Há uma cisão entre os juízes e juízas no Brasil. Uma maioria punitivista se contrapõe a uma minoria garantista. O que defendem os garantistas? O que defendem os punitivistas? O que isso tem a ver com a democracia e com o autoritarismo? O que isso tem a ver com o superencarceramento em vigor no Brasil? O que isso tem a ver com a prisão de muitos réus quando a sentença ainda pode ser alterada? São essas perguntas que buscaremos responder.
A juíza Laura Benda e o criminalista e professor Sérgio Salomão Shecaira trataram desses temas em evento do Centro Acadêmico XI de Agosto, na segunda 13/08, sobre a presunção de inocência e o caso do ex-presidente Lula.
Se, desde 1991, existe uma Associação Juízes para a Democracia (AJD) é por que há juízes que não são pela democracia. Assim a juíza, presidenta do Conselho Executivo da AJD, abriu sua exposição. Lembrou que os juízes e as juízas garantistas [que garantem aos réus os direitos estabelecidos na Constituição e nas leis] são uma minoria no Brasil e têm sido perseguidos pelos Tribunais Superiores. Lembrou o exemplo do juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, alvo recente de penalidade administrativa de censura aplicada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo.
A condenação de Corcioli foi repudiada pela AJD:
“O problema, de demasiada gravidade, é que os fatos que ensejaram a sanção consistem em decisões proferidas pelo referido magistrado paulista na esfera de sua independência funcional e que poderiam ser objetos de impugnação pela via recursal adequada. Todavia, substituiu-se tal via para o intimidatório caminho correcional.
Importante considerar que grande parcela das decisões judiciais em questão têm a característica de limitarem a atividade punitiva estatal e de privilegiarem a liberdade do ser humano sobre a custódia. Acrescente-se que tais atos decisórios foram devidamente fundamentados em dispositivos legais e constitucionais em vigor no Brasil e em sólidas doutrina e jurisprudência.”
Podemos dizer, em outros termos, que a atividade de Corcioli, que limitava o punitivismo do Estado e era pautada pelo respeito às garantias e aos direitos dos cidadãos estabelecidos na Constituição e nas leis, foi punida pelo Tribunal de Justiça paulista. Corcioli faz parte da minoria, a que se referiu Laura Benda, de juízes garantistas.
O Estado Democrático de Direito, que tem na presunção de inocência um de seus principais alicerces, pressupõe controles para evitar o arbítrio do Estado contra o cidadão, continua Laura Benda. A tese da juíza é reforçada pela nota que a Associação Juízes para a Democracia publicou recentemente em defesa do Estado Democrático de Direito:
“As diversas instâncias do Poder Judiciário estão se sentindo compelidas a adaptar suas pautas ao calendário eleitoral, e mesmo o Supremo Tribunal Federal, que deveria ser o guardião da Constituição Federal, passa a realizar julgamentos modificando entendimentos jurisprudenciais consagrados para atingir (ou não!) determinados atores políticos. De outro lado, juízes com posicionamentos ideológicos divergentes do campo político majoritário são perseguidos e sofrem procedimentos administrativos com vistas à punição.
Todas essas circunstâncias levam a Associação Juízes para a Democracia a vir a público para denunciar que a ruptura do Estado Democrático de Direito no Brasil já é uma realidade, aprofundando-se a cada dia e ampliando os termos da violação cotidiana à Constituição e às liberdades cidadãs.”
O professor Sérgio Salomão Shecaira dedicou sua preleção ao juiz Roberto Corcioli. Qualificou-o de íntegro e vítima de um “Tribunal de Justiçamento, que professa uma ideologia fascista”. Ele revelou sua esperança que a condenação seja revertida.
Shecaira considera ridícula a discussão sobre a presunção de inocência, uma vez que o texto constitucional não deixa nenhuma margem a dúvidas: “Ninguém”, e ele repete, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” O que, então, mudou para o STF colocar em discussão esse princípio constitucional? A resposta para ele é que precisavam “mandar para a prisão alguém que ganhará as eleições se não for condenado”.
Ele entende que a “magistratura está cindida. Poucos aplicam a lei. O punitivismo é representado pela maioria dos juízes”. Conta ele que 45% dos habeas corpus levados ao Superior Tribunal de Justiça tem origem em São Paulo, embora o estado tenha 22% da população. Qual seria a razão, indaga ele e responde: “O Tribunal de Justiça de São Paulo não cumpre a lei, nem para questões sumuladas, nem para cálculo de penas. E estão indo para a cadeia os três Ps: pobres, pretos e periféricos”.
