Bérgamo, a cidade na Itália devastada pelo coronavírus por uma decisão dos patrões
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Eram levados para outras cidades, fora da Lombardia, porque o cemitério, o necrotério, a igreja transformada em necrotério emergencial e o crematório funcionando 24 horas por dia não davam conta. A imagem eternizava a magnitude da tragédia em curso na região italiana mais afetada pelo coronavírus. No dia seguinte, o país amanheceu com a notícia de ser o primeiro da lista mundial por mortes oficiais por covid-19. A maior parte, na Lombardia. Porém, o que torna a situação tão dramática especificamente em Bérgamo? O que aconteceu nessa região para que em março de 2020 o número de mortos tenha sido 400% acima do que no mesmo mês do ano anterior?
No dia 23 de fevereiro existiam apenas dois casos positivos de coronavírus na província de Bérgamo. Em uma semana, o número subiu para 220 — quase todos no vale do rio Serio. Em Codogno, outra cidade lombarda, onde o primeiro caso de coronavírus foi detectado no dia 21 de fevereiro, bastaram 50 casos positivos para fechar a cidade e decretá-la uma área vermelha (de máximo risco). Por que não agiram da mesma forma no vale? É porque lá concentra-se um dos pólos industriais mais importantes da Itália e os empresários industriais pressionaram todas as instituições para evitar o fechamento das fábricas e a perda de dinheiro.
Por incrível que pareça, a região campeã em mortes por coronavírus por habitante da Itália inteira — e da Europa — nunca foi declarada área vermelha, apesar do espanto dos prefeitos que pediam tal medida, e dos cidadãos, que agora exigem que haja pessoas responsabilizadas por isso. Os médicos do Val Seriana são os primeiros a jogar a real: se a região tivesse sido declarada área vermelha — como todos os especialistas aconselhavam — centenas de vidas teriam sido salvas, garantem, impotentes.
A história é bem obscura: aqueles interessados em manter suas fábricas abertas são também, em alguns casos, acionistas ou sócios de hospitais particulares. A Lombardia é a região italiana que melhor representa o modelo de mercantilização da saúde e tem sido vítima de um sistema de corrupção em larga escala, comandado pelo seu ex-governador Roberto Formigoni (que governou de 1995 a 2013) e que é membro destacado do partido Comunhão e Libertação (CeL). Ele pertencia ao mesmo partido de Berlusconi, que o defendia como o “governador vitalício da Lombardia”, mas contou sempre com o apoio da Liga, que governa na região desde que Formigoni saiu, acusado e condenado por corrupção na área da saúde. Seu sucessor, Roberto Maroni, iniciou em 2017 uma reforma da Saúde que trouxe ainda mais cortes nos investimentos públicos e que praticamente aboliu os médicos de família, substituindo-os por “gestores”. É verdade que nos próximos 5 anos cerca de 45 mil clínicos gerais irão desaparecer, mas “quem ainda vai ao seu médico de família?”, disse, inabalável, em agosto do ano passado, o político da Liga Giancarlo Giorgetti, então vice-secretário de Estado do Governo Conte-Salvini.
A epidemia na região de Bérgamo, a chamada Bergamasca, teve início oficialmente na tarde do domingo 23 de fevereiro, embora os médicos de família e clínicos gerais — na linha de frente da denúncia da situação — garantam que desde o final de dezembro já vinham atendendo muitos casos de pneumonias anômalas, inclusive em pessoas de 40 anos. No hospital Pesenti Fenaroli, de Alzano Lombardo, um município com 13.670 habitantes a poucos quilômetros de Bérgamo, o resultado dos testes de coronavírus de dois pacientes internados, chegaram: eram positivos.
Como eles já tinham estado em contato com outros pacientes, médicos e enfermeiros, a direção do hospital decidiu fechar as portas. Mas, sem explicação alguma, reabriram horas depois, sem desinfetar as instalações nem isolar os pacientes com Covid-19. Pior ainda: todos os trabalhadores (médicos, enfermeiros, etc) continuaram trabalhando sem proteção durante uma semana inteira; grande parte deles foi contagiada e acabou disseminando o vírus entre a população. O número de contágios multiplicou-se por todo o vale. O hospital foi, assim, o primeiro grande foco da infecção: pacientes que ingressaram por uma simples dor no quadril, acabaram morrendo por coronavírus.
