A Inquisição ressuscitou na Câmara Municipal de São Paulo

“Não ao gênero, somos família”

Espero que a ciência possa mesmo aliviar a canseira humana, como diz Brecht, e que o omeprazol resolva as náuseas e a dor no estômago.

De longe ouvia o som e na caminhada vi pessoas com uma camiseta branca na qual estava escrito “Somos Família” (com Família escrito em grandes letras).

Quando cheguei na frente da Câmara pude ver o que acontecia.

A polícia fez a divisão: de um lado os pró gênero e do outro lado os contra o gênero. O lado contrário ao gênero tinha um caminhão com som bem mais potente que o caminhão de som que estava do lado favorável ao gênero, e mais ou menos três vezes mais o número de pessoas. Para chegar ao lado dos pró gênero atravessei a centena de pessoas de branco e ouvi o chamado: Povo de Deus, vamos dizer “Gênero Não”. Quase esbarrei na freira que saltava meio metro do chão para gritar “Gênero Não”. Depois, “Aleluia!!! Aleluia!!!!” Orações, hinos, padres jovens no caminhão de som, louvor a Deus, à familia.

Do outro lado, o esforço de resistência. “Eu beijo homem, beijo mulher, eu beijo quem eu quiser”. “Se Jesus estivesse aqui, estava do lado das travestis”.

Consegui a senha e subi para acompanhar a votação dentro da câmara. Seis horas seguidas de debates para gerar perplexidade e náuseas numa professora de gênero. O cartaz escrito com letras garrafais diz: “Gênero não é de DEUS”. Padres, freiras (hábitos e crucifixos) e religiosos de um lado. Do outro lado, movimento de mulheres, LGBTT, movimentos sociais, academia.

E vereadores debatendo a pauta.

Alguns tentando explicar o conceito de gênero, a relevância da diversidade, a importância de olharmos mais amplamente para o Plano Municipal de Educação. Do outro lado, a maioria de vereadores “defendendo” a família com argumentos do tipo: “Crianças estão em risco”, professores não sabem e não querem trabalhar gênero. Gênero significa que a criança poderá ser violentada no vestiário após a educação física. Significa ainda dizer para uma criança de seis anos que ela tem que escolher se quer ser menino ou menina.

Um vereador disse que era médico e que por isso explicaria a questão. Falou da biologia, de Freud, de Jung. Mas avisou as famílias…tínhamos o DSM, a travestilidade podia estar ali. Outro vereador leu um parágrafo de Butler e na sequência disse: “Quem entende isso?” Na votação, vereadores votavam favoravelmente ao plano, que com intervenção da comissão de finanças já havia retirado qualquer menção a “gênero”.

“Eu beijo homem, beijo mulher, eu beijo quem eu quiser”. “Se Jesus estivesse aqui, estava do lado das travestis”

Em fila, seguiam ao microfone e diziam: “Pela família, sim!” “Pela Família, sim!”. Abraços, sorrisos, acenos e o plenário dava seus pulos e gritos de alegria diante dos 42 a 2 — que em primeira votação, retiraram “gênero” do Plano Municipal de Educação de São Paulo.

Alguns vereadores fizeram declaração de voto e o que entendi posteriormente é que a bancada do governo de Fernando Haddad (PT) resolveu aprovar o Plano como estava para apresentar emendas no dia 25, quando será realizada outra votação. As emendas talvez consigam dizer que é proibido qualquer discriminação, mas o contexto indica a dificuldade de incluir a palavra “gênero” no PME.

Este foi o dia 11 de agosto de 2015. Não era pesadelo. Era a vida que estava sendo vivida na Câmara Municipal de São Paulo. E a inquisição tinha saído do Brecht — e do seu “Galileu Galilei” — e estava ali, diante dos meus olhos. Espero que a ciência possa mesmo aliviar a canseira humana, como diz o Brecht, e que o omeprazol resolva as náuseas e a dor no estômago.

Bete Franco é psicóloga, mestre em psicologia social e doutora em educação. Professora do curso de Obstetrícia e do Mestrado em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP).

“Gênero Não”. Depois, “Aleluia!!! Aleluia!!!!” Orações, hinos, padres jovens no caminhão de som, louvor a Deus, à familia

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