Senhor, porque sou cristão e me sinto melhor do que os outros por ser rico de dinheiro. Perdão por ser cristão e manter minha empregada doméstica há muitos anos num quarto sem janela, com menos de 2 metros quadrados, por estar ciente de que o chuveiro dela é levemente em cima do vaso e, sem box ou cortina, a obriga a enxugá-lo diariamente após cada banho. Perdão porque mandei buscar pra mim uma menina do interior para ser criada como filha e, na verdade trabalha na minha casa fazendo o que os meus filhos não fazem e não é tratada da mesma maneira que eles. Perdão porque sou amante de minha secretária, não suporto minha mulher mas preciso estar casado por causa do cargo que ocupo e, ainda assim, tenho a petulância de achar que meu casamento é superior ao amor que meu vizinho homossexual tem pelo seu companheiro. Perdão, Senhor, porque sou cristão e não protesto por frequentar um clube onde tem banheiros exclusivos para babás, e mais, porque saio exibindo-as vestidas de branco, como se fossem escravas, usando-as para esperar em nosso lugar nas longas filas dos restaurantes chiques onde elas não comerão. Perdão porque nossas famílias não comem à mesma mesa que os empregados, e, mesmo sabendo que somos iguais, nossas comidas são diferentes e de melhor qualidade, meu Pai. Perdão porque não conto histórias às minhas crianças, entregues à internet, e, quando estou amamentando aproveito para falar no celular, sem olhar o meu bebê. Perdão porque ajudo orfanatos mas jamais adotaria uma criança negra. Perdão porque sou advogada e votei num admirador da tortura. Perdão porque sou mulher e mesmo assim chamei a ex presidente de vaca. Porque sou contra a corrupção mas paguei “um por fora” para meu filho despreparado entrar na faculdade assim como fiz para ele ter carteira de habilitação. Porque nunca sonhei com um príncipe negro para a minha filha. Sou cristão e mesmo sabendo que Jesus nasceu numa manjedoura, aqui pra nós, meu Pai, não suporto pobre. Perdão porque não sou racista, mas não estranho a maioria branca na Tv e, na minha casa, no condomínio, na escola do meu filho, negros são só empregados e eu acho certo. Perdão por ser cristão e apesar do “vinde à mim as criancinhas”, quero armá-las, sou a favor da diminuição da maioridade penal, e não luto para que haja mais escolas e menos presídios; Por eu não me importar com o extermínio nas favelas, por eu não saber onde mora minha empregada, se tem filhos ou sonhos. Por que sou assim, Senhor? Que parte não entendi, se comungo todos os domingos? Perdão, porque agredi meu irmão provocando-lhe um galo na cabeça, logo depois da missa do galo. Perdão por ter agredido a mãe dos meus filhos na frente deles e ter gritado pra minha irmã que ela vai pro inferno só porque ama uma mulher. Perdão por ser um drogado lícito e tomar remédio para dormir, para acordar, para não ser ansioso, para fazer reunião, para transar e ainda mamar diariamente meu litro de whisky e me achar com moral para criticar a maconha do meu filho. Perdão pois mesmo sabendo que armas entram e saem ilegalmente do meu país, mesmo consciente de que todo dia morrem policiais, bandidos e inocentes cidadãos por tais balas, quero liberar seu porte. Perdão porque não me importo com o alto índice de feminicídio aqui e mesmo sabendo que Jesus defendeu uma adúltera apedrejada, votei num sujeito que acha que só as feias não merecem ser estupradas. Senhor, não sei se o meu caso tem jeito. Estou desesperado. Sou cristão e ontem passei a manhã na porta do CTI onde minha mãe está, tentando que os advogados convençam os médicos a autorizarem que ela assine o testamento. Perdão porque abandonei meu pai num asilo chique, sem visitá-lo não descansei enquanto ele não fez a partilha de nossos bens em vida. Perdão porque deixei meu avô na ala mais rica do hospital e só vou lá para pagar as cuidadoras que são, na verdade, suas únicas visitas. Perdão porque todo médico ou médica negra que olho tenho primeiro a certeza de que são enfermeiros.
