Por Aloísio Morais
Quem espichar o olhar pela janelinha do avião, ao chegar ou sair de Brasília, logo terá sua atenção despertada por vários grandes círculos lá embaixo, ao lado de extensas áreas de plantação quadriculadas. Aos olhos de um ET é possível que aquilo pareça algo como um grande campo de pouso à espera de seu disco voador, mas, na verdade, aqueles círculos são os pivôs centrais, que funcionam como um grande braço de chuveiro giratório usado para molhar as sementes ou a plantação que estão embaixo, esta, sempre viçosa.
Ali, em pleno entorno de Brasília, nas barbas da capital federal, onde, por coincidência, serão realizados o Fórum Mundial da Água e o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), entre os próximos dias 17 a 23 deste mês de março, está a maior concentração de pivôs centrais do país. Setenta e cinco por cento deles estão apenas nos municípios de Cristalina, em Goiás, e nas vizinhas Unaí e Paracatu no lado de Minas Gerais, garantindo grande produção de grãos do agronegócio o ano inteiro, às vezes com até três safras anuais. Não é à toa, nestes tempos de golpe, que no ano passado o agronegócio registrou um crescimento de 13%. A agricultura consome 70% da água usada pelo homem, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), e esse percentual vale também para o Brasil.
Cristalina é a terra da irrigação e quem sofre as consequências são os rios Samambaia e São Marcos, da bacia do Rio Paraná. Até o ano passado eram 716 pivôs em 6.162 quilômetros quadrados, após os primeiros deles surgirem na década de 1980. Ali são plantados 45 produtos diferentes, dentre os quais a soja, milho, feijão, café, capim, algodão, trigo etc., etc.
Até aí, tudo bem, afinal, o país precisa produzir e precisamos de alimentos. Ôpa, eu disse tudo bem? Não, nem tudo está bem por ali. Fala-se muito que o Rio São Francisco está secando a cada ano e, em uníssono, dizem que isso se deve ao desmatamento, a criminosa destruição do cerrado ou à mudança climática. Sim, o desmatamento em suas margens ocorre há séculos, inclusive, com a destruição de árvores do cerrado para alimentar de carvão a caldeira do vapor Benjamim Guimarães desde 1925, após navegar pelos rios Mississippi, nos Estados Unidos, e Amazonas.
Uma praga
Pois bem, durante 17 dias a reportagem dos Jornalistas Livres percorreu 4.800 entre Belo Horizonte e a Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, com atenção especial voltada para o Noroeste de Minas, no Aquífero Urucuia, onde fica o Grande Sertão: Veredas, assim chamado pelo escritor João Guimarães Rosa, que percorreu por ali e deu asas à imaginação após ouvir histórias de vaqueiros e jagunços. Mas hoje, coitado, se “Joãozinho” voltasse ao Noroeste de Minas e conversasse com o povo dos lugares certamente derramaria lágrimas aos borbotões.
Durante a viagem pudemos concluir que, na verdade, a culpa não é apenas da destruição do cerrado e suas veredas. O que está secando as águas do São Francisco, o chamado rio da integração nacional, são os pivôs centrais da irrigação desenfreada e as extensas plantações de eucalipto, destinado a produzir o carvão que alimenta as famintas bocas dos alto fornos das usinas siderúrgicas mineiras.
O eucalipto, uma planta exótica originária da Austrália que gosta bastante de água para crescer, pôde ser visto em toda parte, em toda a extensão da viagem até o Oeste do Mato Grosso, contribuindo seriamente para a devastação do cerrado, além do agronegócio. Hoje, o eucalipto é responsável por 9% do Produto Interno Bruto (PIB) de Minas e ocupa, por baixo, 2% do território mineiro. Virou uma praga. Parece até que passou a ser usado para tornar certos latifúndios ‘produtivos’ e, assim, escaparem das ocupações dos sem-terra. E onde tem eucalipto só há ele, xô passarinhos e a fauna e flora do lugar.