Outro dado, que reforça o punitivismo dos magistrados paulistas, nos é trazido por Luciana Zaffalon em sua tese doutorado: São Paulo tinha 221.636 pessoas presas em 2016. Ou seja, com 22% da população do país, o estado de São Paulo “concentra aproximadamente 36% da população prisional do país”.
Rosa Weber não tinha domínio do fato
Ele volta um pouco na história para lembrar do “Mensalão” (Ação Penal 470 – AP470) e sua relação com a Lava Jato. Lembra que Rosa Weber, que tinha Sérgio Moro como assessor, proferiu a pérola: “Não tenho prova cabal contra Dirceu – mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite”. Lembra também que Claus Roxin, que desenvolveu a teoria domínio, afirmou que o uso feito do domínio do fato na AP470 não cabia na teoria dele. Declara Shecaira, por fim, “Rosa Weber não tinha domínio do fato.”
Aquilo que o “Mensalão” teve de sui generis, condenar sem provas, foi radicalizado com a Lava Jato. “Se for para aplicar a lei, não dá para condenar Lula. Sérgio Moro está lá para condenar. Ele não é um juiz. Falta a ele um dos princípios mais caros aos magistrados: olhar o caso desde o princípio para ver se o réu é culpado ou não”.”, afirma.
O jurista José Afonso da Silva, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, em parecer sobre o caso Lula, lembrado por Shecaira, enfatizou:
“O princípio ou garantia da presunção de inocência tem a extensão que lhe deu o inciso LVII do artigo 5o da Constituição Federal, qual seja, até o trânsito em julgado da sentença condenatória. A execução de pena antes disso viola gravemente a Constituição num dos elementos fundamentais do Estado Democrático de Direito, que é um direito individual fundamental.”
Você errou? Não tem problema, é só continuar errando
Disse Lênio Luiz Streck sobre o voto de Rosa Weber no Habeas Corpus de Lula: “Votar contra a presunção da inocência em nome do ‘princípio [sic] da colegialidade’ é manter coerência? Colegialidade é só forma? É puro consenso? De minha parte, afirmo que, se a opção fosse por ser coerente com o que há de mais fundamental na democracia, o voto seria pelo que está na Constituição Federal de 1988, a presunção da inocência. Isto porque a integridade controla e baliza a coerência. Seja coerente sem ter integridade, e você pode ser coerente no erro. É algo como ‘você errou? Não tem problema, é só continuar errando.’”
Shecaira agrega o voto de Rosa Weber à recusa de Carmem Lúcia em colocar em votação pelo pleno do STF a questão do cumprimento da pena quando ainda existe a possibilidade da sentença pode ser modificada: “A razão é ideológica. Não se quer que tenhamos um presidente de esquerda no Brasil. Há uma evidência solar que agem contra os interesses do povo”.
Notas
1 Para ver a nota pública “A censura aplicada ao juiz Roberto Corcioli fragiliza o Estado Democrático de Direito”, publicada pela Associação Juízes para a Democracia:
https://ajd.org.br/nota-publica-a-censura-aplicada-ao-juiz-roberto-corcioli-fragiliza-o-estado-democratico-de-direito/
2 Para ver a nota pública, da Associação Juízes para a Democracia, em defesa do Estado Democrático de Direito:
https://ajd.org.br/nota-publica-em-defesa-do-estado-democratico-de-direito/
3 Para ver o parecer do jurista José Afonso da Silva:
https://marins.jusbrasil.com.br/noticias/561691906/parecer-do-jurista-jose-afonso-da-silva-contra-prisao-de-lula-e-protocolado-no-stf
4 O artigo de Lênio Luiz Streck sobre o voto de Rosa Weber está em:
A colegialidade, o direito e moral em guerra e a sinuca de bico do STF. Por Lenio Streck
5 A íntegra da tese “Uma espiral elitista de afirmação corporativa: blindagens e criminalizações a partir do imbricamento das disputas do sistema de justiça paulista com as disputas da política convencional”, de autoria de Luciana Zaffalon Leme Cardoso, está disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/18099.
6 Esse texto tem o selo 009-2018 do Observatório do Judiciário.
7 Para ver a apresentação e o convite à participação no Observatório do Judiciário, veja: