A queda de Queiroz ou como derrotar o Bolsonarismo?
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ARTIGO
Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana*
A cidade de Atibaia está novamente no centro dos escândalos da República. Um ano e meio depois a pergunta foi respondida: onde está o Queiroz? Será que agora responderemos a uma outra: quem mandou matar Marielle? A queda de Queiroz é simbólica e real. Ele estava sendo protegido por pessoas que frequentam o salão do Palácio do Planalto. Mas, do ponto de vista simbólico ela representa uma esperança para pensarmos sobre a seguinte questão: como derrotar o bolsonarismo?
Pesquisa divulgada essa semana, pelo Instituto Democracia e pelo jornal Valor, coordenada, entre outros, pelo cientista político Leonardo Avritzer, aponta que diminuiu o apoio às ideias golpistas. Ainda assim, o número de apoiadores ao atual governo e a uma possível intervenção militar chama a atenção. Das pessoas entrevistadas, 29% acham que um golpe militar se justificaria em caso de muita corrupção.
A boa notícia é que quase metade dos eleitores de Bolsonaro não avalia o governo como ótimo e bom.
Um dos aspectos que merece destaque, mencionado por Avritzer, é o fato de que 94% dos que apoiam o governo não confiam na Rede Globo. Acreditamos que esse número não seria muito diferente se a pergunta fosse em relação à Folha de São Paulo. Tomando a Globo como uma metáfora da grande imprensa, isto é, da curadoria jornalística de empresas familiares e com interesses do grande capital, devemos nos perguntar: em quais veículos de comunicação os apoiadores do governo confiam? Seria apenas nos canais de rádios e pastores que apoiam Bolsonaro e receberam mais de 30 milhões de reais em repasses? É certo que no ambiente de TV aberta canais como Record, SBT e RedeTV têm funcionado, em maior ou menor grau, como vitrines governistas.
Essas vitrines não agem apenas omitindo ou distorcendo a realidade para reforçar as narrativas que interessam ao governo. De modo mais grave, esses canais promovem valores antidemocráticos em uma variedade de programas que misturam notícias, marketing e entretenimento atualista sem qualquer responsabilidade pela qualidade jornalística das informações. Do programa do Ratinho, no SBT, ao de Sikera Jr., na RedeTV, os setores populares são entretidos por uma teia formada por violência, preconceito, exploração religiosa e mentiras. A recente aprovação pelo Congresso Nacional para que esses canais possam novamente promover jogatinas disfarçadas de sorteios é a cereja do bolo.
Considerando que para cerca de 25% a 35% da população brasileira a produção de realidades paralelas, isto é, de fake news, é a principal fonte de notícias, podemos afirmar que uma significativa parcela da sociedade constrói suas opiniões e toma decisões fundadas em desinformação.
Essas notícias simuladas são replicantes, no sentido de que uma vez liberadas na websfera sua disseminação é descontrolada. Promovidas em diversas frentes, desde as mídias tradicionais até as diversas plataformas da Internet que democratizaram e tornaram imersivas a produção e distribuição da desinformação em tempo real e sem interrupções, as notícias simuladas e replicantes acabam por tornar muito caro e ineficaz a sua eliminação. Claro que tudo isso ocorre por nossa incapacidade coletiva em criar barreiras institucionais à sua disseminação, ao contrário, socialmente não paramos de premiar e remunerar seus veículos.
Assim, as chamadas fake news são muito mais do que mentiras ou simulações pontuais. Ao contrário, elas são a produção de todo um pacote, um ambiente, um sistema alternativo, onde você pode viver. É o ambiente da desinformação. Um lugar e uma comunidade onde as coisas são simuladas sem compromisso com o regime de verdade que é a base das democracias modernas, desde sua invenção no século XVIII.
