Na primeira fotos vemos as mulheres depois de 1979, momento no qual o grupo Terrorista Talibã já havia tomado o poder, enquanto na segunda vemos a situação feminina antes do Talibã, no governo democrático
Maryia é uma jovem afegã que trabalha na secretaria especial da presidência de seu país, mais precisamente na pasta sobre a Rússia. É formada em direito e ciências políticas, representou o Afeganistão diversas vezes em eventos internacionais, como o World Festival of Youth and Students (2017), na Rússia. É fluente em russo, inglês, e sua língua natal, árabe. Representa seu país na plataforma Future Team, criada pelo governo russo. Ela escreveu esse relato como parte do grupo Born as Many, Grown as One. Como trabalha para o governo preferiu ocultar seu sobrenome, por uma questão de sobrevivência. A tradução do relato foi realizada por Laís Vitória Cunha de Aguiar, repórter dos Jornalistas Livres. Leia o relato, na íntegra, abaixo.
Meu nome é Mariya do Afeganistão e eu vivo em Kabul.
Eu era uma garota pequena quando a guerra começou no Afeganistão, assim que o governo entrou em colapso e o presidente da República Democrática do Afeganistão, Dr. Najibullah, foi morto pelo Taliban. Assim a guerra continuou até que a NATO (North Atlantic Treaty Organization) intervisse. Mas a guerra continuou da mesma forma, e prossegue até hoje.
Meu pai estava trabalhando para o governo Democrático como presidente do Partido Democrático na minha província, Parwan, por isso ele não pôde voltar para o Afeganistão, pois era possível que ele fosse morto como comunista ou apoiador do regime. Nós vivemos como refugiados em Moscou por dois anos, e depois fomos para o Tajakistão, onde eu, minha irmã e irmão terminamos o Ensino Médio em uma escola russa em Dushanbe. Após muito tempo vivendo fora de meu país, meu pai decidiu voltar a nossa terra natal, em 2008 e nós voltamos para Kabul.
Hamid Karzi era o presidente da República Islâmica do Afeganistão e tudo havia mudado com esse regime: pessoas, ideologias e o país. Tudo mudou negativamente. Nós começamos a viver e estudar em Kabul e no início foi muito difícil para uma garota que cresceu fora do país. Tudo era muito assustador, especialmente o comportamento das pessoas. Quando eu saía para compras, escola ou para ir ao escritório, me tratavam mal e especialmente outras mulheres. Vi homens que não respeitavam mulheres ou garotas vivendo normalmente, indo ao escritório ou estudar na universidade.
Então eu comecei indo a escola e assistindo 12 aulas de formação para que pudesse ter o certificado da escola afegã, e entrar na universidade com documentos afegãos.
Infelizmente não consegui passar pelos testes governamentais para estudar Direito e Ciência Política na Universidade de Kabul, que era a graduação que eu mais queria, para me tornar uma advogada ou pelo menos, algo para conseguir trabalhar no governo.
Quando não consegui passar no mais complicado teste, percebi que era impossível alcançar meu desejo. Muitos jovens que desejam realizar a graduação em um país estrangeiro, têm facilidades para realizá-lo, graças aos governos desses países, que às vezes disponibilizam facilidades, mas o governo afegão fez o sistema educacional muito complicado, e muitos estudantes são reprovados ou não sabem para qual faculdade serão selecionados, o que mata a fé dos estudantes esforçados de se tornarem, no future, alguém que gostariam de ser.
Depois fui para uma universidade privada começar a graduação em Direito e Ciência Política. Não era melhor que a Universidade de Kabul, mas eu precisava completar minha educação.
Eu estudei nessa faculdade, porém ainda encontrei muitas dificuldades, como má qualidade do ensino, má organização das aulas, administração da universidade ou atenção apenas ao dinheiro.
Por eu falar em alto e bom tom sobre a qualidade do ensino, os administradores da universidade pegaram meus documentos e me expulsaram. Dói muito pensar nisso e foi terrível porque eu era a liderança de todos os estudantes que queriam lutar por seus direitos. Meus amigos ficaram ao meu lado e não permitiram que a administração da universidade me expulsasse definitivamente.
Depois de enfrentar todos esses problemas, finalmente terminei a graduação e estava me preparando para conquistar um trabalho no Ministério de Relações Exteriores.
Primeiramente comecei um trabalho como uma estagiária, aprendi a trabalhar no escritório, mas infelizmente isso continuou por dois anos: fiquei sem salário por dois anos. O chefe não me ajudou em nenhum momento para conseguir trabalhar oficialmente no Ministério das Relações Exteriores. Trabalhar lá inicialmente foi interessante, pensei que lá estavam as pessoas mais bem educadas, com muitos valores e experiências no trabalho diplomático.
Pensei que por estarem exercendo uma tarefa for a do país, saberiam respeitar mulheres e seus direitos.
Mas muitos desses diplomatas eram homem que chegaram ao poder de uma forma muito fácil, como sendo parentes ou amigos de alguém que era chefe em algum departamento do ministério. Esse tipo de conexão no Ministério de Relações Exteriores fez com que eu perdesse a esperança, porque não conhecia ninguém e sabia que merecia trabalhar ali, já que sei russo, inglês, estudei Direito e Ciências Políticas.
Apesar da minha falta de esperança, continuei a trabalhar, e então comecei a ouvir algumas falas sobre como algumas mulheres e garotas fariam sexo com os chefes dos departamentos, para se tornarem oficiais do Ministério de Relações Exteriores, futuras diplomatas.
Algumas mulheres fizeram e provavelmente continuam a fazer porque ali, essa é a única maneira de trabalhar fora do país e conseguir salários mais altos, altas posições, alcançar poder e se tornar conhecida no Ministério de Relações Exteriores.
Fiquei chocada quando soube que muitos homens do ministério usavam as mulheres para seu benefício sexual: abusam e forçam garotas que querem ser bem sucedidas a fazerem sexo com eles. Se você quer sucesso, dinheiro, e trabalho fora do país essa é a única forma de alcançá-lo, a não ser que você tenha algum parente ou amigo bem posicionado na instituição A realidade é um risco muito grande para mulheres afegãs, especialmente para mulheres muçulmanas, mas mesmo assim elas se submetem a isso.
Quando comecei a testemunhar esse dilema, cheguei a conclusão de que o governo criado pelos EUA e pela NATO trouxeram a maior instabilidade econômica, corrupção, produção de drogas, a pior segurança possível em uma guerra sem fim, e sendo assim nunca iremos nos desenvolver ou encontrar um caminho próprio.
As mulheres são orgulho mundial, heroínas que defenderam nossa pátria no período de guerra com o Reino Unido, e até hoje, essas mulheres são as heroínas que trabalham quando seus maridos morrem na guerra, que protegem e criam seus filhos sozinhas, com pouquíssimo ou nenhum dinheiro. Eu vejo como o governo e como os homens dessa sociedade as humilham e insistem em fazer com que as mulheres façam o que não querem.
Deixei o Ministério de Relações Exteriores e fui encontrar trabalho na Representação Especial do Presidente, porque eles precisavam de alguém que soubesse russo, então consegui o trabalho, sem ser amiga ou parente de alguém.
Sou a única mulher no escritório e me sinto confortável aqui, tenho colegas legais, todos estudaram na Federação Russa e me respeitam. O escritório é parte da Administração Presidencial. O que acontece em outras partes da Administração e como as mulheres são tratadas, eu não sei. Mas tenho certeza que não deve ser muito diferente, há corrupção em todas as instâncias administrativas de meu país e mulheres podem enfrentar sérias dificuldades como as que narrei.
Agora eu vivo em um país como o Afeganistão, onde um dia, foi parecido com um paraíso da Ásia Central, por causa da sua natureza, cultura, segurança e economia baseada na agricultura.
Mas oportunidades são pequenas. Éramos uma nação feliz. Meus avós eram felizes por serem afegãos, mas agora, minha pátria mudou e eu não estou orgulhosa. Sou simplesmente uma garota afegã tentando sobreviver em um país atroz.
Não estou feliz com as mulheres sendo forçadas a seguirem um caminho que não merecem. Nunca terei orgulho disso. Sou uma garota afegã.