Autor de tese sobre desertificação no semiárido mineiro, Walter Viana, responsável pela fiscalização ambiental na Superintendência de Meio Ambiente e e Desenvolvimento Sustentável (Supram) no Norte de Minas, assim como outros ambientalistas, defende a proibição de novos plantios de eucalipto na região como forma de garantir a água. A cultura do eucalipto consome 230 litros de água por metro quadrado plantado a mais que o cerrado, além de provocar o rebaixamento do nível freático em meio metro por ano. Da média histórica de precipitação pluviométrica no Norte de Minas, por exemplo, de mil milímetros/ano, o eucalipto consome sozinho 800 milímetros. E como o cerrado precisa de 500 milímetros, há, portanto, um déficit de 300 milímetros.
Ataque duplo
No Noroeste de Minas, então, o diabo juntou a fome com a vontade de comer. E quem paga o pato é o pobre Rio São Francisco e tudo o mais que está às suas margens até desaguar na divisa de Alagoas com Sergipe “para formar o Oceano Atlântico”, como gostam de brincar os ribeirinhos. De um lado a irrigação do agronegócio chupa a água das nascentes dos rios que dão vida e volume ao Velho Chico. De outro lado, as plantações de eucalipto sugam a água do solo e comprometem o lençol freático, secando as veredas, justamente os locais onde estão as nascentes de água. Isso é fato e deixa desesperados os produtores e aqueles que se beneficiam das águas dos afluentes do São Francisco. E o que hoje está ruim, amanhã estará pior, sem dúvida, se nada for feito.
Às margens do Rio do Sono, o distrito de Paredão de Minas retrata bem a situação. A vila pertence ao município de Buritizeiro e foi o lugar escolhido por Guimarães Rosa como local onde o bando de Riobaldo atravessou o rio para o embate final com Hermógenes. Ali, no centro do povoado, Diadorim cravou a faca em Hermógenes, que sucumbiu, mas foi ferida mortalmente. Paredão está cada vez mais com ares de ‘cidade fantasma’, devido ao êxodo de seus moradores, diante da falta de alternativas que garantam a sobrevivência.
“Hoje estou parado com pescaria porque não temos água nos rios, que estão secando por causa do eucalipto. Estão fazendo bolsão na corrida da água, que gera oxigênio para a água, e aí os rios estão todos mortos”, conta Adailton da Silva Pamplona, pescador registrado desde 1992 na Sudep.
“Estão acabando com as veredas, que são o minador (as nascentes d’água). Nossos buritis estão acabando desde que entrou aqui a Fazenda Sendas, do Arthur Sendas. Cada dia que passa pior está ficando, é mais eucalipto e desmate. O Sendas tinha gado, mas aí veio a Gerdau, comprou a fazenda e não deixou nada. Eles vieram aqui no Paredão e doaram bicicletas e uns livrinhos. Por que não deram 10 mil reais para a gente fazer uma faculdade, para preservar a natureza? Não, eles estão comprando a gente com bicicleta. Nós precisamos é que o turista venha à nossa região ver as belezas que tem”, completa Adaílton, que acaba não contendo as lágrimas.
Os bolsões a que Adaílton se refere são grandes buracos feitos na terra onde a água de chuva corre no meio dos eucaliptos. A água é represada e forma uma grande piscina, um artifício usado como forma de garantir a umidade do solo em favor dos eucaliptos nos tempos de seca. Isso pode ser visto, por exemplo, numa extensa plantação de eucalipto em Buritizeiro, nas terras onde o falecido empresário carioca Arthur Sendas criava gado solto no cerrado. Com sua morte em 2008, as terras foram adquiridas pela Siderúrgica Gerdau, que derrubou tudo para plantar eucalipto. A Fazenda Porto Alegre tem uma área de 1.550 hectares, o que equivale a cerca de 1.550 gramados de um campo oficial de futebol. Imagine o tamanho! E, ironicamente, ao seu redor não faltam placas de “Preserve o meio ambiente”.