Os prefeitos dos dois municípios mais afetados do Vale do Serio, Nembro e Alzano Lombardo, esperavam todo dia às 19h que chegasse a ordem de fechar a cidade, que era o que tinham combinado. Tudo estava pronto: os regulamentos escritos, o exército mobilizado, o chefe da polícia tinha organizados os turnos de cada guarda e as tendas já estavam montadas. Mas a ordem nunca chegou, e ninguém soube explicar a eles o porquê. Em vez disso, chegavam muitas e muitas ligações dos empresários e donos de fábricas da região, preocupadíssimos em evitar a qualquer custo o fechamento de suas atividades. Nem disfarçavam.
Sem nenhum remorso, no dia 28 de fevereiro, em plena emergência por causa do coronavírus (que em 5 dias tinha atingido 110 infectados na região, saindo totalmente de controle), a Confindustria, associação de empresários industriais italianos, deu início a uma campanha nas redes com a hashtag #YesWeWork (“Sim, nós trabalhamos”). O presidente da Confindustria da Lombardia, Marco Bonometti, declarou à mídia: “Precisamos abaixar o tom, fazer a opinião pública entender que a situação está sendo normalizada, que as pessoas podem voltar a viver como antes”.
No mesmo dia, a Confindustria Bergamo lançou sua própria campanha direcionada aos investidores estrangeiros para convencê-los de que ali não estava acontecendo nada e que não fechariam nem de brincadeira. O slogan não deixava dúvidas: “Bergamo non si ferma / Bergamo is running” (Bérgamo não pára).
A mensagem do vídeo promocional para os sócios internacionais era um despropósito: “Foram diagnosticados casos de coronavírus na Itália, mas do mesmo jeito que em outros países”, minimizando a situação. Também, mentiam: “o risco de infecção é baixo”. Colocavam a culpa nos meios de comunicação por um suposto alarmismo injustificado e, enquanto mostravam operários trabalhando em suas fábricas, gabavam-se do fato de que todas as fábricas iriam continuar “abertas e a todo vapor, como sempre”.
Apenas cinco dias depois, estourou o enorme surto de contágios e mortes que acabou sendo o mais importante da Itália e da Europa. Mas nem assim retiraram a campanha, e nem pensariam em fechar as fábricas. A Confindustria Bergamo reúne 1.200 empresas, que empregam mais de 80 mil trabalhadores. Todos foram expostos ao vírus, foram obrigados a ter de trabalhar, em grande parte, sem as medidas adequadas — aglomerados, sem distâncias de segurança nem materiais de proteção — colocando em risco suas vidas e a de todas as pessoas ao seu redor.
O prefeito de Bérgamo, Giorgio Gori, do Partido Democrático, também tinha se unido ao clamor contra o fechamento da cidade e, no dia 1º de março, convidava as pessoas a encherem as lojas do centro com o slogan “Bérgamo não para”. Pouco depois, diante da evidência da catástrofe, se arrependeu e reconheceu que tinha tomado medidas muito fracas com a intenção de não afetar a atividade econômica das grandes empresas da região.
No dia 8 de março, os contágios oficiais na região bergamasca passaram, em uma semana, de 220 para 997. Pela tarde, vazou a informação de que o governo pretendia isolar a Lombardia. Depois de horas de caos, no qual muitos abandonaram Milão numa grande debandada, o primeiro ministro Giuseppe Conte surgiu, já de madrugada, numa confusa coletiva de imprensa por meio do Facebook, anunciando o decreto. Não era o que os prefeitos de Vale do Serio esperavam: nada de área vermelha, senão, laranja. Ou seja, ficariam restritas as entradas e saídas dos municípios, mas todo mundo podia continuar indo aos seus respectivos trabalhos.
Após dois dias, o confinamento estendeu-se a toda a Itália. E nada mudou na região bergamasca, na qual os contágios continuavam a crescer, no mesmo ritmo imparável de suas fábricas funcionando a todo vapor. “Quando todos na região, principalmente em Nembro e Alzano Lombardo, tinham certeza que seria decretada área vermelha, algumas importantes empresas pressionaram para atrasá-la o máximo possível”, conta Andrea Agazzi, secretário-geral do sindicato FIOM Bérgamo, no programa Report do canal RAI. E acrescenta: “A Confindustria deu as cartas e o governo escolheu de que lado ia ficar”.
Os contágios e as mortes aumentaram, incessantes, especialmente nas regiões industriais da Lombardia, localizadas entre Bérgamo e Brescia. Exatamente um mês após o primeiro caso oficial de coronavírus na Itália, no sábado 21 de março foi atingido o triste recorde de quase 800 mortos por dia. Os governadores da Lombardia e do Piemonte — outro grande pólo industrial — declararam que a situação era insustentável e que era necessário deter a atividade produtiva. Conte, que até então tinha se mostrado contra as medidas, apareceu na mesma noite, bastante perturbado, para afirmar que agora sim, seriam encerradas “todas as atividades econômicas produtivas não-essenciais”.
