lenços verdes. Professores encurralados ou encorajados pela audácia das jovens não tiveram como fugir do debate. O aborto teve que entrar na pauta escolar. Nas manifestações e diariamente nas ruas é comum ver meninas jovens com seu grupo de amigas, todas com os lenços – ou pañuelos – verdes, com argumentos muito claros sobre o que significa a legalização do aborto na sociedade.

 

A linguagem inclusiva também ganhou espaços antes inimagináveis. Cresceu nos coletivos militantes, em parte do jornalismo, especialmente o contra-hegemônico, e em círculos literários. Antes com o “x”, de “xs estudantxs”, e agora com o “e”, de “es menines”, desnuda como a linguagem corrente sedimentou em sua própria estrutura concepções patriarcais, heteronormativas e binárias. Para além dos binarismos, a nova linguagem busca transpor os gêneros.

 

Tudo isso não seria possível sem a força comunicativa da Campanha. Ao contrário do Brasil, a Argentina não possui um sistema de meios de comunicação tão concentrado e unidimensional. Seja pela sua tradição mais igualitária e democrática ou por avanços da lei de meios de comunicação durante o período kirchnerista, há algum espaço para o dissenso. Exemplo disso é o Página 12, jornal impresso diário com perfil de esquerda; a C5N, uma rede de televisão privada claramente contrária ao governo Macri, e diversas redes de rádios com perfil crítico. Mesmo nos canais televisivos do establishment existe uma tradição de debate aberto entre diversas correntes de pensamento. Tudo isso somado a uma pujante rede de meios de comunicação alternativos e à difusão do movimento pelas redes sociais permitiu que a questão ganhasse corpo, transformando-se em um debate público de massas.

 

Mulheres contra os direitos das mulheres

 

Com maioria de votos contrários do bloco Cambiemos, do atual governo, a lei foi rejeitada com 38 votos negativos contra 31 a favor. Como se poderia prever, as mulheres não são maioria na mesa. Contudo, o corpo do Senado argentino atualmente é conformado por 30 mulheres e 40 homens, uma relação bastante equilibrada considerando que a presença de mulheres nas cadeiras altas no âmbito político normalmente representa uma porcentagem ínfima em comparação aos homens. Enquanto na Argentina a presença de mulheres representa 41,7% do Senado, no Brasil são 14,8%.[4] A Argentina é um dos poucos países da América Latina que contempla em maior número mulheres na política, inclusive na presidência do parlamento – neste caso, quem coloca a Argentina nesse posto é a vice-presidente Gabriela Michetti, confessamente contrária à lei do aborto. Durante os meses prévios à sessão que iria presidir, Michetti arriscou manobras para atrasar a votação do projeto e soltou frases polêmicas sobre a questão do aborto mesmo em casos de estupro: “Você pode dar depois em adoção depois e fica tudo bem. Há dramas maiores na vida”.

 

O 8A foi marcado pela prevalência final das cadeiras representadas em vermelho nos telões que transmitiam a sessão para a multidão do lado de fora, e o voto feminino no Senado se dividiu: de 28 mulheres votantes,14 optaram pelo “sim” e 14 pelo “não”. As duas senadoras que se abstiveram foram Eugenia Caltafamo, do partido Unidad Justicialista, do estado de San Luis, que não se apresentou por estar de licença-maternidade; e a senadora Lucila Crexell, do Movimiento Popular Neuquino, de Neuquén, que mesmo presente pediu abstenção. Ela buscava a aprovação de um projeto intermediário que contemplasse a despenalização, mas não a legalização da prática.

