O rapaz gritava ajoelhado: pegaram até meus documentos! Ao lado, uma adolescente ninava uma boneca abrigada do choro da chuva num posto de gasolina junto a outros 300 seres humanos varridos de sua própria existência. Quando um ser humano sofre, todos sofrem.
É tristeza de doer os ossos.
“De um lado esse carnaval, do outro a fome total”; num domingo chuvoso de uma virada cultural, os versos de Gil ornam com aquele território.
Uma criança, sabe-se lá que idade tinha, saiu ressabiada da multidão munida de um cachimbo de crack, de sua curiosidade e incumbida de uma missão: saber quem eu era. Mostrei as fotos, mas ele queria ver minha cara, meus olhos. Ali, mais vale sua intenção impressa em sua postura, seus gestos, seu olhar, do que seu discurso. Então vc é dos Diretos Humanos, afirmou a criança já voltando à multidão. Aquela autoridade portadora de duas câmeras fotográficas já não era uma ameaça pra eles.
Sandálias, óculos, colchões, bolsas, bíblia, broches, toucas, cabides, sofás, estantes, pratos… a casa de todos espalhada pela sarjeta depois do tsunami “apolítico”, que não se manifestava desde 2012.
-Olha o que eu achei, a adolescente mostra uma bala de revolver recolhida a pouco; e completou: revolver ninguém perde, né?
O Largo Coração de Jesus era um vazio molhado cheio de restos.
O colega fotógrafo francês que surgiu ao meu lado na chuva resumiu aquela cena trava-linguas: Tristes… Tristes… Tristes Trópicos*.
*Livro do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss escrito na década de 1930 após sua viagem ao Brasil. Mas também podia ser a música de Itamar Assumpção:
“O trópico tropica
Emaranhado no trambique
A treta frutifica
E tritura todo o pique
A trapaça trina e troa
E extrapola cada dique
O tratado é intrincado
Destratado é truque chique
O grito atravancado
Tranca até que eu petrifique
Tristes gregos e troianos
Desbragado piquenique”
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