Perdão porque na minha família de desembargadores abafamos os casos de abuso sexual por conta das aparências; porque somos contra o aborto, mas não no caso de minha filha, que engravidou do namorado pobre e resolvemos o problema numa clínica chique da Barra. Perdão porque sou espírita de mesa branca e detesto macumba; Porque meu filho deprimido tentou se matar, porque sempre recebeu mais dinheiro do que afeto, está numa clínica discreta e de alto nível em Brasília e eu minto para os meus amigos, tirando onda de que ele está passando uns dias curtindo nosso apartamento em Nova York. Perdão porque não entendi nada. Perdão por ser um embuste. Perdão por usar seu santo nome em vão.
Após feridos e mortos, e em dia de eleição do presidente americano, estamos próximos ao final do ano de 2020. Adquiri novos livros, reviro outros antigos, sei que de tudo fica um pouco, tudo vira história.
Na pandemia encontrei desenhos belíssimos de Noemia Mourão, artista plástica e esposa de Di Cavalcanti. Mistura-se, enlaça papéis, pensamentos atuais sobre desenhos antigos.
Recorte no texto de Ailton Krenak e desenho de Noemia Mourão*
“Outro dia fiz um comentário público de que a ideia de sustentabilidade era uma vaidade pessoal, e isso irritou muitas pessoas. Disseram que eu estava fazendo uma afirmação que desorganiza uma série de iniciativas que tinham como propósito educar as pessoas sobre o gasto excessivo de tudo. Eu concordo que precisamos nos educar sobre isso, mas não é inventando o mito da sustentabilidade que nós vamos avançar. Vamos apenas enganar, mais uma vez, quando quando inventamos as religiões. Tem gente que se sente muito confortável se contorcendo no ioga, ralando no caminho de Santiago ou rolando no Himalaia, achando que com isso está se elevando. Na verdade, isso é só uma fricção com a paisagem, não tira ninguém do ponto morto.
Trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados. E, quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que pode sair uma compreensão sobre a vida na Terra. Se você ainda vive a cultura de um povo que não perdeu a memória de fazer parte da natureza, você é herdeiro disso, não precisa resgatá-la, mas se você passou por essa experiência urbana intensa, de virar um consumidor do planeta, a dificuldade de fazer o caminho de volta deve ser muito maior. Por isso acho que seria irresponsável ficar dizendo para as pessoas que, se nós economizarmos água, ou só comermos orgânico e andarmos de bicicleta, vamos diminuir a velocidade com que estamos comendo o mundo – isso é uma mentira bem embalada.
A própria ideia de certificação, dos teste que são feitos com materiais que consumimos, desde a embalagem até o conteúdo, deveria ser posta em questão antes de a gente abrir a boca para dizer que existe qualquer coisa sustentável neste mundo de mercadoria e consumo. Estamos transformando oceanos em depósitos de lixo impossíveis de tratar, mas vocês, certamente, vão escutar um bioquímico ou um engenheiro espertalhão dizendo que tem uma startup que que vai jogar um negócio na água, derreter o plástico e resolver tudo. Essa pilantragem orienta, inclusive, a escolha de jovens que vão fazer especialização na Alemanha, na Inglaterra, ou em qualquer lugar,e voltam ainda mais convencidos do erro. Voltam, assim, transbordantes de competência para persuadir os outros de que comer o mundo é uma ótima ideia.
Enquanto as bases materiais da nossa vida cotidiana estão funcionando, operantes, a gente não se pergunta de onde vem as coisas que consumimos. Na maioria de tempo, as pessoas mal respiram ou têm consciência do que põem na boca para comer. Apenas quando há um desastre, os indivíduos, desplugados das fontes de suprimentos, começam a sofrer e a se questionar. Quem sobrevive a uma grande catástrofe costuma pensar em mudar de vida porque teve uma breve experiência do que é, de fato, estar vivo. Existem muitos povos vivendo situação de perdas, de catástrofe, de guerra. Ouvir sobre como essas pessoas agem para sair de um trauma profundo, olhar ao redor de si e recomeçar sua jornada nisso que chamamos “seguir vivendo”, pode ser instrutivo, mas não substitui a experiência.