 

A maioria das que vetaram o projeto sustentava “argumentos” pouco fundamentados sobre o início da vida e sobre o conceito de maternidade. Entre afirmações como “não li o projeto de lei”, proferida pela senadora Cristina López Valverde, de San Juan, do partido Frente Todos, e que “uma mulher que está em uma gravidez não desejada precisa de alternativas que não ponham em risco a vida de seu filho”, da senadora de Tucumán Silvia Elías de Pérez, da Unión Cívica Radical, a postura em negativa de senadoras mulheres foi decisiva para o resultado no Senado. Com justificativas tão vazias quanto contraditórias, seus discursos só parecem levemente menos absurdos do que os de senadores homens que acreditam poder opinar sobre a gravidez e até sobre o que representa um estupro para uma mulher. Em um momento inacreditável da sessão, o senador de Salta, Rodolfo Urtubey, do partido Justicialista, deixou uma multidão chocada com sua exposição: “O estupro nem sempre representa uma violência contra a mulher. Por exemplo, nos casos de abuso intrafamiliar. Não é o estupro clássico”. Já se espalham petições denunciando o senador por apologia ao estupro.

 

 

Macrismo polivalente

 

Nem tudo são flores neste processo de ascendência do movimento feminista e de discussão sobre o aborto legal. A situação se complexifica quando se verifica que o próprio presidente Maurício Macri foi quem habilitou o debate no Congresso Nacional em seu discurso de abertura das sessões legislativas deste ano. Por ironia do destino, um projeto cujo debate legislativo foi barrado durante os mais de 10 anos de kirchnerismo foi disparado por um governo neoliberal do tipo Robin Hood às avessas, que promove um ajuste brutal sobre o povo argentino e inicia mais um ciclo de dependência descarada, com a predominância dos interesses do setor financeiro e agro-exportador.

 

Independentemente dos objetivos íntimos do presidente (promover uma cortina de fumaça para a crise brutal pela qual passa Argentina; buscar aproximação com um setor das classes médias liberais e progressistas ou contribuir para um feito histórico equiparável ao que significou a aprovação do casamento igualitário durante o governo de Cristina), o fato concreto é que a discussão legislativa do projeto deu vazão a um processo que já deixou marcas irreversíveis na sociedade argentina. Essas marcas ultrapassam ainda os limites do país hermano, em uma repercussão expansiva de uma campanha pela legalização do aborto por toda a América Latina, que se faz notar especialmente pelo fato de que a Argentina sequer é o primeiro país a levantar o assunto: o Uruguai mesmo, ali ao lado, conquistou a aprovação da lei em 2012.

 

Macri, com seu pragmatismo neoliberal, fez questão de deixar claro que individualmente era contra a legalização do aborto. Agora, juntamente com alguns de seus correligionários do Cambiemos, busca eximir-se de responsabilidade, afastando-se dos resultados da votação. Tenta ocultar que dos 25 senadores que compõem o bloco Cambiemos, 17 votaram contra o projeto. Entretanto, a forma cínica e burlesca como Gabriela Michetti conduziu os trabalhos legislativos, insultando senadores pró-legalização e comemorando a rejeição do projeto, dá conta de como sob o macrismo, o liberalismo e o medievalismo da Opus Dei convivem em harmonia.

 

Reação e contrarreação

 

O deputado da esquerda trotskista Nicolas Del Caño, quando da sessão que aprovou a legalização na Câmara dos Deputados disse que “em um Senado dominado diretamente por governadores feudais do Partido Justicialista, do Cambiemos e de partidos provinciais, não seria fácil a sanção da lei”. E realmente, após a aprovação parcial do projeto na Câmara, a reação foi imediata. Luciana Rosende e Werner Pertot, em minucioso artigo sobre o tema,[5] contam como se deu essa reviravolta. Segundo as autoras, “a partir de 13 de junho os setores antidireitos redobraram a aposta. A Igreja assumiu uma posição beligerante, as ONGs religiosas ativaram seus contatos nos meios de comunicação, aumentaram sua pressão sobre o governo e sobre o bloco de oposição. E começaram a ser vistos mais lenços azuis com o lema ‘Salvemos as duas vidas’”. A concertação entre o conservadorismo das elites provinciais, as ações performáticas do grupos pró-vida e a intelligentsia dos quadros médicos e de juristas da Universidade Católica e Universidade Austral, esta última da Opus Dei, foram imprescindíveis para garantir o “não” no Senado.

