O Brasil era todo novo em 2003. Lula havia sido eleito com dois a cada três votos válidos no segundo turno e Dona Marisa chegava de vermelho para colorir o Alvorada. Era tudo novidade. A imprensa, acostumada a lidar com os salamaleques, cerimônias, formalidades e rapapés presidenciais, tinha prazer em fazer piada do jeito despachado do casal. Uma notinha maldozinha sobre o churrasco no jardim, um aposto no texto da reportagem que mencionava o frango com polenta que o casal adorava comer. Dona Marisa não era madame. A cozinha do palácio passou a ter buchada, arroz e feijão com bife e bacon na couve. Foi fotografada mais de uma vez vestindo legging, tênis e sem maquiagem.
Toda a imprensa queria entrevistá-la. Ela negava sem meias-palavras a todos os pedidos. Principalmente aos das revistas femininas, ávidas em perfilá-la e levá-la para estúdios fotográficos de profissionais acostumados a retratar modelos famosas. Prometia-se roupa de grife, foto de grife, maquiagem de grife e até jornalista de grife para convencê-la a dar entrevista. Eu era repórter sem nome famoso, só mais uma na lista dos queriam conversar pela primeira vez com Dona Marisa no papel de primeira-dama. Trabalhava na revista popular Criativa, da Editora Globo, nada bem vista pelo Partido dos Trabalhadores (PT). De “grife” a publicação também não tinha nada. Naquela época, a revista era voltada para jovens mulheres que, como eu, se dividiam entre o trabalho e a vida doméstica. Por pesquisas, sabíamos que a maioria fazia isso tudo sem marido.
De Dona Marisa colecionei negativas de entrevista desde a posse. Até que decidi fazer o que toda mulher faz quando precisa saber mais de alguém: falar com as amigas. Fui para São Bernardo, e lá comecei pelo Sindicato dos Metalúrgicos. Escolhi a parte mais convidativa de qualquer lugar: a cantina. Logo descobri como Luiza de Farias tinha virado a “Tia da Cantina” por causa de Dona Marisa, por exemplo.
A Tia, como era carinhosamente chamada, era líder comunitária de uma favela e conheceu Lula em 1980, pouco antes de ele ser preso. “Fui cozinhar pra peãozada que ia protestar para soltarem o Lula. Fazia linguiça, vendia Guaraná e pinguinha. Apinhava de gente”, contou. Foram Marisa e Lula que a convidaram para trabalhar no sindicato. Eles sabiam que Tia morava num cômodo com os seis filhos e combinaram que ela só ia pagar o aluguel depois que o negócio decolasse. “Vendia muito Domecq, pinga, Jurubeba, cerveja e comida de homem: arroz e feijão, caldo de mocotó, costela assada, sarapatel, maionese…”. Em 2003, a Tia já estava há 22 anos no sindicato e, nesse meio tempo, comprou terreno, construiu sua casa. Quando dona Marisa fez visita ao sindicato como primeira-dama, comeu mais uma vez o bolo de fubá da Tia.
No bar da esquina, fui jogar conversa fora sobre Dona Marisa com Rosa Kido, que atendia no balcão. “Ela sempre vinha me ver quando ia ao sindicato. Dei para ela um amuleto japonês para dar sorte no amor. Dez anos depois, fui na casa dela levar um vinho no Natal e ela ainda tinha o amuleto no quarto dela!”, contou. E, naquele longínquo Brasil de esperança, perguntou: “Será que ela vai levar pra Brasília?”
Expedito Soares Batista, então advogado do sindicato havia 12 anos, também tinha história para contar. “A casa da Marisa ficava uma bagunça por causa do pessoal do PT. A Marisa tinha que botar todo mundo pra correr, senão o papo não acabava.” Contou também que ela ia a todas as passeatas com o pessoal. Vida, trabalho no partido e no sindicato sempre foram uma coisa só.
Os padrinhos de casamento de Lula e Marisa confirmaram. “Na época das greves, tanto eu quanto a Marisa víamos nossos maridos saindo de casa às 4 horas da manhã para ir para porta de fábrica fazer mobilização, distribuir folheto. Era perigoso. Mulher de sindicalista sofria”, lembrou a comadre Emília de Oliveira. “Nossos maridos faziam greve: e o medo que perdessem os empregos? E se fossem presos? Torturados?”
Os quatro filhos de Emília brincavam com os quatro filhos de Marisa. “Ficamos comadres organizando festas para arrecadar dinheiro para o fundo de greve”, diz a madrinha de Sandro. Quando a filha de Emília se casou, Lula era deputado federal e foi no casamento direto de Brasília. O casal também compareceu no aniversário de 25 anos do casamento da amiga com o Janjão, João de Oliveira, o compadre de Lula.
