Universidades públicas X universidades particulares, uma discussão bem antiga

 

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com charge de Brum

 

Desde a minha época de vestibular que a discussão “universidade pública X universidade particular” desperta paixões. Lembro que antes de ser aprovado no vestibular da UFRJ, lá no distante 2005, ganhei uma bolsa integral numa faculdade particular. Eu morria de medo de precisar estudar lá. Tinha preconceito mesmo. Todo preconceito é tolo, pois bebe na fonte da ignorância.

Hoje, 14 anos depois, acho que consigo dizer algo sobre o assunto com alguma sobriedade e propriedade.

É que fui aluno de universidade pública da graduação ao doutorado. Fui professor de universidade particular durante cinco anos. Atualmente, sou professor de uma das mais importantes universidades federais do Brasil.

Como acontece em quase tudo na vida, o ideal é o meio termo, a justa medida. Não sou daqueles que demonizam as universidades particulares, negando a elas qualquer importância e relevência social. Também não estou entre os que idealizam as universidades públicas.

Há muitos problemas nas universidade públicas. Apesar dos avanços da última década, o ambiente ainda é elitizado e muitas vezes hostil aos alunos trabalhadores.

Alguns colegas, inconscientemente ou deliberadamente, ainda reproduzem algumas máximas pra lá de excludentes, como, por exemplo, a divisão dos alunos em dois grupos: os que têm perfil pra atividade acadêmica (aqueles que seguirão carreira científica nos cursos de pós-graduação) e os que têm perfil, “apenas”, para o mercado de trabalho. Marcadores de raça e classe servem como critérios para essa divisão.

Os cursos noturnos, ocupados quase exclusivamente por alunos trabalhadores e pobres, ainda encontram muitas dificuldades em seu funcionamento: falta a devida estrutura administrativa, em alguns casos não existe isonomia curricular com os cursos diurnos, é pequena a oferta de disciplinas eletivas e atividades extracurriculares.

Com todas essas ressalvas, a absoluta maioria dos alunos matriculados nas universidades públicas pertencem às classes D e E. Essa realidade é resultado da implantação do sistema de cotas e do Sistema de Seleção Unificada (SISU).

Apesar de todos os problemas, universidades públicas, são, sim, espaços de acolhimento para os filhos das classes trabalhadoras. Formação acadêmica de excelência e contato cotidiano com as maiores inteligências do país modificam radicalmente o horizonte de expectativas dos nossos alunos.

Depois de alguns anos na universidade pública, meninos e meninas criados para serem trabalhadores manuais começam a sonhar mais alto: viagens internacionais, pesquisa científica, produção intelectual. Questionam estruturas de opressão que antes pareciam naturais.

Grande parte da pesquisa científica e inovação tecnológica produzidas no Brasil são desenvolvidas nas universidades públicas. Não tenho dúvida de que, se puder escolher, desejarei que meu filho se forme numa universidade pública. É gratuita e tem qualidade, tem excelência.

Sim, a universidade pública é melhor que a universidade particular. Não é mais preconceito. É conceito e experiência.

Já as universidades particulares estão, sim, mais para escolões de ensino superior do que propriamente para universidades. Falta estabilidade funcional para os professores, que têm seus salários calculados sobre a quantidade de turmas. Isso produz toda uma política interna na qual, nem sempre, o professor em sala de aula é a melhor opção acadêmica para aquela disciplina.

Os currículos são rígidos demais, o calendário muito amarrado, provas objetivas e controladas pela burocracia da empresa. Enfim, pouca autonomia intelectual. Sem autonomia, estabilidade salarial e valorização do professor, não existe excelência acadêmica.

No entanto, aconteceu nos últimos anos algo um tanto contraditório. A ampliação da população universitária promovida nos governos do PT se deu, em maior parte, no aumento de vagas nas universidades particulares.

Também teve expansão nas universidades públicas. Mas em números absolutos, a expansão das universidades particulares foi maior, muito maior mesmo. Isso levou às universidades particulares um exército de lumpemproletários.

Faxineiras, atendentes de call center, pedreiros e mecânicos.

Uma camada social semiletrada que não sobreviveria um semestre nas universidades públicas, justamente pelo ambiente acadêmico um tanto elitizado.

Nos anos em que fui professor de universidade particular, tive a experiência de ensinar para alunos que mal sabiam ler e escrever. Fico imaginando a reação dos meus professores e da maioria dos meus colegas se tivessem contato com esse perfil de aluno: sairiam bufando, resmungando, dizendo “essas pessoas não deveriam estar aqui”.

Por muito menos, já vi isso acontecer, vejo isso acontecer.

Na universidade particular, não é possível sair bufando e resmungando. Se o funcionário faz isso, ele é demitido. Simples assim.

Em ambiente empresarial, portanto, esse lumpemproletariado, alçado à condição de cliente, foi acolhido, teve que ser acolhido. Ironicamente, a lógica do mercado criou condições para o acolhimento.

O resultado foi um processo civilizatório impressionante.

A maioria dos meus ex-alunos da universidade particular não está trabalhando na área de formação, porque, infelizmente, não tem condições de sobreviver em um mercado de trabalho em retração e extremamente competitivo. Mas todos saíram bem melhor que entraram. Formação e conhecimento fazem milagres. Vi muitos pequenos milagres acontecer.

Um processo civilizatório!

São pais, mães, filhos, sobrinhos, primos, levando algo diferente para suas famílias, para o bairro, para a igreja. Não é possível precisar numericamente esse alcance social, mas ele é muito grande, muito grande mesmo.

Se tivéssemos um governo digno e honesto, a solução seria corrigir os erros cometidos pelo PT e continuar investindo nas universidades públicas, ampliar seus quadros docentes e administrativos, democratizá-la e popularizá-la ainda mais.

Tudo isso para acolher o lumpemproleteriado que, muitas vezes, é explorado e enganado pelas empresas privadas de ensino superior.

Como o governo não é sério, o movimento é o contrário do que deveria ser. O lobby das empresas privadas de ensino superior está na base dos ataques às universidades públicas. O objetivo é universalizar a precariedade intelectual. Pra isso, precisam nos destruir, nos aniquilar.

Não dá pra saber se eles terão sucesso. Dá pra saber que vamos resistir. Ninguém aqui vai pro abate calado, como se fosse boi manso.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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