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O bolsonarismo entre o carisma, a libido e a pulsão de morte

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ARTIGO

Daniel Soares Rumbelsperger Rodrigues (1) 

Cau Gomez

Não há progresso (Lacan)

É algo que demanda uma explicação o fato de dezenas de milhares de pessoas terem marchado, no último dia 15/3, em defesa do atual presidente da República. Não se tratava
propriamente de uma defesa do governo federal, mas da pessoa do presidente em sua agenda de ação. Como e por que se mantém fiel ao presidente um arco tão amplo de pessoas ao ponto de arriscarem-se a contrair um vírus em rápida expansão que levou autoridades políticas e sanitárias nacionais e internacionais a recomendar isolamento social e suspensão de diversas atividades econômicas? Como e por que, contra todas as análises e prognósticos das mais variadas organizações médicas do Brasil e do mundo, um coletivo considerável de pessoas redobra suas apostas no presidente ao ponto de convocar manifestações a seu favor, mesmo depois do aumento significativo no número de casos de
(e mortes confirmadas em função do) coronavírus, como na ocasião da hashtag #obrasilnaopodeparar? Como e por que, dia a após dia, há um reinvestimento coletivo de energia na figura do presidente, seus discursos e pontos de vistas? O que explica a manutenção do apoio ao presidente mesmo quando o mundo inteiro, até – ainda que de maneira vacilante – o presidente estadunidense Donald Trump, vai na direção contrária ao valorizar as orientações médicas e científicas e buscar preservar vidas (isolamento ou distanciamento social para conter a propagação do vírus) e empregos (por meio de políticas sociais – comuns ou emergenciais – recomendadas inclusive pelos economistas liberais)?

Porque, claro está, a polarização entre vidas e empregos não é razoável. O que o momento
pede é planejamento integrado e estratégico (mercado, Estado e sociedade) para, no intuito
de superar a pandemia, manter serviços essenciais, socorrer as parcelas vulneráveis da
população, auxiliar as empresas na manutenção dos empregos mesmo com a suspensão
temporária de suas atividades e acompanhar a evolução dos indicadores para prospectar o
retorno paulatino da vida econômica do país. Pode-se objetar que o bolsonarismo – desde o
início um desafio à imaginação sociológica – não é hoje tão expressivo em termos
quantitativos e, portanto, um fenômeno decadente que aglutina cada vez menos pessoas,
mas resta enigmática a sua permanência e, mais, avanço qualitativo; resta enigmática sua
expressão atual em termos tão “puros”. O que mantém o laço dos bolsonaristas entre si e na
relação com seu líder? Qual o tipo de vínculo, mediado pelo grupo, ata o líder ao seu
seguidor num caminho que coloca a todos em risco? Como um líder angaria o apoio de
milhões de pessoas para objetivos que contrariam em larga medida seus próprios interesses
pessoais?

O carisma

Max Weber definiu o carisma como uma das três formas típicas de dominação
política. O carisma não é algo que se possui como um objeto material, mas uma relação
social. Isso significa dizer que o líder tem tanto mais carisma quanto maior e mais arraigada
é a crença coletiva na sua excepcionalidade. O que sustenta a relação de dominação
carismática é a reafirmação frequente do carisma: o líder precisa dar provas contínuas do
seu poder mágico, sobrenatural ou extracotidiano – de sua missão (ou qualidade)
excepcional. A instabilidade dessa dominação reside exatamente nessa necessidade de
reafirmação constante do carisma; o líder precisa manter a agitação das massas, precisa
manter a excitação, precisa atiçar continuamente o ânimo e a eletricidade. É nesse sentido
que o bolsonarismo – como uma variante do fascismo – precisa e se nutre da polarização.
Ela é seu alimento e combustível. É um dos elementos que mantém unidos seguidores e
líder. O fascismo precisa da inconsciência e da excitação contínua das massas, algo que é
precisamente negado no poema nazista Desperta, Alemanha! e na ameaça bolsonarista: O
gigante acordou. Sob essas palavras de ordem, o que se vê é justamente seu oposto, o sono
da razão.