Um prefeito assustado
Outro que está assustado com as mudanças que vêm ocorrendo na região é o prefeito de Aruana de Minas, Ronaldo Verdadeiro, do PP. O município, distante 238 quilômetros de Brasília, se auto-intitula como “A Cidade das Cachoeiras”. “Nós temos um potencial muito grande em relação à água. Temos mais de 20 cachoeiras, entre elas a Cachoeira da Jiboia, com 144 metros de queda, e temos vários rios, como o São Miguel, que nasce em Formosa, em Goiás, e deságua no Urucuia, afluente do São Francisco. Estamos enfrentando uma situação muito difícil. O ano de 2017 foi difícil e 2016 foi muito mais difícil ainda. Hoje (em novembro passado) estamos com dois caminhões-pipa levando água a todos os cantos do município, principalmente nos cinco assentamentos do Incra e outras comunidades, levando água para beber e para os animais. Isso é cada vez mais frequente. Está muito difícil”, conta Verdadeiro.
“Nós temos aqui a localidade de Canguçu, onde nunca precisou levar água lá e agora foi preciso, porque o córrego Pasto dos Bois está secando. Da ponte pra baixo secou, coisa que há muitos anos a gente não via. Ele deságua no Rio São Miguel. Por isso estamos fazendo a nossa parte com um projeto com a Emater de cercamento de nossas nascentes. A Emater já fez um levantamento de todas as nascentes em 14 municípios e encaminhou para o Ministério do Meio Ambiente. São Pedro está mandando menos chuva porque o homem degradou o meio ambiente. Pra mim tem duas coisas que estão provocando isso, o desmatamento da Amazônia e os pivôs centrais”, avalia o prefeito.
“A região nossa aqui é uma das maiores regiões irrigadas, com os municípios de Unaí e Paracatu. Produz muito, produz mas é preciso produzir com responsabilidade. Não adianta produzir e destruir de outro lado. Em Unaí tem uma família lá que é a maior produtora de feijão do Brasil, os Manica. Do jeito que as coisas estão caminhando aí a gente fica muito preocupado. Aqui na divisa com Unaí tinha uma das maiores veredas, mas destruíram, tocaram fogo. As cachoeiras estão ameaçadas, a própria Jiboia só recuperou agora nos últimos dias por causa das primeiras chuvas. Devido à escassez, hoje, na área rural, já existem cerca de 350 a 400 cisternas com capacidade para 20 mil litros de água para captar água de chuva, num trabalho da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco)”, acrescentou Verdadeiro.
Três safras
A secretária de Meio Ambiente e Turismo de Aruana, Ivone Ferreira, percorre bastante a região e também tem muito para contar: “Esse verão foi muito preocupante pra nós. Nós promovemos uma Semana do Turismo com alunos da rede pública e quando chegamos na Cachoeira da Jiboia a água não chegava nem a cair embaixo de tão pouca que tinha. Eu cheguei até mesmo a pensar que a cachoeira fosse secar, porque são muitos pivôs lá em cima, além do represamento das águas. Estão fazendo lavoura com três safras por ano usando os pivôs centrais. Eles plantam na época de chuva e na outra, no período de seca, usam a água dos pivôs, só que com isso eles estão fazendo três safras, quando o correto seriam duas. Vários rios e riachos secaram aqui e não secavam antes. Temos 33 cachoeiras aqui e a gente fica com medo de perdê-las”, conclui Ivone.
Poço salvador
Mais acima, no extremo Noroeste de Minas, em Serra das Araras, distrito de Chapada Gaúcha, o pequeno produtor rural Saul Durães e seu filho, Júnio, produzem feijão, milho, arroz e tem algumas cabeças de gado. No final do ano passado eles viveram uma situação dramática ao verem o córrego Marimbas secar e, temendo o pior, acabaram partindo para o que muitos agricultores da região estão fazendo: para garantir água estão pagando caro pela perfuração de poços artesianos. Saul acabou obrigado a reunir suas economias e pagar R$ 15 mil pela perfuração de um poço de 120 metros de profundidade.
“Estou com 74 anos, sou nascido e criado aqui e nunca vi o rio Marimbas seco. A primeira vez foi esse ano. Aqui tinha muito peixe, surubim, jacaré, sucuri. Hoje não tem nem piaba. O problema é o desmatamento. Estão pegando o cerrado para fazer carvão, os rios estão secando e enchendo de areião. Várias empresas vieram plantar eucalipto nas cabeceiras dos rios. Todos os que secaram têm influência de eucalipto nas cabeceiras. Estava sustentando a criação com água armazenada até que choveu. Não tinha água no córrego de jeito nenhum. Os vizinhos também estão todos prejudicados. É só prejuízo. Com as primeiras chuvas, tem 23 dias que o rio Marimbas voltou a correr. Da barra até a cabeceira ele abastece 79 famílias. E nós estávamos com 47 famílias prejudicadas por causa da seca”, relata Saul.