A Confindustria reagiu imediatamente e começou uma ofensiva ação para pressionar o governo. “Não podem ser fechadas todas as atividades não essenciais”, escreveram numa carta ao premiê, detalhando suas exigências. Os industriais fizeram com que o decreto demorasse 24 horas em ser aprovado e que Conte aceitasse suas condições. De fato, o governo tinha escolhido o seu lado — e não seria o lado dos trabalhadores.
Os sindicatos, em bloco, opuseram-se em pé de guerra e ameaçaram com uma greve geral se não fosse cumprido o encerramento real das atividades produtivas não-essenciais. A Confindustria tinha conseguido colocar na lista de atividades que poderiam continuar funcionando muitas que não eram de primeira necessidade, como as da indústria de armas e munições. Além disso, incluíram uma espécie de cláusula que permitia que qualquer empresa que se declarasse “funcional” para uma atividade econômica essencial, pudesse permanecer aberta na prática. Isso fez com que em Brescia, a outra província lombarda destruída pelo coronavírus, mais de 600 empresas excluídas da lista das essenciais, iniciassem os procedimentos para poder continuar funcionando.
“Não entendo os motivos pelos quais os sindicatos iriam querer uma greve. O decreto já é bem restrito: o que mais precisaríamos fazer?”, disse o pouco empático presidente da Confindustria, Vincenzo Boccia. E acrescentou: “Já vamos perder 100 bilhões de euros por mês. Não parar a economia é bom para o país inteiro”. Annamaria Furlan, secretária geral do sindicato CISL, tentou explicar a ele: “Sou sindicalista há 40 anos e nunca pedi o fechamento de fábrica, mas é que agora é a vida das pessoas que está em risco “.
Os trabalhadores das fábricas começaram protestos e greves enquanto os sindicatos negociavam com o governo, que, no fim, reconsiderou. Foram eliminadas algumas atividades da lista das mais de oitenta “essenciais”, como a indústria armamentícia ou os call-centers que vendem por telefone ofertas que não foram solicitadas. Também houve uma restrição às indústrias petroquímicas. Também, foi combinado que não bastava a autocertificação de uma empresa para considerá-la funcional para outra essencial, e foi estabelecido o compromisso de proteger o direito à saúde dos trabalhadores que continuassem nas fábricas. Apesar disso, ainda restaram alguns pontos ambíguos no decreto, e existe uma zona cinza que permite que muitas fábricas continuem abertas. Do mesmo modo, muitos operários continuam trabalhando sem distância de segurança e sem o material de proteção adequado.
As fábricas da região bergamasca continuaram praticamente todas abertas até o dia 23 de março, quando os contágios oficiais na região já chegavam na cifra de 6.500. Uma semana depois, no dia 30 de março, apesar do decreto de fechamento de “todas as atividades produtivas não essenciais”, ainda restavam 1.800 fábricas abertas e 8.670 infectados na região.
Apresentemos os nomes às fábricas que não quiseram fechar. Uma das empresas da região é Tenaris, líder mundial na fabricação de tubos e serviços para a exploração e produção de petróleo e gás, com faturamento de 7,3 milhões de dólares e sede legal em Luxemburgo. Emprega 1,7 mil trabalhadores em sua fábrica da região bergamasca e pertence à família Rocca, com Gianfelice Rocca, o oitavo homem mais rico da Itália.
Na província de Bérgamo, como em toda a Lombardía, os planos de saúde privados são muito poderosos. Comprovadamente, a metade dos serviços de saúde passa por mãos privadas. Os dois hospitais particulares mais importantes da região, que faturam, cada um, mais de 15 milhões de euros anuais, pertencem ao grupo San Donato — cujo presidente é nada mais nada menos que o vice-primeiro-ministro italiano, Angelino Alfano, ex-sucessor de Berlusconi — e ao grupo Humanitas. O presidente de Humanitas é Gianfelice Rocca, também proprietário de Tenaris, indústria que também não quis mandar seus trabalhadores para casa. A saúde privada bergamasca não foi ativada para a emergência do coronavírus até o dia 8 de março, quando, por decreto, todos os serviços não urgentes tiveram que ser adiados. Só então começaram a abrir espaço para os pacientes com covid-19.