 

Entretanto, a derrota da legalização do aborto abriu o caminho para outro debate. Colocou na ordem do dia a discussão sobre a laicidade do estado – diferente do Brasil, a Argentina não é um Estado Laico. Junto aos lenços verdes surgiram os lenços laranjas da Campanha Nacional pelo Estado Laico, que diz: “Igreja e Estado Assuntos Separados”. Veio à tona a questão do financiamento estatal da Igreja Católica e do pagamento dos salários dos bispos por parte do Estado, ancorados em leis editadas durante a ditadura militar Argentina, por Rafael Videla.[6] Nora Cortiñas, uma das mães da Praça de Maio, disse sem meias palavras que “durante a ditadura a Igreja não se importava com as duas vidas, davam choques elétricos na vagina de mulheres grávidas e a Igreja abençoava o voos da morte”[7].

 

Na linha discursiva dos que votaram pelo “não”, principalmente entre os senadores homens, há uma perda do que chamam de “paz social”. Ter mulheres nas ruas pedindo por seus direitos balança as estruturas, provocando receio . Sempre foi assim – um dos grandes “argumentos” contra o sufrágio feminino era que seria muito trabalhoso “ensinar às mulheres a importância do voto”, um eufemismo risível que deixa exposto em carne viva o medo da perda de controle. É que na ação coletiva as mulheres retiram o patriarcado da sua posição naturalizada e de perigosa invisibilidade. De repente, o poder masculino aparece como violência e força bruta. E certamente não é agradável tomar consciência da sua própria condição de opressor.

 

Octavio Salazar, professor de Direito Constitucional da Universidade de Córdoba e autor do livro El hombre que (no) deberíamos ser, fala que“nós, homens, temos medo do feminismo porque nos revela coisas de nós mesmos que não gostamos de conhecer”[8]. Talvez o grande medo que inspira a reação machista é que as mulheres empoderadas venham a fazer com os homens o que eles sempre fizeram sob a benção do patriarcado.

 

Não se pode parar o vento

 

A onda verde se espalhou pela América Latina. A pauta está instalada com uma força nunca antes vista e a mensagem é clara: a campanha continua. Os lenços verdes chegaram a diversos países e vêm se espalhando pelo Brasil, onde o tema já está instalado no Supremo Tribunal Federal, apesar da imprevisibilidade do resultado do julgamento. As últimas audiências dos dias 3 e 6 de agosto, presididas pela ministra Rosa Weber, já são vistas como um grande passo.

 

Dois dias depois da rejeição da lei, a campanha oficial publicou uma mensagem exaltando a conquista inédita e histórica de colocar em pauta a problemática das mulheres e de se fazer ouvir as vozes feministas. Enfatizou a importância de não votar nos políticos que se abstiveram ou foram contrários ao direito das mulheres a decidir. A campanha convocou aos chamados “pañuelazos” – manifestações em que todas levantam seus lenços verdes em um símbolo coletivo de demanda por uma lei do aborto seguro e gratuito –, na América Latina e no mundo; e também a que todas estejam presentes no Encontro Nacional de Mulheres, a acontecer este ano na província de Chubut, no sul do país.

 

Ao reforçar a necessidade de um Estado laico, o comunicado joga luz sobre um assunto profundamente necessário, reforçando a importância dessa campanha, representada pelos lenços laranjas. Talvez mais ainda no Brasil, onde religião e política andam cada vez mais juntas. O grito vem das ruas, e como bem se anda dizendo entre os grupos feministas nesses últimos dias: nunca nada nos foi dado de mão beijada.