Diz-se que Bolsonaro não governa, mas permanece em constante clima de palanque.
E não é à toa: uma das características do fascismo é não ter programa positivo, mas ser um
amontoado de dispositivos (relativamente monótonos 2 ) que reforçam a solidariedade dos

(3) que fazem parte do grupo (reduzindo aí a ambivalência) e excitam a hostilidade contra os de
fora. O fascismo carece de “questões políticas concretas e tangíveis”, nutrindo-se de “uma
atmosfera de agressividade emocional e irracional” (Adorno, 1951, p.154). Por isso o
fascismo precisa alimentar não só a polêmica vazia ou a polarização artificial, mas também
inimigos imaginários que, em conluio, conspiram diabolicamente para atacar e destruir os
portadores da missão quase-divina do messias da vez. Nesse sentido, o bolsonarismo (na sua
expressão “pura”) inverte a realidade: chama de comunista quem fez campanha sistemática
e obstinada contra quem ele chama – equivocadamente – de comunista e que cultivou parte
das condições (históricas e culturais) que possibilitaram o próprio bolsonarismo. O ódio dos
bolsonaristas à chamada grande imprensa e ao espantalho do comunismo é análogo ao uso
nazista da lenda da punhalada pelas costas. Essa necessidade de polarização, conspiração e
contínuos e substituíveis espantalhos não é racional, ainda, do ponto de vista da estabilidade
da dominação política, quer dizer, de um projeto de poder estável a longo prazo. Para
qualquer político de direita com alguma capacidade prospectiva, seria muito fácil utilizar-se
desse momento de pandemia e crise econômica para alçar-se, de maneira inclusive
conservadora, como líder da nação, da união nacional contra o vírus e pela reconstrução da
economia. Não é o caso de Bolsonaro. Não é o caso da demanda afetiva dos bolsonaristas.

No grupo, o bolsonarista perde a individualidade e vai contra seu eu – o seguidor
fascista é irracional. Bourdieu refere-se à essa irracionalidade sob o conceito de “violência
simbólica”. É simbólica a agressão que a vítima faz contra si mesma ao incorporar os
esquemas de pensamento que justificam e legitimam as agressões que ela sofre. Na
violência simbólica, os dominados entendem como legítimas e naturais as instituições e a
realidade nas quais eles participam na condição de dominados. Trata-se de uma “violência
suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas” (Bourdieu, 2019, p.12). A ideia de poder
simbólico, em Bourdieu, se assemelha a de ideologia, em Marx: em ambos os casos se trata
de sistemas de pensamento que, incorporados pelos indivíduos das classes dominadas, os
fazem perceber como natural e legítima a ordem social que os oprime. A violência simbólica opera “quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas de pensamento que são produto da própria dominação” (idem, p.30). A mulher machista, o homossexual homofóbico, o negro racista etc. são os exemplos mais óbvios. Como se vê numa música dos Racionais: “um dia um PM negro veio me embaçar. E disse pra eu me pôr no meu lugar. Eu vejo um mano nessas condições: não dá… Será assim que eu deveria estar?”

Psicanálise do fascismo

Freud aborda essa questão sob um ângulo mais profícuo (talvez por não fazer
distinção de classe) para o caso dessa corrente política e de opinião que é o bolsonarismo.
Segundo Freud, o vínculo que ata líder e seguidor é de natureza libidinal, permitindo que se experimente, no grupo, um prazer quase impossível de se obter por outros meios.

Dificilmente os afetos dos homens se elevam, em outras condições, à altura que atingem numa massa, e é mesmo uma sensação prazerosa, para seus membros, entregar-se tão abertamente às suas paixões e fundir-se na
massa, perdendo o sentimento da delimitação individual (Freud, 1921,
p.25).

Que prazer é esse? O tipo de vínculo entre o seguidor e o líder é análogo ao que unia
o filho e o pai da horda primitiva. O superego, de uma extensão psíquica da influência
parental, é substituído pelo ideal de grupo, do qual é revestido o demagogo fascista, que
passa a encarnar, aos olhos da massa, a onipotência ameaçadora do pai original da horda
primeva. O líder encarna “uma personalidade muito potente e perigosa, ante a qual só se
pode ter uma atitude passiva-masoquista, à qual a vontade tem que se render” (Freud,
1921, p.70). Continua Freud:

O líder da massa continua a ser o temido pai primordial, a massa quer ainda
ser dominada com força irrestrita, tem ânsia extrema de autoridade, ou,
nas palavras de Le Bon, sede de submissão (idem, p.71).