A Brembo é outra grande empresa com fábricas na região de Bérgamo Pertence a poderosa família Bombassei, também envolvida em política: Alberto, o filho do fundador, foi deputado por Scelta Civica, o partido de Mario Monti. Tem 3 mil trabalhadores em suas fábricas na zona de Bérgamo, que produzem freios para automóveis. Fatura 2, 6 milhões de euros. Não quiseram fechar.
O Vale do Serio foi industrializado em grande parte por empresas suíças há mais de 100 anos. Por isso a presença de fábricas ligadas à Suíça ainda é importante. Outra grande empresa que tem mais de 6 mil trabalhadores na Itália, mais de 850 na região é a ABB, com capital suíço e sueco. Líder em robótica, fatura 2 milhões de euros. No dia 30 de março seguia aberta, em total normalidade.
A Persico, empresa italiana que produz componentes automotivos, com 400 trabalhadores e 159 milhões de faturamento, tem sede em Nembro, o município com mais mortes por covid-19 por habitante na Itália. Pierino Persico, o proprietário, foi um dos que mais se opôs a declarar a cidade zona vermelha.
Em Nembro, em março de 2019, morreram 14 pessoas. No mesmo mês deste ano foram 123 (um aumento de 750%). E ainda assim, os infectados oficiais são apenas 200. Em Alzano Lombardo, em março de 2019, morreram 9 pessoas; em março agora, 101. Na cidade de Bérgamo (de 120 mil habitantes) o número de mortos em março foi de 553, enquanto que, em março de 2019, foram 125. Os dados sobre os infectados não são confiáveis porque não fazem testes e a Proteção Civil italiana — que realiza a recontagem — adverte que os números devem se multiplicar por pelo menos dez.
Segundo um estudo publicado pelo Giornale di Brescia, na província lombarda a cifra de infectados seria 20 vezes maior que a oficial, cerca de 15% da população. E o mesmo com o número de mortes. Segundo esse estudo, seria o dobro das oficiais, ou seja, três mil só na província de Brescia. A falta de testes — em vivos e mortos — torna impossível efetuar uma contagem confiável. O que sabemos é que a Itália é o país com mais mortos por covid-19 no mundo, em torno de 18 mil, e a maioria são da zona norte industrial.
Agora, diante de milhares de cadáveres e uma população que começa a converter sua dor em raiva, todos querem fugir de suas responsabilidades. O governador de Lombardía, o leghista Attilio Fontana, culpa o governo federal e assegura que não foi mais rigoroso porque não deixaram. Na verdade, se ele quisesse poderia ter sido, como foram os governadores de Emiliana Romaña, Lacio e Campania, que decretaram área vermelha em suas regiões.
A verdade é que nenhuma autoridade esteve à altura, exceto os prefeitos de pequenas cidades, que são os únicos que reconheceram — e denunciaram publicamente — as pressões dos industriais, que os assediavam com ligações para tentar de todas as formas evitar ou adiar o fechamento das fábricas. A partir de uma Bérgamo ferida e ainda em choque, os cidadãos começam a se organizar para pedir que os fatos sejam esclarecidos e que alguém assuma, ao menos, a responsabilidade de ter permitido que os interesses econômicos fossem sobrepostos à saúde — ou melhor, à vida — dos trabalhadores de Bergamasca. Muitos deles, inclusive, precários.
*Alba Sidera é jornalista ítalo-catalã, correspondente do jornal catalão El Punt Avui na Itália e colaboradora da Revista Contexto, onde a crônica foi publicada originalmente.
**A tradução para o português é de Simone Paz Hernández e Rôney Rodrigues para o Outras Palavras.

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
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07/11/20O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac
Por Dirce Waltrick do Amarante*
Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.
Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.
Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.
Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.
Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.
*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina
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O show de Trump: renovação ou cancelamento?
A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista
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06/11/20por
Aloisio MoraisNos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.
Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG
A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.
Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.
A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.
São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.
Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário.
Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.
Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.
O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.
O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.
Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].
Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.
Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.
A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.
Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.
Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm
[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).
[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm
[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml
[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html
[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters
Feminismo
Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?
Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros
Publicadoo
5 anos atrásem
05/11/20A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.
Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.
Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”
O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.
É só ler o título indigitado de novo:
JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.
Uma pena.
Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.
Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.
Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.
E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.
Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.
A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.
Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.
Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?
Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?
Não, não é razoável.
Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.
A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!
Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.
Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!
É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…
Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.
Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.
É preciso atuar sobre esse front.
Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!
Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!
Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.
A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.
Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?
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