Em Minas, onde está a “produção” de 78% das águas do Rio São Francisco, segundo estudiosos do assunto, estima-se que um percentual de 70% de seus tributários estão secos ou estão secando, lembra o agrônomo e deputado federal mineiro Zé Silva, do Solidariedade, que preside na Câmara a Frente Parlamentar em Defesa dos Rios Brasileiros, hoje reunindo mais de 200 parlamentares. “Nossos rios estão morrendo de sede” gosta de dizer, repetindo o que dizia há anos o falecido jornalista e escritor mineiro Wander Piroli.
Uma ameaça
O Brasil está entre os dez países com a maior área irrigada do planeta, mostra estudo feito pela Agência Nacional de Águas (ANA). De acordo com o Atlas Irrigação, o uso da água na agricultura irrigada atualmente no país tem 6,95 milhões de hectares que produzem alimentos utilizando diferentes técnicas de irrigação. A pesquisa mostra ainda que o número representa apenas 20% da área potencial para a atividade, o que é preocupante.
Isso explica por que a população do Oeste baiano também vem sofrendo com a falta d’água. Quem entrar no Google Earth, por exemplo, e dar uma chegada àquela região baiana vai ver que ela também está cheia de pivôs centrais sugando as águas dos rios. Isso acabou levando a população da cidade de Correntina a sair às ruas, em novembro, para botar a boca no trombone e protestar contra a falta d’água, que chegou ao ponto de secar as torneiras, devido ao baixo volume do Rio Arrojado.
Mas o drama da população só chamou atenção quando cerca de mil pessoas entraram nas fazendas Igarashi e Curitiba, onde quebraram os pivôs centrais de irrigação e derrubaram as instalações elétricas. Está havendo um “hidrocídio” no país, alertou Roberto Malvezzi, o “Gogó”, da Comissão Pastoral da Terra e do Conselho Pastoral dos Pescadores na Região do São Francisco, ao denunciar a destruição dos mananciais. Vale lembrar que nos últimos dez anos o cerrado, que abrange 12 estados brasileiros, perdeu mais de 50 mil quilômetros quadrados, algo bem maior que o estado do Rio de Janeiro.
Isso faz com que a guerra pela água fique cada vez mais acirrada. E a coisa está tão grave que 11 bispos de 16 dioceses banhadas pelo Rio São Francisco se mobilizaram e divulgaram um documento reivindicando uma moratória de dez anos para a região do cerrado e um repouso sabático para os principais biomas brasileiros.
No oeste baiano corre a informação de que outorga, a autorização federal ou estadual para uso de água dos rios, chega a custar a propina de R$ 1 milhão. Hoje, uma fazenda com outorga é bem mais valorizada do que a que não possui a autorização. Por essas e outras, cada um vai se virando como pode e a sede pelo lucro rápido fez, por exemplo, com que o fazendeiro paulista Luzenrique Quintal tivesse a cara de pau de fazer uma transposição das águas do Rio Araguaia para as suas duas fazendas em Goiás, para abastecer os pivôs centrais. A coisa foi tão acintosa que a canalização acabou interditada.
Para terminar, vale registar que no último dia 5 cerca de mil mulheres sem terra ocuparam a fábrica de papel e celulose da empresa Suzano, em Mucuri, no extremo sul da Bahia, divisa com o Espírito Santo. Uma reclamação de destaque da ocupação foi o plantio desenfreado de eucalipto na região. Elas denunciaram que os monocultivos têm provocado uma grande crise hídrica na região por conta do alto consumo das árvores, que, “plantadas sem responsabilidade social e com objetivos financeiros”, têm secado os mananciais de água doce. Mais uma prova de que o eucalipto está se tornando uma praga nacional.
Colaboraram Cynthia Camargo e Henrique F. Marques