Ora, é esse tipo de vínculo libidinal que explica a atitude irracional (do ponto de vista
do auto-interesse individual) do seguidor fascista. O indivíduo se rende ao grupo e à
submissão ao líder porque é aí que ele satisfaz o impulso arcaico de entregar-se a uma
autoridade, puramente fantasiosa, onipotente e incontrolável. Mas, quais mecanismos
transformam a libido no vínculo entre seguidor e líder?
O seguidor, na realidade, identifica-se com e idealiza o líder. Ele vê o líder como uma
extensão idealizada de sua personalidade; trata-se de uma regressão hipertrofiada,
portanto, ao estágio narcisista de desenvolvimento das tendências libidinais. Antes de
dirigir-se a um objeto externo, os impulsos sexuais dirigem-se ao (procurando encontrar
prazer no) próprio corpo do sujeito; essa fase infantil, auto-erótica, desdobra-se no (5)
narcisismo, em que os instintos sexuais catexizam o ego como objeto (Freud, 1912, p.112).
Esse amor de si, que é o princípio da condição do apaixonado, expande-se para o líder em
função do conflito – especificamente moderno – de ter de se lidar com a frustração dos
desejos (3) . O seguidor, “ao fazer do líder seu ideal, ama a si mesmo, mas se livra das manchas
de frustração e mal-estar que desfiguram a imagem de seu próprio eu empírico” (Adorno,
1951, p.169).
O bolsonarista típico é um frustrado, mas frustrados somos todos. Ele é um frustrado
que se ressente. Há uma incapacidade em se resignar em face da frustração dos desejos
aliada à uma dificuldade em realizar o prazer, em satisfazer os impulsos por prazer; isso gera
uma concentração da libido que encontra seu escape no “universo da política” ou da
participação num grupo que aspira ao “poder político” e que, assim, se atribui a
grandiosidade de uma missão ou cruzada moral. O fascismo, ao mesmo tempo que um
retorno primitivo, é feito na e pela civilização. É essa ira contra a frustração (que bem pode
ter a ver com contextos de desemprego, crise econômica ou conflitos sexuais) que está na
base da devoção ao líder, objeto – paradoxalmente – de identificação e idealização. As
pessoas com quem o líder fascista tem de lidar, prossegue Adorno (1951, p.169), “padecem
geralmente do conflito moderno característico entre uma instância do eu racional,
fortemente desenvolvida e auto-conservadora, e o contínuo fracasso em satisfazer as
demandas de seu próprio eu”.
É interessante notar que é a própria característica de dominação absoluta que faz o
líder ser amado; a hipnose, por assim dizer, que o pai da horda primeva causava é como que
revivida na relação (parcialmente narcísica) que o seguidor mantém com seu líder. Ele não
tem nenhum programa positivo. Não tem nada a dar. E é amado justamente porque não ama.

O líder somente pode ser amado se ele mesmo não amar (idem, p.171).
Ainda hoje os indivíduos da massa carecem da ilusão de serem amados
igualmente e justamente pelo líder, mas este não precisa amar ninguém
mais, é-lhe facultado ser de natureza senhorial, absolutamente narcisista,
mas seguro de si e independente. Sabemos que o amor refreia o narcisismo, e

poderíamos demonstrar que em virtude disso tornou-se fator de cultura (Freud, 1921, p.67).

É extremamente ambígua a circunstância de que ao mesmo tempo que encarna a
onipotência ameaçadora e absoluta, o líder precisa aparecer como uma figura com a qual o
seguidor consegue identificar-se. Quer dizer, não basta corporificar um supereu exagerado e
inalcançável; há a igual necessidade de aparecer como mais um, como um homem comum,
como alguém com quem o seguidor possa não só submeter-se de maneira passivamente
masoquista, mas também identificar-se. É assim, e só assim, que “a imagem do líder satisfaz
o duplo desejo do seguidor em se submeter à autoridade e ser ele mesmo a autoridade”
(Adorno, 1951, p.172). É assim que o líder, que por princípio submete, submete-se à massa.
Os seguidores o podem trocar do dia pra noite – ele é, em essência, descartável. Eles
assemelham-se àqueles indivíduos compulsivos que “repetidamente, no curso da vida,
elevam outra pessoa à condição de grande autoridade para si mesmos ou para a opinião
pública, e após um certo tempo derrubam eles próprios essa autoridade, para substituí-la
por uma nova” (Freud, 1920, p.134).

Com frequência ele [o líder] necessita apenas possuir de modo
particularmente puro e marcante os atributos típicos desses indivíduos [os
seguidores] e dar a impressão de enorme força e liberdade libidinal; então
vai ao seu encontro a necessidade de um forte chefe supremo, dotando-o
de um poder tal que ele normalmente não poderia reivindicar. Os outros,
cujo ideal de Eu, de outro modo, não se teria corporificado sem correções
na sua pessoa, veem-se então arrebatados “sugestivamente”, isto é, por
identificação (Freud, 1921, p.72).
As pessoas que obedecem aos ditadores também percebem que eles são
supérfluos. Elas reconciliam essa contradição ao assumirem que elas
mesmas são o opressor brutal (Adorno, 1951, p.172).

O bolsonarista típico, portanto, é humilde e orgulhoso em suas aspirações. Essa
humildade ou medianidade, diferentemente do que diz Adorno, nada tem a ver com a
profissão ou a ocupação exercida, posto que a relação carismática de poder não encontra
barreiras de classe. Quer dizer, embora assuma matizes distintos a depender das classes
sociais, o bolsonarismo as atravessa. Em todo caso, é pela ação do mecanismo duplo de
identificação e idealização que é feito o milagre da união de onipotência ameaçadora e simplicidade do homem comum a tocar seus afazeres cotidianos (4) . Parte da astúcia de
Bolsonaro advém daí: da sua capacidade de encarnar e manipular signos opostos. Ele se
vende como um político inimigo do “sistema”, como guia de uma missão heroica pela
“salvação da nação” e, ao mesmo tempo, se coloca ombro a ombro com o homem comum,
como um representante típico do homem do povo, em cuja imagem o seguidor (de
diferentes classes ou frações de classe) se projeta. Ao lado dessa ambiguidade, a astúcia de
sua liderança vem daquela capacidade de manter constantemente excitada a eletricidade
que mantém a massa unida e coesa na sua luta grandiosa “contra o sistema, pela nação”.
É por aí que podemos entender o quanto o fascismo é desinibido: parte do
pensamento para a fala e daí para ação – sem mediação. O agitador fascista “diz o que
pensa”, o que significa dizer o que não pensa, o que não passa pelo crivo da razão e da
consciência, o que é apenas uma descarga do inconsciente que logo passa para a ação. Essa
linguagem desinibida do inconsciente a céu aberto é uma das vias de identificação do
seguidor com seu líder, produzindo a mágica de reduzir os indivíduos a membros de
multidões vociferantes e irracionais que pensam, falam e agem sem filtro (5) .

Ora, Bolsonaro é admirado como um “mito” por isso: diz o que todo mundo (supostamente) pensa e ninguém
diz. O bolsonarismo, assim, é um grito contra uma certa etiqueta de civilidade, uma vez que
a civilização implica justamente no respeito aos indivíduos como indivíduos, não como
objetos, em suas singularidades significativas, em suas humanidades, assim como numa
certa restrição dos próprios impulsos (libidinais e destrutivos) individuais. Dizendo o que
ninguém diz, ou o que ninguém dizia por um certo constrangimento, Bolsonaro permite que
todos digam juntos, em uníssono, o que só é dito – e feito – em grupo e pelo grupo. O
seguidor bolsonarista não é um monstro, mas se permite monstruosidades no grupo virtual
ou real. O bolsonarismo é o fascismo dos homens bons (6) .
A civilização nasce com a renúncia. É ela que dá início à cultura e à vida em comum. O
fascismo, por sua vez, é a negação dessa negação, é a imposição imperiosa e absoluta do eu
em suas pulsões por prazer e (auto)destruição; imposição esta que, todavia, só se realiza no 