 

[1] Ver http://www.abortolegal.com.ar/about/

[2] Ver http://www.msal.gob.ar/images/stories/bes/graficos/0000000875cnt-protocolo_ile_octubre%202016.pdf

[3] Ver http://www.resumenlatinoamericano.org/2018/06/08/argentina-tomas-en-colegios-para-exigir-la-ley-del-aborto-legal-seguro-y-gratuito/

[4] Pesquisa ONU Mulheres na Política 2017: https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/mapa-mulheres-na-politica-2017

[5] ver http://www.revistaanfibia.com/cronica/quienes-llevan-los-panuelos-celestes/

[6] Ver https://www.change.org/p/honorable-c%C3%A1mara-de-diputados-de-la-naci%C3%B3n-derogaci%C3%B3n-privilegios-de-la-iglesia-cat%C3%B3lica-estadolaicoya?utm_source=embedded_petition_view

[7] Ver https://www.minutouno.com/notas/3083443-norita-cortinas-y-el-aborto-me-volvi-feminista-la-ley-tiene-que-salir

[8] Ver entrevista com Octavio Salazar em http://www.elmundo.es/papel/historias/2018/03/03/5a998333e5fdea53558b45b1.html

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América Latina e Mundo

Chilenos enterram a Constituição de Pinochet e começam um inédito (e incerto) processo Constituinte

Carta Magna produzida em 1980 era a base do modelo neoliberal chileno, que destruiu a Saúde, a Educação e a Previdência públicas

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Estátua equestre do general Manuel Baquedano, que liderou expedições contra os indígenas do sul, pintada de vermelho - Bárbara Carvajal (@barvajal)

A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.

Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.

Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes. 

A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.

Nova Constituição: chance de o Chile renascer - @delight_lab_oficial
Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial

A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.  

“Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.

Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.  

O novo ciclo

A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.

O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.

Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.

A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.

Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.

Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.

O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes - Bárbara Carvajal (@barvajal)
O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)

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Chile

Chilenos se preparam para um plebiscito histórico sobre manter ou dar adeus à “Constituição do Pinochet”

Chilenos estão ansiosos para o plebiscito, adiado desde abril por conta da pandemia

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Era uma demanda colocada por alguns setores da sociedade chilena há anos, mas foram os protestos de 2019 os que voltaram exigir a derrubada da Constituição de 1981, imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, no domingo 25 de outubro, mais de 14 milhões de chilenos acudirão às urnas em um plebiscito histórico que decidirá se o país “aceita” (aprueba) ou “rejeita” (rechaza) uma nova Carta Magna. A votação foi pensada como um caminho político para aplacar a crise social que o Chile enfrenta.

Por: Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

Os ânimos estão à flor da pele. Nos muros, nas redes sociais, na mídia praticamente não se fala de outra coisa. Não é para menos, já que o plebiscito, inicialmente marcado para o dia 26 de abril, foi atrasado pelo governo devido à pandemia. Além disso, acontecerá somente uma semana depois do primeiro aniversário do chamado “estallido social”, iniciado em 18 de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais igualitário. Mas a sociedade chilena -como tantas outras na América Latina e no mundo- está profundamente polarizada e, apesar de as pesquisas dizerem que a maioria votará pelo “aceita”, nada está definido.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Por um lado, o “apruebo” reúne intenções diversas, que vão desde exigir uma mudança no modelo neoliberal chileno até entregar mais direitos às mulheres, aos índios e às diversidades sexuais.

Alejandra Saez, uma trabalhadora independente, me disse que vai aprovar porque “se necessita uma mudança imediata, apesar de que o resultado chegue com o tempo, tomar a decisão de transformar o sistema já é um grande avanço”. “Quero que as novas regras validem o bem-estar das pessoas e não os cofres dos outros. Que não nos sintamos atacados pelo sistema”, afirmou.

Já o bioquímico Francisco Pereira me explicou que votará “apruebo” porque considera que é necessária uma “mudança drástica na atual Constituição, já que apesar de que outorga direito a serviços básicos, em nenhum momento garante o acesso a esses serviços, deixando muitos recursos principalmente nas mãos do mundo privado. Além disso, foi escrita para um contexto de desenvolvimento de país determinado muito diferente do atual, e é bastante rígida, o que dificulta que ela seja adaptada às atuais necessidades do Chile”.