Afinal, uma característica da fake é que ela é uma mentira que funciona, simulando, confundindo e substituindo a notícia real e seus contextos. Ainda que o termo desinformação seja mais preciso, é a ideia de fake news que hoje é partilhada e vivida por todos e todas. É a ideia que exprime um dos nossos dramas. E como superá-lo? O que fazer frente esse dado de nossa realidade, isto é, as fake news? Associado a isso, como derrotar esse projeto de barbárie baseado em fake news?
Em nossas reflexões, temos chamado a atenção para o necessário reconhecimento da força do bolsonarismo como fenômeno político e social no Brasil contemporâneo. E, por isso mesmo, precisamos nos perguntar também como derrotá-lo.
A resposta passa pelo fortalecimento dos democratas que vivem em nosso país nas suas mais diversas matizes ideológicas, em especial, no centro, na centro-esquerda e na esquerda brasileira. Em outras palavras: como fortalecer a esquerda, a centro-esquerda e o centro, bem como as frentes amplas que vêm se formando?
Como ponto de partida achamos que isso deve ser feito a partir do que disse essa semana a jornalista Tereza Cruvinel, quando afirma que não é o momento de julgarmos o papel do judiciário e do STF em sua conivência, para dizer o mínimo, com o lava-jatismo e com o Golpe de 2016: “Se formos acertar contas pelo retrovisor, deixando que trucidem o Judiciário, seremos levados todos juntos pelo vagalhão autoritário”.
O pacto que forjou a permanência da Lei da Anistia mostra o quão perigoso pode ser essa perspectiva. Mas, em momentos de emergência, é preciso acordos amplos e provisórios. No entanto, eles não podem apagar e silenciar o passado, mas ser possibilidade de construir outros futuros, repensando, inclusive, o modelo de conciliação que fracassou. Precisamos assumir a responsabilidade de viver em um tempo verdadeiramente paradoxal e agitado, isto é, atualista. Porém, sem um mínimo comum será muito difícil construirmos uma um país mais justo.
E como fazer isso? Uma possibilidade passa por formas concretas de equilibrar a assimetria de forças que hoje existe entre a máquina de comunicação bolsonarista e as estruturas competitivas, organizadas por forças partidárias, movimentos sociais e setores da mídia tradicional.
Esse equilíbrio de forças, na luta pela comunicação, passa por, pelo menos, duas frentes de luta. A primeira é um esforço de compreender e combater as formas e estratégias ilegais, mobilizadas pela máquina bolsonarista, ou seja, a sua identificação, punição e regulação.
Nessa frente é preciso cobrar, expor e combater tanto as empresas que se beneficiam da máquina de fake news, quanto os diversos sujeitos políticos e sociais que usam do poder econômico para movimentar essa máquina e esses recursos. O STF não vai fazer tudo. Ele por si só é incapaz de defender a nossa democracia. Precisamos discutir e tornar essa luta um programa de ação com reivindicações concretas e bem definidas.
Por exemplo, as grandes empresas precisam ser reguladas na forma como usam suas verbas de publicidade para promover ideologias e visões políticas particulares. Assim como fazemos um esforço legal permanente para controlar o abuso do poder econômico nas eleições, precisamos pensar em formas concretas de regulá-lo também na guerra cultural permanente que vivemos.
Nessa frente de combate temos muito a aprender com o ativismo digital, renovado a partir de uma agenda progressista que denuncie e combata empresas e empresários. Isso, além de cobrar das autoridades constituídas a criação e a execução de leis que regulamentem esses abusos.
Como segunda frente, é preciso admitir que os setores emancipatórios ainda não conseguiram se apropriar das ferramentas legítimas e legais, abertas por esse momento de avanço tecnológico nas formas de comunicação.
É preciso reconhecer, em primeiro lugar, que tanto os partidos políticos quanto as associações da sociedade civil, no campo emancipatório, ainda não foram capazes de se apropriar integralmente das novas ferramentas de comunicação digital. Portanto, é urgente compreender as causas que levam a essa dificuldade, mas, antes disso, reconhecê-la.
