Panela democrática é que faz comida boa

Reprodução Facebook

Por Aline Gomes, especial para os Jornalistas Livres

Se termos como “coxinhas”, “mortadelas” e “paneleiros” estiveram em voga durante o momento político atual, um sentimento serviu de estopim para que chefs de cozinha e profissionais ligados à Gastronomia lançassem ontem (09/06) um manifesto de repudio ao golpe de estado em curso no país: indignação.

“Nós, representantes da gastronomia brasileira, não podíamos assistir a esse cenário de ruptura da ordem constitucional democrática sem manifestar nossa profunda tristeza”, diz trecho do manifesto, lançado no facebook através da página Gastronomia contra o golpe e do qual participam chefs de cozinha, profissionais do ramo de restaurantes, jornalistas e críticos gastronômicos do Brasil e do mundo.
O racionamento de comida à presidenta eleita pelo governo interino foi fortemente repudiado por quem acredita ser a mesquinharia um ingrediente indigesto à mesa. “Trata-se bem mais do que cortar a comida e direitos legítimos de uma presidente eleita, trata-se de simbolicamente relegar à indigência a democracia e a inteligência no Brasil. A indignação inspirou esse movimento de “alimentar a democracia”. A gastronomia, que nutre, agrega, reúne famílias, amigos e até inimigos em torno de uma mesa, que é capaz de promover a paz, também se une em defesa da democracia”, diz o manifesto.
“Infelizmente os clientes que mais deixam dinheiro em restaurantes são da elite e, grande parte dela não reconhece estarmos vivendo um golpe. Assim, a maioria dos chefs e pessoas que dependem de clientes prefere ficar em silêncio. Posicionar-se nesta hora requer coragem e muita força. Internacionalmente, vejo muita gente contra o golpe. Os governos de Lula e Dilma tiveram um grande impacto internacional no combate à miséria no Brasil, sendo citados como exemplos na ONU, em conferências e com apoio de muitos jornais e publicações internacionais. O teatro vergonhoso do congresso votando a favor do impeachment e, principalmente, o momento que Bolsonaro elogiou um torturador e a ditadura ecoou de forma muito negativa pelo mundo. Eu viajo 250 dias por ano a trabalho e dou conferências em vários países. Estive após o golpe no Canadá, EUA, em vários países da Europa. Recebo várias mensagens de colegas de 5 continentes e todos estão chocados com o que está acontecendo no Brasil. O fato que a nossa frágil e jovem democracia está correndo risco e que réus, com extenso currículo de casos de corrupção, tomaram o poder com a desculpa de combater a corrupção é algo que ninguém compreende ou aceita. Por isso, estamos unidos neste movimento Gastronomia Contra o Golpe.  Se permitirmos que esse governo ilegítimo e golpista se estabeleça, abriremos a porta ao caos e ao passado, onde a cultura, a ciência e os direitos humanos, entre outras coisas, sofrerão sua maior derrota” – Luciana Bianchi, jornalista e crítica gastronômica internacional, atualmente mora na Escócia.
A ameaça ao Estado Democrático de Direito e o ódio histérico que tomou conta do país foram outros temas abordados no texto, que em poucas horas angariou assinaturas de profissionais de diferentes partes do Brasil e do mundo.
Confira o texto na íntegra.
Manifesto Popular
GASTRONOMIA CONTRA O GOLPE
Tem panela, coxinha, mortadela e, agora, até racionamento de comida à presidenta eleita. Não faltam ingredientes gastronômicos indigestos na desastrosa receita política do Brasil de hoje.
Nós, representantes da gastronomia brasileira, não podíamos assistir a esse cenário de ruptura da ordem constitucional democrática sem manifestar nossa profunda tristeza e indignação.
