“Não vai ter golpe.” Entendeu?

Desde pelo menos o início da década de oitenta, milhões no Brasil sonhavam com a democracia que já acenava no horizonte de um governo civil-militar que dava seus últimos suspiros.

A luta de muitos cujas vidas foram devassadas, atormentadas e destruídas enquanto lutavam contra o golpe de 64 e, depois, pela conquista da democracia no Brasil, foram e são testemunho dessa transição lenta e inconclusa que germinou esperanças, provocou canções, espetáculos de teatro, obras de arte, deu guarida à indignação de trabalhadores, incitou intelectuais e acadêmicos a saírem de suas cadeiras e gabinetes, instruiu políticos a defenderem uma pauta republicana e amadureceu estudantes.

Uma nova ética foi inaugurada no Brasil, que muitos ainda chamam de princípios da esquerda. Nessa pauta se incluem principalmente o combate sem tréguas às iniquidades que fundam a nação brasileira e, mais tarde, a luta pelo alinhamento entre o estado democrático de direito e os direitos humanos no país.

Iludidos ou não, muitos que engrossaram tais fileiras plantavam no Partido dos Trabalhadores as melhores esperanças e talvez –secretamente — a revolução tão aguardada, que ocorreria por vias institucionais e eleições livres e justas.

Mais de 12 anos depois das primeiras eleições presidenciais, o Partido dos Trabalhadores chegaria ao poder, e essa foi uma conquista de parte da sociedade brasileira e dos muitos que lutavam e lutam por um Brasil republicano.

O PT no poder surpreendeu e decepcionou, foi corajoso e covarde, foi republicano e autoritário, condenou corruptos e se corrompeu, acertou e errou.

A despeito do que pesa mais na balança nesse momento e destacado pelas análises sérias desse período — que hoje são a minoria sobre esses últimos quase 13 anos — o PT foi e é um partido que hoje se encontra no poder há mais de 12 anos, e que desde 2002 vem sendo reconduzido ao Planalto, sucessivamente, pelo cidadão que compareceu às urnas a cada nova eleição. Dessa trajetória, o que podemos afirmar é que o PT soube esperar.

Soube aguardar a democracia, soube aguardar as eleições. Soube perder para Collor de Melo em 1989, para Fernando Henrique em 1994 e 1998 e se preparou para as eleições nos anos vindouros e venceu. O PT — com todos os seus erros e problemas que são muitos — , e cortando na própria carne, é o governo que mais apurou (e permitiu apurar) irregularidades, mazelas e corrupções de toda espécie, incluindo as de pessoas importantes do empresariado, da classe política e de seu próprio partido e governo. Jamais se viu tantas figuras ilustres das elites financeiras e políticas no banco dos réus, investigadas e sob suspeita.

Como efeito e decorrência disso, os poderes judiciário e legislativo autônomos permitem uma das oposições mais críticas e francamente opositoras ao governo da história do país e tais lideranças dos poderes instituídos trabalham, para o bem e para o mal, segundo o regimento atual das câmaras legislativas.

Os atuais líderes da câmara e do senado foram, também eles, duas vezes eleitos, primeiro pelos cidadãos brasileiros e, depois, para assumirem as respectivas presidências da câmara e do senado, pelos seus pares, igualmente eleitos pelo voto popular e, enquanto cumprirem o regimento e o decoro, será difícil acusá-los de irregularidades do ponto de vista do exercício de suas funções.

Entretanto, nesse embate e nessa crise política que se aprofunda, mas que historicamente sempre existiu no país, há uma verdade inconteste que precisa ser repetida, alertada, denunciada: há hoje no Brasil um golpe de Estado a caminho. Um golpe que inclui e é efeito das oligárquicas concessões de rádio e TV — que o governo foi incapaz de apurar e redistribuir de forma mais representativa e equânime — e das negociações políticas e fraturas ideológicas às quais o Partido dos Trabalhadores muito rapidamente cedeu, estabelecendo ligações partidárias com o principal objetivo de se preservar no poder.

Às tendências hegemônicas do PT parece nunca ter ocorrido que a fidelidade às suas bases é o que o levou e o levaria ao poder novamente, quantas vezes fosse possível e necessário, desde que o partido tivesse o que dizer e a quem convencer, e desde que tivesse quem se dispusesse a fazer isso (seus militantes e simpatizantes) em nome das bandeiras que historicamente carregava.