Em outras palavras, não é só atribuir o sucesso e/ou certa estabilidade do bolsonarismo apenas à manipulação das fakes news e ao uso de robôs. É preciso reconhecer que houve um intenso trabalho de formação de um exército de ativistas digitais, assim como o engajamento de pessoas comuns que se politizaram a partir dessa nova forma de fazer política controlada pelo bolsonarismo. Essa formação articulou de modo eficiente espaços sociais analógicos e digitais, desde a loja maçônica das pequenas cidades até os grupos de WhatsApp organizados com disciplina e tecnologia.
Tudo isso está intimamente articulado com as atuais transformações do capitalismo contemporâneo, em especial, com as transformações do mundo do trabalho que vem produzindo centenas de trabalhadores informais (precariado?) e desempregados. Partes desses órfãos vivem às margens do Estado e da proteção social. Alguns, inclusive, consideram-se empreendedores. Como afirma Guy Standing: “No modelo neoliberal, o desemprego tornou-se uma questão de responsabilidade individual, tornando-o quase “voluntário”. As pessoas passaram a ser consideradas como mais ou menos “empregáveis” e a resposta foi torná-las mais aptas para o trabalho, atualizando suas “habilidades” ou reformando seus “hábitos” e “atitudes””.
Incorporar parte dessas pessoas ao campo progressista é um desafio necessário. Nessa direção, num terceiro plano de possibilidades o campo emancipatório precisa construir pontes, assumindo de antemão seu compromisso antirracista e antipatriarcal, entre as diversas agendas e demandas que atendem à política da diversidade, em torno de uma efetiva agenda para a maioria, o que deve passar pelo necessário viés interseccional, ou seja, considerar as dimensões de classe, raça e gênero que estruturam as opressões. Hoje, em grande medida, é a direita e a extrema-direita que monopolizam o discurso da maioria. São elas que se colocam como representantes da voz da maioria do povo brasileiro.
Ao lado disso, é preciso rever a relação do campo progressista com a nação, com os símbolos nacionais e com a história nacional, o que pode implicar na proposição de uma agenda positiva em relação à nação, no sentido de se criar novos heróis, heroínas e símbolos, por exemplo. Em outras palavras, precisamos de novas formas de celebrar a nossa história comum. Do contrário, a direita e a extrema direita continuarão a monopolizar os símbolos de solidariedade, como vêm fazendo com a camisa da seleção brasileira, e ao construir suas histórias paralelas.
Ainda no plano regulatório, mesmo que reconhecendo as dificuldades políticas da sua execução, é preciso, também, enfrentar o problema do abuso de poder por parte dos conglomerados de mídia, de grandes grupos corporativos e empresariais, e das corporações religiosas, que hoje exercem, no Brasil, um poder econômico, político e cultural com regulação fraca e obsoleta. Por outro lado, é preciso algum tipo de aliança com parte desses setores com vistas à produção de um país menos desigual e combativo em relação à produção viral de realidades paralelas.
Sem renovar e atualizar as regras do jogo político, para restaurar algum tipo de equilíbrio e paridade de forças, essas corporações, nacionais e internacionais, continuarão no seu trabalho de destruição das estruturas do Estado liberal, já que o Estado tornou-se o grande adversário para a continuidade de seu projeto de acúmulo de poder corporativo. Sem nenhum tipo de recomposição de forças esses setores continuarão a enfraquecer e a saquear a riqueza coletiva acumulada, ao longo dos séculos, nos estados nacionais.
De algum modo, o campo progressista, os grandes conglomerados de comunicação e o Judiciário e parte do Legislativo têm, agora, um inimigo comum: as fake news. Não sem razão, muitos têm celebrado algumas edições do Jornal Nacional.