Estou há dois anos vivendo na margem esquerda de um rio junto com outras famílias do meu povo que, do ponto de vista prático, tinham que ter sido removidas daqui, como o que aconteceu com o pessoal de Brumadinho, de Bento Rodrigues e outros lugares. Os Krenak não aceitaram ser retirados, quisemos ficar no local do flagelo. “Ah, mas vocês não tem água!” E daí? “Ah, mas vocês podem morrer aí!” E daí? Sabemos que esse lugar foi profundamente afetado, virou um abismo, mas estamos dentro dele e não vamo sair. É uma questão que incomoda, mas é preciso estar nessa condição para poder produzir uma resposta em plena consciência. Consciência do corpo, da mente, consciência de ser o que se é e escolher ir além da experiência da sobrevivência.”
in A vida não é útil – Companhia das Letras
* Ailton Krenak, líder indígena, pensador, ambientalista e escritor,66 anos, escolhido intelectual do ano, ganhador do prêmio Juca Pato, premiação realizada pela União Brasileira de Escritores, que reconhece autores que contribuem para o desenvolvimento da democracia brasileira.
*Noemia Mourão(1912/1992), pintora, cenógrafa e desenhista. Estudou e casou-se com Di Cavalcanti.
Cantou o poeta Gilberto Gil, certa feita, que sentir é questão de pele e amor é movimento. Sempre, aqui e agora, estanca-se amor.
coração e pele de uma gente de origem
A pele da terra é sua floresta, sua caatinga ou cerrado, mangue, restinga. Nada disso sabem no ringue, imbecis apostadores. Como tu és ou não, eu já não santo ou saberei. Sei de mim, filho da terra, Terra, como ti.
Querem fazer do boi um ser que combate o fogo. Tadinho do boi, na Índia ser tão respeitado, as vacas da maternidade, tolerância, mansidão, sustento do humano.
Aqui, profana vaca muge heresias. Novos ventos, leitos banais na ocupação de nossa equação? Estranha aritmética no fogo da razão.
Crianças Kawaiweté, em feliz pedagógica canoa e exercício de equilíbrio, prumo e rumo.
Resta-nos apenas a terceira margem do rio, penso como Guimarães Rosa, mandar fazer uma canoa. Aprendi que coisa séria em canoa é o remo, seu rumo.
Sem fim seguem absurdas afirmações da função dos animais. Atribuem qualidades ao gado de corte. De fato é o boi nosso churrasco, mas fogo não é seu apreço.
Preço da carne são outros 500. Índio pensa no desequilíbrio da água e seu brilho.
À margem do Xingu, na pesca diária da vida e educação indígena.
Fico pensando na paz, ausência de excitação, estado de calma. Não o Buda e seu prêmio de afastamento do mal e a eliminação dos demônios, mas o largar as armas, entender a palavra. É prêmio da paz a serenidade? Creio que sim, tal lavar a roupa da noite à beira de rio, tão puro, na alvorada de cada dia.
Alvorada entre os povos tradicionais e seus asseios e gratidão, ciência de quem sabe.
Quando nasci havia um pedido de paz, recordo bem nas igrejas da época. Vivi dia assim de paz apenas entre indígenas, homens fortes de luta, luto e senha. Há uma paz entre grandes guerreiros, por mais que ameacem. Descobrimos quando velhos que as armas apenas entristecem, vingam, atiçam a sanha.
Ropni, o cacique Raoni, o mestre das palavras e seus calibres no alvo de nosso peito, representa 5 séculos do brado dos povos nativos daqui, de um planeta Terra. Raoni sempre disse aos kuben, nós mesmos, os homens brancos, que os espíritos lhe dizem sobre a destruição das florestas e suas consequências.
A paz do cacique é a saúde da Terra. Sempre voltamos ao começo na esperança da paz.