Matais de Incêndios é uma ação colaborativa realizada na Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Mogi das Cruzes, SP, a partir de um villancico de natal. O projeto integra a série “Epifanias” – um conjunto de intervenções que tenho proposto a partir de minha vivência em campo pelo Brasil e por países vizinhos, anualmente, por ocasião do solstício de verão. Meu trabalho como artista está ligado a uma autoafirmação como latino-americano, buscando pontos de contato, especialmente por meio da cultura popular tradicional e do deslocamento de paisagens sonoras.
O villancico é um gênero musical de origem ibérica amplamente difundido nas Américas (portuguesa e espanhola) durante o período colonial. Nos países de língua castelhana, os villancicos continuam sendo atualizados. No Brasil, com a proibição da dança no interior das igrejas no início do século 18, esse tipo de cantiga foi caindo em desuso porque, ao que tudo indica, tinha a função do canto e da dança em frente ao presépio.
Nos anos 1980, a curiosidade de um historiador, Jaelson Trindade, fez com que a única partitura do gênero fosse descoberta por aqui. As partes de “Matais de Incêndios” estavam sendo usadas como enchimento da capa dura de um livro em Mogi. Junto delas, estavam mais 10 partituras – todas hoje conhecidas como “Grupo de Mogi”. Os documentos apontam para a Ordem Terceira do Carmo. Alguns anos depois, o trabalho musicológico foi realizado por Paulo Castagna, da UNESP, que restaurou e editou as partituras. Conheci a música no final dos anos 1990, com sua primeira gravação. A peça foi executada e gravada algumas vezes, inclusive fora do Brasil. Desde o início, essa história sempre me tocou.
Quando passei a estender as vivências de campo por países como Bolívia, México, Peru e Chile, passei a perceber similaridades nos cultos tradicionais em torno do Menino Jesus (tido como o Sol). Comecei a ligar os pontos. Em La Tirana, pequeno povoado isolado no deserto do Atacama, por exemplo, presenciei os devotos dançando com o Menino nos braços, tirado do presépio da igreja. Daí veio inspiração para “devolver” o villancico à sua origem.
Então passei a contatar a Irmandade de Mogi, que é uma ordem de irmãos leigos, para propor a ação. E, em paralelo, montar um grupo musical integrado por especialistas no repertório antigo e tradicional. Paulo Castagna liderou a empreitada, que contou também com outra frente, a dança, recriada por Luanna Jimenes, performer ligada ao contexto da arte contemporânea.
Na semana anterior, montamos o presépio na igreja (a Irmandade havia deixado de fazê-lo havia uns anos) e, assim, numa ação entre amigos, conseguimos devolver o “Matais de Incêndios” para o Carmo de Mogi no dia 18 de dezembro de 2016.
Neste natal, estamos a compartilhar o vídeo, que é um registro da performance, também realizado de forma colaborativa. Cerca de 300 anos depois, mais do que dar conhecimento do villancico à sua comunidade original, este trabalho aparece para descumprir uma antiga proibição colonial e reativar a memória: nossas raízes estão fincadas numa América pré-colombiana, onde o culto ao Sol sempre se fez necessário.