Não custa retomar: o sucesso das fake news se explica, em grande parte, por elas serem um substituto funcional da verdade. Um substituto funcional que imita a verdade, imita seus efeitos e pode ser usado como plataforma para avançar agendas que distorcem o interesse coletivo. As fake news funcionam, isto é, entregam para as pessoas aquilo que geralmente elas esperam de uma informação verdadeira. Ao mesmo tempo, grupos de interesse trabalham nas suas sombras para avançar agendas particulares. Certamente a turma de Paulo Guedes não toma decisões baseadas na guerra cultural do bolsonarismo, mas a utiliza como agitação e distração, como bem ficou demonstrado pelo amplo apoio popular à última reforma da previdência.
Portanto, sem abdicar da necessidade de uma política de segmentação e atendimento de direitos de vários grupos sociais, o campo emancipatório precisa reunir essas demandas em uma nova forma de representar, falar e formar maiorias, o que inclui, também, nesse momento, em construir acordos provisórias com certos setores dominantes e parte da classe média que havia abandonado a agenda progressista. Também envolve ter um programa de ação que atenda às novas configurações de classe, ao precariado, ao pequeno empresário, ao trabalhador precarizado, que pode ser branco ou negro, que hoje tem sido capturado pelo populismo de direita para pautas regressivas. Esse alargamento da agenda é uma das formas de dar consequência à demanda interseccional.
Sem algum tipo de aliança, dada a urgência do momento que vivemos, o combate ao universo paralelo do bolsonarismo ficará sempre fragilizado. E ele se atualiza a todo instante. Nós somos os obsoletos nessa guerra de trincheira digital. Nessa direção, é preciso reconstruir, no discurso e na prática política, o lugar do Estado e das políticas públicas, em nome de projetos de futuro que superem e atendam as demandas sociais concretas que hoje se multiplicam.
Esperamos que a simbólica prisão de Fabrício Queiroz nos motive a enfrentar o positivo e necessário processo de repactuação para que a vida democrática, assentada nos valores da Constituição de 1988, permaneçam vivos e atualizados.
(*) Autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem.
Esse artigo contou com a colaboração de Mayra Marques, doutoranda em História pela UFOP
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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
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5 anos atrásem
07/11/20
O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac
Por Dirce Waltrick do Amarante*
Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.
Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.
Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.
Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.
Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.
*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina
O show de Trump: renovação ou cancelamento?
A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista
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5 anos atrásem
06/11/20por
Aloisio Morais
Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.
Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG
A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.
Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.
A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.
São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.
Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário.
Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.
Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.
O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.
O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.
Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].
Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.
Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.
A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.
Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.
Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm
[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).
[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm
[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml
[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html
[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters
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5 anos atrásem
05/11/20
A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.
Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.
Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”
O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.
É só ler o título indigitado de novo:
JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.
Uma pena.
Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.
Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.
Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.
E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.
Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.
A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.
Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.
Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?
Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?
Não, não é razoável.
Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.
A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!
Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.
Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!
É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…
Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.
Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.
É preciso atuar sobre esse front.
Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!
Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!
Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.
A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.
Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?
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Pingback: A queda de Queiroz ou como derrotar o Bolsonarismo? | Jornalistas Livres – ACALANTO
HÉLIO CEZAR TEODORO
19/06/20 at 7:04
Uma coisa importante neste momento no sentido de derrotar o bolsonarismo, entre muitas outras coisas, cmo foi salientado no artigo acima, penso eu, é tentar quebrar o apoio de Trump ao Presidente Bolsonaro, lembrando aos americanos e principalmente ao Biden que Bolsonaro é cria do Trump. Este fracasso social, humano, sanitário, etc., que representa o governo de Jair Messias, cuja percepção é planetária, só aconteceu em virtude da intervenção dos americanos na política interna brasileira, e lógico que neste momento não interessaria a Trump se ver associado a tão grande catástrofe política e humana, e que caso Biden pudesse explorar na sua campanha, possivelmente faria Trump retirar seu apoio ao Bolsonaro, e isto acontecendo a sua fragilidade ficaria exposta e então estaria eliminada a principal dificuldade para removê-lo do poder.