Representantes de um setor que gera 6 milhões de empregos diretos em todo o país e que é a porta de entrada no mercado de trabalho para muitos brasileiros, sejam como estagiários, cumins ou garçons, até pesquisadores, jornalistas da cultura gastronômica, chefs, empresários do setor de alimentos e bebidas, restaurateurs, apaixonados pela gastronomia, que vivem dela ou por ela, vimos manifestar o nosso repúdio a essa ruptura por que passa hoje o Brasil.
O governo é provisório, mas os traumas, permanentes. Nossa jovem democracia sofre um de seus mais duros golpes e exige de todos coerência e compromisso históricos. Uma presidente legitimamente eleita por 54,5 milhões de votos está afastada sob um pretexto ininteligível para a maioria dos mortais, as pedaladas fiscais. Empréstimos contábeis que seus antecessores e dezenas de governadores cometeram e cometem, mas que só são crimes porque, para a presidente, a lei parece ter outro peso. Justiça com pesos diferentes não é Justiça, é vingança, é golpe. A maioria dos congressistas não faz ideia do que seja “pedalada fiscal” e recorre ao “conjunto da obra” para justificar o impeachment, como se fizesse parte de um júri de menu-degustação. Um pastelão que nos envergonha mundo afora.
Ao arrepio da lei, sob o argumento falso-moralista de “crime de responsabilidade”, a presidente foi substituída por um vice ficha-suja e inelegível, cuja postura é completamente incompatível com a que se espera de um companheiro de chapa, e por um ministério (em sua totalidade, formado por homens e brancos, um retrocesso que não se via desde o governo Geisel), cuja idoneidade não resiste a uma simples pesquisa no Google. Assistimos, atônitos, ao BBB do governo interino, com uma queda por semana.
O ato de cortar a comida de uma chefe de Estado, sua família e equipe nos sensibilizou não só por ser mesquinho, mas por ser medíocre. Um dos inegáveis méritos da gestão Lula-Dilma foi o de promover a ascensão social. Segundo a própria ONU, Lula e Dilma tiraram o Brasil do mapa da fome, dando dignidade mínima a 36 milhões de brasileiros. E foi justamente a essa chefe de Estado, gestora do Fome Zero, que o presidente interino negou comida, num gesto totalitário, anticonstitucional e incompatível com o de um vice de um projeto vitorioso nas urnas.
Trata-se bem mais do que cortar a comida e direitos legítimos de uma presidente eleita, trata-se de simbolicamente relegar à indigência a democracia e a inteligência no Brasil. A indignação inspirou esse movimento de “alimentar a democracia”. A gastronomia, que nutre, agrega, reúne famílias, amigos e até inimigos em torno de uma mesa, que é capaz de promover a paz, também se une em defesa da democracia.
Este é um manifesto apartidário, assinado por fãs de coxinha e de mortadela, de Cuba e de mojitos, de café, fé e wi-fi, do boteco-pé-sujo ao restaurante 3 estrelas, do vermelho (símbolo da Revolução Francesa e de tudo o que ela inspira até hoje) e do verde-e-amarelo, petistas e não petistas, eleitores de Dilma Rousseff ou não, eleitores com graves críticas ao governo da presidente, mas que sabem que impeachment não é solução, é consequência.
Em comum: somos contrários ao ódio de classe, à intolerância e à histeria coletiva que tomou conta do país, temos amor ao Brasil e a convicção de que democracia só se cura com mais democracia.
Assinam o Manifesto Popular “Gastronomia Contra o Golpe”:
1. Adalberto Ribeiro –Sócio da Grill Burger de Bragança (PA)
2. Airton Eré –Bartender da Malabar Drinks Artísticos (Florianópolis, SC)
3. Alexandre Bussab – Sócio do Raiz Forte Bar e Eventos (RJ)
4. Aline Lockmann de Azevedo Gomes – Jornalista (SP)
5. Ana Rojas – Jornalista de gastronomia (Brasil/Reino Unido)
6. Ana Candida Ferraz – Chef de sala (SP)
7. Analice Souza – Socióloga e chefe do Oliver Art Bar (Belo Horizonte, MG)