As histórias de Dona Marisa logo me levaram ao restaurante São Judas Tadeu, onde Lula e a mulher iam comer o famoso frango com polenta que a primeira-dama levou para a cozinha do Alvorada. No imenso galpão do restaurante perto da fábrica da Volks – que chegava a servir mais de 300 famílias de metalúrgicos nos fins de semana, cerca de 1300 pessoas -, encontrei Cidinha e Laerte Demarchi. Eles conheciam Marisa e Lula desde 1978, eram companheiros de pescaria e mesa farta. Mas não falavam de política quando se encontravam.
Cidinha contou que Marisa era leoa, gostava de proteger e cuidar. Dos amigos, da casa, da família e do marido. Ia ao mercado, na escola das crianças, ouvia os desabafos das amigas, apoiava o marido e sabia o que tinha de mistura no prato do almoço e no jantar. “Ela é quietinha, tímida, mas muito viva. Sabe tudo da carreira do Lula, acompanha, é inteirada. Quando o Lula está falando, ela está ligada, sempre de olho no que ele diz”, lembrou a comadre. Famoso por adorar ser o centro das atenções, o ex-presidente adorava fazer piadinhas mas a amiga do casal disse que Marisa era engraçada também. “Numa pescaria no Mato Grosso, só deu piranha. Então a gente foi comprar os peixes dos pescadores da região para fazer a foto.”
Foi Cidinha quem conversou com Marisa em meu nome e levou à primeira-dama, mais uma vez, o meu pedido de entrevista. Fiz questão de avisar que não era de política a nossa conversa. Era papo de mulher. E assim foi. Depois de cinco meses de tentativas frustradas, Dona Marisa finalmente conversou comigo como primeira-dama. “Para as pessoas gostarem de mim, se sentirem bem ao meu lado, eu não preciso ser diferente do que sou”, falou sem cerimônia.
Dona Marisa contou que estranhava morar no Alvorada. “É muito grande, tem muitos funcionários. Estou acostumada e gosto de lugares pequenos, aconchegantes. E tinha apenas uma pessoa para me ajudar”, disse. Era maio, fazia só cinco meses que estava na casa nova. “Hoje está tudo bem. Conheço todo o pessoal, horários de trabalho, dias de folga. Eles também me conhecem.” Fez questão de citar os peixes que levou para o lago do Palácio, a recuperação dos móveis que estavam nos depósitos e os copos-de-leite coloridos que pediu para plantar no jardim. “Eu tenho consciência de que o Palácio do Alvorada não é minha casa. Mas cuido dele como se fosse.”
Na entrevista também falamos de vida a dois: “amar é muito importante mas sonhar juntos é fundamental. É isso que alimenta nosso casamento até hoje. Estamos também preocupados com os detalhes. Às vezes um gesto, um olhar muda tudo.” Lula falou do olhar forte e marcante de sua mulher em dezenas de ocasiões. Sabia também que se fosse preciso ela botava a boca no trombone.
“Na posse é praxe que o presidente desfile em carro aberto ao lado do vice-presidente. Quando eu soube disso, perguntei: ‘E eu?’ Responderam: ‘A senhora será conduzida ao Palácio do Planalto e aguardará a chegada do presidente lá dentro’. Eu disse: ‘Ah, mas não mesmo, eu quero estar ao lado do presidente, durante o desfile. Também quero ver o povo, quero sentir essa energia’. ‘Mas, dona Marisa, sempre foi assim’, eles me responderam. Então, eu disse ‘meus filhos, esse governo será diferente, será de mudanças. E a mudança já vai começar na posse’. E foi o que aconteceu: eu desfilei ao lado do presidente e participei da foto junto com ministros e ministras. Nesse momento, eu me senti uma representante de todas as mulheres que lutaram e lutam ao lado de seus maridos”, ela contou. E foi mesmo, Dona Marisa. Foi mesmo.
Em tempo: Dona Marisa posou para foto de capa da Revista Criativa usando suas próprias roupas, com seu fotógrafo e maquiador de confiança. Não quis produção em estúdio, não exigiu cardápio afrescalhado na sessão de fotos, prática comum entre atrizes e modelos famosas nesses ensaios. Perguntada sobre a rotina de maquiagem, cabelo, manicure, respondeu: “Esses cuidados eu sempre tive, independente de ser primeira-dama. As minhas unhas faço toda semana, como todo mundo. Com maquiagem também me viro bem, pelo menos não tive reclamações. O meu cabelo eu mesma arrumo e, de vez em quando, o Lula faz uma escova pra mim.”
Sobre a história de amor entre Lula e Marisa, leia mais aqui.
Uma resposta
Que texto gostoso de ler, escrito de maneira simples e verdadeiro! Além disso, o conteúdo: Dona Marisa. Parabéns, Flávia Martinelli! Quero guardá-lo para um dia lê-lo novamente e não me esquecer desses dias sombrios do Brasil e do povo brasileiro, mas que são de esperança também de que as coisas possam vir a se ajeitar para Lula e sua família e para todos nós.