Plano Municipal de Educação de São Paulo: os bastidores de uma derrota anunciada

 

Com apenas 2 votos a favor de manter as expressões de gênero, diversidade e orientação sexual no Plano Municipal de Educação de São Paulo, os vereadores da capital paulista protagonizam um grande retrocesso no acesso a direitos humanos, pautados pelas demandas de uma igreja católica retrógrada e atrasada

Com fotos de Ennio Brauns

Na contra-mão da história, São Paulo — a quarta maior cidade do mundo e a maior da América do Sul — perde a oportunidade de construir uma democracia em que todas as pessoas são contempladas independente de etnia, credo, sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Ao mesmo tempo, em São Francisco, Califórnia (EUA), o curso “História do movimento LGBT” é instituído no ensino médio das escolas públicas.

Perdemos feio. Ou melhor, a democracia e a luta pelos direitos humanos no Brasil sofreram uma derrota fragorosa: 2 votos contra e 42 a favor do texto final do PME-SP (Plano Municipal de Educação de São Paulo), que retirou expressões como “gênero”, “orientação sexual” e “diversidade” de seu escopo. Mas essas questões permanecem no ambiente escolar junto a uma grande parcela da população com grandes dificuldades de frequentar as salas de aula. Porque é na escola que o preconceito, a discriminação e a violência misógina e homotransfóbica é reproduzida e disseminada.

Os 11 ônibus que chegaram na frente da Câmara paulista logo nas primeiras horas da manhã, traziam um pequena multidão. Munidos de um trio elétrico, fiéis e padres se revezavam em canções e discursos em “defesa da família”(hetero, cisgênera e católica). De fora a fora do carro alegórico, um cartaz imenso com a bandeira brasileira exprimia também uma posição política: a igreja católica, que apoiou o golpe militar de 1964, retoma sua posição no conturbado cenário de instabilidade política e econômica ao lado daqueles que querem golpear a ordem democrática para propor o deposição da presidenta eleita pela maioria do povo brasileiro. Aos poucos um cenário nefasto vai sendo montado onde uma questão dialoga com a outra: ao mesmo tempo em que os discursos clamam pela defesa da família, fiéis são convocados a comparecer na manifestação do dia 16/8, do movimento de oposição “Vem pra rua”, que pede o impeachment.

A igreja católica, agora assumindo integralmente a direção da “guerra santa”, em parceria com políticos conservadores, aparelhou a Câmara Municipal, criou um palanque em frente ao órgão público que deveria representar e contemplar tod@s @s cidad@os para proclamar que tem poder sobre as decisões de um Estado que se diz laico mas se dobra ao “poder divino”. Não é à toa que um grande crucifixo repousa firme e sólido sobre as cabeças dos políticos no plenário.

Dom Odilo, o grande maestro dessa sórdida sinfonia teocrática neofascista, ligou para o presidente da Câmara e marcou audiência com os relatores para impedir que a “ideologia de gênero” fosse implantada nas escolas. Essa, sim, é uma elaboração ideológica de má-fé para manipular fieis desinformados que repetem frases desconexas sobre um tema que não compreendem e nem vão compreender. Lotaram a entrada com camisetas brancas mas não era paz que queriam, não era o amor que seu mestre Jesus Cristo ensinou o que levava aquela gente a se juntar. Foram armados com discursos de ódio, praguejando e cuspindo frases como: “Você vai queimar no inferno!”. No caminhão conseguido às pressas para as pessoas que defendiam os direitos humanos, algumas lideranças lgbts, feministas e ativistas em geral se revezavam para pelo menos neutralizar a violência do ataque fundamentalista. Travaram uma verdadeira batalha com ofensas aos gritos dentro e fora da Câmara. Lotaram o plenarinho e a parte que lhe cabia da galeria.