e pelo grupo através da combinação dos mecanismos da identificação e da idealização. Por
isso o fascismo não tem fim, não tem contentamento possível. À beira do abismo, dá um
passo à frente. O fascismo é totalitário na sua vontade de poder, na sua ânsia de conversão e
domínio do mundo. Ironicamente, é como um vírus que não se sacia, que não tem limite. O
fascismo não sublima, ele atua e realiza. “Vocês querem a guerra total?!” Bradava Goebbels
com uma audiência embevecida. O fascismo exacerba a pulsão de gozo, morte e de
destruição.
Não há aqui uma análise exaustiva dessa politização da antipolítica que é o
bolsonarismo, que sem dúvida é um fenômeno complexo e multidimensional. Pelo contrário,
busquei, num quadro típico-ideal, lançar alguma luz sobre o cenário, sem reivindicar, aliás,
que se incluem neste quadro todos que votaram no atual presidente da República ou que
em alguma medida se alinham ao seu governo. Procurei sugerir, ainda, que, em termos
psicológicos, o fascismo bolsonarista é uma modulação extremada de (ou melhor: é uma
saída anti-civilizatória para) um conflito que, em certo sentido, nos diz respeito a todos.

Diversos autores e autoras vêm se dedicando ao tema, produzindo uma série de análises e
contribuições; se destacam as comparações (semelhanças e diferenças) com outras
correntes, como o lulismo, e as discussões que vinculam as escolhas das esquerdas à
ascensão bolsonarista e que mostram o quanto são turvas as linhas que, em muitos casos,
separam eleitorados opostos de maneira supostamente radical. Janelas importantes de
investigação também são as atitudes diferenciais de indivíduos de classes sociais desiguais,
mas que se unem no ódio e no amor libidinal (sadismo e masoquismo), assim como o fetiche
da ordem, da hierarquia e da organização que se vê nas multidões verde-amarelo. Ademais,
são centrais a dinâmica de amor aos de dentro do grupo e ódio aos de fora (com suas óbvias
interligações com setores do neopentecostalismo) e toda a retórica, típica dos tempos de
pós-verdade, de negação da ciência, de desprezo pela verdade dos fatos e de autonegação:
just remember, what you’re seeing and what you’re reading it’s not what is happening, just
stay with us.

 

 

 

1 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e mestre e doutor

em Sociologia pelo Instituto de Estudo Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

(IESP-UERJ).

2 Como diz Adorno (1951, p.155), são ingredientes indispensáveis da técnica da propaganda fascista “a
constante reiteração e escassez de ideias”.

3 “Como uma rebelião contra a civilização, o fascismo não é simplesmente a reocorrência do arcaico, mas sua
reprodução na e pela civilização” (Adorno, 1951, p.162).

4 Ainda Adorno (1951, p.171): “embora apareça como super-homem, o líder precisa, ao mesmo tempo, operar
o milagre de aparecer como uma pessoa mediana, tal como Hitler posava como uma união de King Kong e
barbeiro suburbano”.

5 “A fim de conseguir corresponder às disposições inconscientes de sua audiência, o agitador fascista, por assim
dizer, simplesmente volta seu inconsciente para fora” (idem, 1951, p.182).

6 A referência aqui é A Máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe.

 

Textos citados:
ADORNO, Theodor. [1951]. Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In:
ADORNO,
Theodor. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

9
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina; a condição feminina e a violência simbólica. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2019.
FREUD, Sigmund. [1912]. Totem e Tabu. In: FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros
trabalhos. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud,
volume XIII (1913-1914). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974.
______. [1920] Além do princípio do prazer. In: FREUD, Sigmund. História de uma neurose
infantil (“o home dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Obras
completas, volume 13. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
______. [1921]. Psicologia das massas e análise do eu. In: FREUD, Sigmund. Psicologia das
massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). Obras completas, volume 15. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

 

 

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Geral

O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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Geral

O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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