Nas campanhas eleitorais, também é possível ver que muitos dos que pedem uma nova Constituição querem reformar as instituições encarregadas da segurança pública, já que, em 2019, pelo menos 30 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e o Chile foi cenário de graves violações aos direitos humanos no marco dos protestos sociais, segundo Human Rights Watch, a ONU, entre outros. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 460 pessoas sofreram lesões oculares durante as manifestações devido ao uso excessivo da força policial. Delas, pelo menos duas ficaram completamente cegas.

Por outro lado, Natalia C. (que pediu não ser identificada) aposta pelo “rechazo” porque considera que “não há necessidade de escrever uma nova Constituição inteira para realizar as reformas que o país precisa”. Nas redes sociais, as pessoas que chamam a votar por essa alternativa também dizem temer que o Chile se transforme em um país “caótico” e/ou “esquerdista”.

Além disso, muitos sinalizam que votar “apruebo” seria dar um aval à destruição de patrimônio que ocorreu no marco das mobilizações sociais. É que o metrô de Santiago, várias igrejas, ruas e estátuas foram parcialmente destruídos e/ou incendiados desde outubro de 2019, mas não há informação detalhada disponível sobre quem foram os responsáveis de cada um desses atos.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Muitos ainda estão indecisos. O microempresário Javier Baltra comentou que achava melhor votar nulo porque “ambas as opções estão cheias de problemas. Aprovar pode ser sinônimo de um Estado maior, e eu acho isso problemático para a economia. E rejeitar é deixar tudo como está até agora e não sei se isso é uma boa ideia”.

Além de escolher entre as opções “apruebo” ou “rechazo” uma nova Constituição, os chilenos devem votar se desejam que a eventual Carta Magna seja escrita por uma Convenção Constitucional formada por 155 constituintes eleitos ou por uma Convenção Mista de 172 membros (metade legisladores e metade cidadãos eleitos).


A LEI ATUAL


Qualquer pessoa que não conheça a história do Chile provavelmente se surpreenderá ao saber que um país como este tenha ainda uma Constituição que foi escrita na época da ditadura militar. “Nossa, mas é um país tão desenvolvido”; “como assim?”; “sério?” foram alguns dos comentários que recebi de amigos brasileiros quando contei sobre o que está acontecendo agora.


A Constituição atual foi aprovada em um questionado plebiscito realizado no dia 11 de setembro de 1980, em plena ditadura do Pinochet, quando milhões de chilenos viviam sob o medo da repressão, sem registros eleitorais e com os partidos políticos dissolvidos.
O texto foi escrito pelo advogado constitucionalista Jaime Guzmán, um dos maiores ideólogos da direita chilena, e que foi assassinado por um comando de ultraesquerda em 1991.

Ele foi escolhido por uma comissão designada pela ditadura. Posteriormente, a redação contou com a revisão e o apoio do Conselho de Estado e a Junta Militar, composta pelos máximos chefes do Exército e o diretor da polícia, que exercia como “poder legislativo”. Guzmán criou uma série de regras muito difíceis de alterar para perpetuar seu modelo econômico e político.

Como ele mesmo disse quando escrevia a Constituição, sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, eles se veriam “obrigados a seguir uma ação não tão distinta ao que alguém como nós gostaria (…) que a margem seja suficientemente reduzida para fazer extremamente difícil o contrário”.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Para realizar reformas à Carta Magna, Guzmán detalhou que é necessário alcançar um quórum de dois terços ou três quintos, segundo o caso, algo que, na prática, tem sido praticamente impossível de conseguir, porque nem o oficialismo nem a oposição conta com essa quantidade de votos.