O final daquela história a gente já conhecia. Sabíamos que íamos perder. Mas não daquela forma vergonhosa. Não para nós, população vulnerável. O que aconteceu é uma vergonha para o Brasil. Políticos, como sempre, cederam não só à pressão moralista conservadora da igreja, mas também às propostas que contemplam seus umbigos e partidos… Lamentável. Os tradicionais partidos de direita foram coerentes com seu histórico de desrespeito aos direitos humanos, mas o que causou revolta e muitos posts nas redes sociais foi a decisão do PT, que mais uma vez deixou de contemplar uma de suas maiores bandeiras com medo de se envolver em pautas que trouxessem mais desgaste político. Ficou em cima do muro até o último instante, quando capitulou, e por unanimidade disse SIM ao texto racista, misógino e homotransfóbico do PME-SP. Justificou sua adesão ao texto final como um recuou para não perder as conquistas mais amplas como qualidade da educação, relação professor x aluno, e mais creches… Ventila-se nos bastidores que houve uma negociação entre a prefeitura e Dom Odilo sobre as creches conveniadas de propriedade da igreja católica. Se são boatos ou não, saberemos na sequência. Disseram também que é possível avançar e reconquistar o que foi perdido mudando a linguagem nas emendas que forem apresentadas na próxima eleição do dia 25 . Papo para boi dormir. Já era! Se perdemos agora, perderemos depois… É fato!

Depois que PT chegou no “fechamento de questão”, a vereadora petista Juliana Cardoso, única guerreira a assumir integralmente as atividades em defesa das populações vulneráveis, criando o ato do dia 5/8, que lotou a platéia do Salão Nobre da Câmara de ativistas e representantes de entidades de direitos humanos e comunidade científica, teve que ceder e votar contra suas convicções por ser líder da bancada dos vereadores do PT. De outra forma, seu voto seria caracterizado como quebra de fidelidade partidária.

O PT foi criado sobre duas grandes correntes: sindicalistas da CUT e militantes de esquerda católicos das CEBs, adeptos da teologia da libertação. Essa formação católica do partido é evidente até hoje. Todos os vereadores petistas são católicos praticantes e se elegeram majoritariamente com votos da comunidade católica. Quatro deles são ligados à comunidade católica da Zona Sul, a mais conservadora, que tem tomado a frente na “guerra santa”. Não é de se espantar a unanimidade do voto a favor.

Eu me pergunto quantas mulheres precisarão ser agredidas e estupradas? Quantos gays, lésbicas e bissexuais precisarão ser acuados com chacotas cotidianas? Quantas travestis, mulheres transexuais e homens trans precisarão ser expulsos das escolas para que os representantes eleitos pelo povo reflitam sobre a necessidade fundamental de se transmitir noções de direitos humanos voltados para a igualdade e identidade de gênero, e respeito à orientação sexual de cada criança? Quantas vidas valem a viabilidade política e econômica de projetos políticos?

Até a Rede Globo, que sempre defendeu valores tradicionais, colocou duas lésbicas com um filho formando uma família homoafetiva numa novela de horário nobre. Já está em fase de pesquisa a nova novela que tratará do tema da transexualidade, bem agora, com esse levante conservador da igreja atacando as garantias de acesso à cidadania da população lgbt .

A realidade é que os partidos de esquerda não mobilizaram suas bases, principalmente os setoriais lgbts, não fizeram nenhum chamamento para levar militantes pra fazer frente aquela invasão católica da Câmara Municipal. Bastava 0,001% da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. É muito estranho ver que a esquerda ainda não abraçou a causa lgbt, por razões históricas. Nos anos 80, o nascente ativismo homossexual e o feminismo foram acusados de dividir a luta maior dos trabalhadores, de serem frutos de resquícios burgueses, que não levavam em consideração os efeitos da opressão dos patrões sobre os trabalhadores… Houve até lideranças da esquerda que fizeram declarações do tipo: “o trabalhador bate na mulher porque é oprimido pelos patrões.”

 

 

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