O PT envergonhou o que no Brasil denominamos de princípios fundamentais e inegociáveis das esquerdas, aqueles que orientam na luta contra a assimetria de poder político e econômico no Brasil — e hoje, quem diria, o PT tem receio das manifestações de rua; seja por ser hostilizado por elas, seja por temer o risco de ver seu apoio muito reduzido e alquebrado.

O partido então enfrenta a sua mais importante crise, desde sua fundação, e deve enfrentá-la com dignidade.

Mas o que o PT, seus eleitores do passado e do presente, e todos os partidos e cidadãos que se auto denominam democráticos ou republicanos não podem aceitar é o golpismo, que pretende a alternância de poder à força e sem sustentação e que quer arrancar do poder executivo um partido que chegou a ele respeitando todos os preceitos da democracia representativa, persuadindo eleitores, e não por efeito de conflitos armados ou de pressões por renúncia ou impeachment sem circunstância e fundamento.

Impeachment e renúncia não podem ser nem pleiteados e nem reivindicados a não ser implodindo a jovem democracia brasileira que mal chega aos seu 30 anos.

Para as ruas devem ir agora e depois não apenas os petistas e os apoiadores do PT, hoje em menor número do que no passado, mas todos aqueles que lutaram para que partidos nascidos na democracia chegassem ao poder; porque democracia significa também a maturidade de aceitar a derrota e se preparar para novos pleitos.

Sem isso os regimes não passam de pseudodemocracias, simulacros de falso republicanismo. E é evidente que diante do golpismo que se articula e organiza, o país necessitará da mesma energia e as mesmas virtudes que o reconduziram à democracia em 1985.

Uma enérgica e contundente reação “nas escolas, nas ruas, campos e construções” contra o golpismo branco, que desmerece as últimas eleições e quer atropelar o tempo institucional que regula o voto, será urgente e necessária.

Sem o respeito às decisões colhidas de eleições democraticamente instituídas e geridas, a pátria estará não apenas dividida, mas inteiramente afogada no ideário: se não ganho, não vale. E daí por diante a situação será imprevisível.

Se o golpe se deflagra, a autorização para que resultados colhidos das urnas sejam desmerecidos e não reconhecidos no futuro terá sido dado.

Quem disse que o impeachment ou a renúncia da atual presidente encerraria a crise política?

Quem disse que outros milhões de brasileiros que no passado votaram em Lula e Dilma aceitarão passivos Aécios, Cunhas e quem mais vier, se empurrados goela abaixo, deslegitimando o voto conquistado historicamente com sangue, suor e lágrimas por grande parte da população brasileira?

Como disse Renato Meirelles, presidente do Data Popular, em entrevista ao “El País”, a insatisfação com o governo não quer dizer desejo de que a presidente saia. Pode, inclusive, também expressar o desejo de que melhore. Para que, ao final do mandato, ela venha a fazer jus aos votos confiados a ela.

Creio que para aqueles que levaram os membros do poder executivo e do legislativo ao poder pelas urnas e pelo voto a notícia deve ser emitida clara e limpidamente e sem hesitação: Não vai ter golpe!

Respeitem o voto conquistado e que ainda rege nossa claudicante democracia.

Mas se o golpe vier, isso não resultará num fim pacificador, ao contrário, convocará o início de reações e conflitos que podem vir a ser incontroláveis e cujo desfecho será imprevisível. Se o respeito ao voto do cidadão for desfeito, a cada um não restará muito mais do que agir por conta própria, num país onde as posições de consenso e as instituições são, constantemente, ridicularizadas e lançadas à lata do lixo.

Caberá sempre ao eleitor decidir e reavaliar seu voto na próxima vez em que estiver diante das urnas. O sequestro do voto é um atentado grave à cidadania e aos cidadãos, num país em que o futuro da democracia ainda é totalmente incerto e nebuloso.

Apertar o botão verde nas próximas eleições será o efeito de um sistema eleitoral que se moderniza e se consolida, e que se tornou tão propalado mundo afora, ou não será muito diferente de um vídeo game inútil e risível em que é sempre possível recomeçar o jogo do início diante da derrota.


Paulo Endo* é psicanalista, professor da Pós Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades e do Instituto de Psicologia, ambos da USP, membro da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância da USP.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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