Essa Constituição também instaurou um modelo econômico, político e social neoliberal, que se adentrou na educação e na saúde privada e um sistema de aposentadoria conhecido como AFP baseado na poupança individual e que no ano passado entregou aposentadorias pelo valor de 110.000 pesos chilenos (uns US$ 140). Esse sistema, hoje sumamente questionado pela população chilena, foi elogiado pelo Ministro de Economia do Brasil, Paulo Guedes, em várias ocasiões.

Se bem que o texto legal não estabeleça especificamente que a saúde, a educação ou o sistema de aposentadoria devam ser privados, na prática, sim, impõe princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nesses setores. Por exemplo: não existe no Chile nenhuma universidade que seja gratuita.

Segundo analistas, a Constituição atual também é hierárquica e desconecta a cidadania do poder político, porque não inclui muitos mecanismos de participação.

Ao longo da sua história, sofreu duas modificações: a primeira, em 1989, ano do fim da ditadura, quando foi derrogado um artigo que declarava “ilícitos” a grupos que realizassem “violência ou uma concepção da sociedade do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundada na luta de classes”. Outra, em 2005, quando depois de um grande acordo político o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu alterar outros aspectos, como que os comandantes em chefe das Forças Armadas passassem a estar subordinados ao poder civil, e a eliminação de senadores designados e vitalícios. Isto permitiu que em 2006 (há 14 anos!) o Senado fosse totalmente conformado por membros de eleição popular.

Agora, se a opção “apruebo” ganhar o plebiscito, o texto não só será modificado: a sociedade poderá dar adeus à chamada “Constituição do Pinochet”. Sem dúvidas, uma decisão histórica.

Veja também: Chileno preso no RIR: desembargador reconhece ilegalidade da prisão

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Bolívia

Veja a tradução da declaração de Evo Morales

Declaração de Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, dada em 18 de outubro, dia da eleição presidencial após o golpe.

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DECLARAÇÃO DE IMPRENSA DO EX-PRESIDENTE EVO MORALES
Buenos Aires, 18 de outubro de 2020

  1. Desde a cidade de Buenos Aires, neste dia histórico, domingo, acompanho nosso povo em seu compromisso com a pátria, com nossa democracia e com o futuro de nossa amada Bolívia, de exercer seu direito ao voto em meio aos acontecimentos em nosso País.
  2. Saúdo o espírito democrático e pacífico com que se desenvolve a votação.
  3. Diante de tantos rumores sobre o que vou fazer, venho declarar que a prioridade é exclusivamente a recuperação da democracia.
  4. Quero pedir a vocês que não caiam em nenhum tipo de provocação. A grande lição que nunca devemos esquecer é que violência só gera violência e que com ela todos perdemos.
  5. Por este motivo, conclamo as Forças Armadas e a Polícia a cumprirem fielmente o seu importante papel constitucional.
  6. Diante da decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de suspender o sistema DIREPRE (Divulgação de Resultados Preliminares) para ir diretamente para a apuração oficial, informo que, felizmente, o MAS possui seu próprio sistema de controle eleitoral e que nossos delegados em cada mesa irão monitorar e registrar cada ato eleitoral.
  7. O povo também nos acompanhará nesta tarefa de compromisso com a democracia, como o fez tantas vezes, situação pela qual somos gratos.
  8. É muito importante que todas e todos os bolivianos e partidos políticos esperemos com calma para que cada um dos votos, tanto das cidades como das zonas rurais, seja levado em conta e que o resultado das eleições seja respeitado por todos.
  9. Neste domingo, no campo, nas cidades, no altiplano, nos vales, nas planícies, na Amazônia e no Chaco; em cada canto de nossa amada Bolívia e de diversos países estrangeiros, cada família e cada pessoa participará com alegria e tranquilidade na recuperação da democracia.
  10. É no futuro que todos os bolivianos, inclusive eu, nos dedicaremos à tarefa principal de consolidar a democracia, a paz e a reconstrução econômica na Bolívia.
    Viva a Bolívia!
    Evo Morales

Tradução: Ricardo Gozzi /Jornalistas Livres

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