8. Annete Alves – Barista (Buenos Aires, Argentina)
9. Bel Coelho – Chef de cozinha do Clandestino (SP)
10. Bianca Barbosa – Chef (RJ)
11. Caio Zakia – Cozinheiro (SP)
12.Carmem Virginia – Chef-proprietário do Altar Cozinha Ancestral (SP)
13. Carolina Ronconi – Fundadora do blog Meninas no Boteco (SP)
14. Caroline de Azevedo – Cozinheira (RS)
15. Cilmara Bedaque – Jornalista do blog Lupulinas (SP)
16. Danilo Lodi – Barista, torrador de café e juiz internacional (SP)
17. Diogo Pedraçoli – Bartender da Cozinha 212 (SP)
18.Dora Gil – Gerente de restaurante (SP)
19. Edson Pivoto – Gerente de restaurante (SP)
20. Elia Schramm – Chef (RJ)
21. Eliza D. Teixeira – chef e pesquisadora (Brasil/EUA)
22. Facundo Guerra – empresário do Grupo Vegas (SP)
23. Fel Mendes – Jornalista revista Rabo de Galo e incubador da abeLLha (SP)
24. Felipe Jannuzzi – Idealizador do Mapa da Cachaça (SP)
25. Flávia Pogliani – Barista (SP)
26. Gabriel Cavalcante – Cantor e gourmet (RJ)
27. Gabriel Torres – Barista do Por um Punhado de Dólares (SP)
28. Gabriella Kerber – Chef de cozinha (SP)
29. Giovanni Assante –Proprietário das massas Gerardo di Nolla (Nápoles, Itália)
30. Guga Rocha – Chef e apresentador de TV (Brasil/Canadá)
31. Gisele Coutinho – Barista do Pura Caffeina (SP)
32. Guilherme Schwinn – Chef e sommelier (SC)
33. Hanny Guimarães – Especialista em chás (SP)
34. Izabela Tavares – Padeira (SP)
35. João Felipe Morandi, mixologista (Belo Horizonte -MG)
36. João Grinspum Ferraz – Historiador, cientista político e proprietário da Casa do Carbonara (SP)
37. Juliana Gelbaum – Barista do Por um Punhado de Dólares (SP)
38. João Carvalho – Barista (São Lourenço, MG)
39. Julio Bernardo (JB) – Crítico gastronômico (SP)
40. Junior Milério – Jornalista (Brasil/Irlanda)
41. Kátia Barbosa – Chef (RJ)
42. Lais Duo – Chef de cozinha (SP)
43. Luciana Berry – Chef (Brasil/Reino Unido)
44. Luciana Bianchi – Jornalista de gastronomia e chef (Reino Unido/Brasil)
45. Luciano Salomão – Barista e mestre de torra de café (SP)
46. Maira Marques – Bartender (Fortaleza, CE)
47. Mario Oliveira – Bartender (SP)
48. Marcelo Cury – Médico e jornalista de gastronomia (SP)
49. Marco de la Roche – Mixologista, editor do Mixology News e da revista Rabo de Galo (SP)
50. Marcos Tomsic – Barista do Por um Punhado de Dólares (SP)
51. Marilia Zylbersztajn – Confeiteira (SP)
52. Pedro Marques – Jornalista especializado em gastronomia e bebidas (SP)
53. Priscila Sabará – Criadora do FoodPass (SP)
54. Raissa Palamarczuk – editora da revista Rabo de Galo (SP)
55. Rafael Mariachi – Mixologista (SP)
56. Raphael Criscuolo – Fotógrafo (SP)
57. Ricardo Pieralini – Jornalista (SP)
58. Roberta Malta – Jornalista (SP)
59. Roberto Hundertmark – Chef de cozinha (Belém – PA)
60. Robinho Bernardo – Barista do Por um Punhado de Dólares (SP)
61. Rodolfo Bob – Gastrônomo e mixologista diretor de OBarVirtual (SP)
62. Rodolfo Herrera – Barista, proprietário do Beluga Café (SP)
63. Roger Bastos – Bartender do Meza Bar (SP)
64. Sérgio Crusco – Jornalista gastronômico (SP)
65. Sheila Grecco – Jornalista, historiadora, RP na área gastronômica (SP)
66. Tabata Magarão – Sócia do Raiz Forte Bar e Eventos (RJ)
67. Tainá Hernandes – Confeiteira (SP)
68. Thiago Ceccotti – Bartender e consultor da Ducktails (Belo Horizonte, MG)
69. Thiago dos Santos – Bartender e idealizador da Samba Nego (SP)
70. Thiago Flores – Chef do Circo Voador (RJ)
71. Thiago Rosas – Restauranteur (PA)
72. Thiago Tavares – Empreendedor e cachacier (SP)
73. Thianny Estevam – Bartender do Zazá Bistrot (RJ)
74. Tony Harion – Diretor da Mixing Bar (SP)
75. Túlio Silva – Jornalista gastronômico do PenseComida (SP)
76. Victor Camerlingo – Barista do Por um Punhado de Dólares (SP)

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