“É um dia importante pra nós. Fico muito feliz quando estou em um local onde as pessoas se interessam pelo assunto, que nos entrevistam, que registram os nossos momentos, e não só o de discussão política, mas também o cultural. E que não fique apenas ali, que isso vá se expandir para que a sociedade veja o nosso dom, veja de que nós somos capazes, e que temos os mesmos direitos , e que nós temos capacidade de sermos inseridas e estarmos dentro da sociedade”, declarou Marina sobre o Dia da Visibilidade Trans.
Eu tive a honra de registrar suas palavras e algumas imagens um dia antes da trágica morte por embolia pulmonar e parada respiratória da artista e ativista baiana Marina Garlen na madrugada do domingo, 31 de janeiro, em São Paulo. Ela estava na cidade desde o dia 25 representando a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) por ocasião das atividades em comemoração do dia 29, o Dia da Visibilidade Trans. A Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, que estava patrocinando as atividades da rede ANTRA, arcará com o translado do corpo para a sua cidade natal.
Expulsa de casa aos 16 anos, Marina acabou indo “atrás do sonho” na Europa, onde viveu por 17 anos como profissional do sexo, o que lhe possibilitou várias conquistas, como a compra da casa própria. De volta para o Brasil, a baiana atuava como cabeleireira, maquiadora e fazendo shows em casas noturnas, trabalho que já realizava há 35 anos. Depois da entrevista, eu tive a fortuita oportunidade de ver sua última performance dublando uma música antiga da cantora Vanusa, e entendi porque sua poderosa e fascinante presença de palco lhe renderam um troféu e o título de Diva Trans em 2011.
A presidente do Fórum Municipal de Travestis e Transexuais Nicolle Mahier contou que esteve com Marina no dia 28, e que ela comentou que tomou chuva no dia 25. Se sentia gripada e sentia febril. No dia 29, antes de fazer o show, Marina havia dito que ainda se sentia um pouco fraca, mas já estava melhor. No dia seguinte, ela ligou para Nicolle pedindo que o marido dela, que é taxista, a levasse do hotel onde estava para a casa de um amigo por conta de fortes dores no peito. Ainda comentou que não iria na Marcha pela Paz, realizada naquele dia pela ONG Cais, porque se sentia muito fraca e preferia ficar descansando.
Marina ainda marcou horário para que o taxista a buscasse para levá-la ao aeroporto. Um pouco antes do horário marcado Nicolle mandou algumas mensagens, mas Marina não respondeu. Algumas horas depois, toda a comunidade de travestis, mulheres transexuais e homens trans de São Paulo e do Brasil, ficou sabendo da perda de uma das suas mais aguerridas guerreiras.
Marina foi conduzida ao hospital da Barra Funda. Segundo Nicolle, a médica que a socorreu informou para algumas pessoas que foram até o local que “ela estava com uma mancha preta no pulmão, mas como ainda não foi feita a necrópsia, não se sabe se foi o silicone industrial (que era usado antigamente pelas travestis para tornear seus corpos) que vazou para o pulmão… mas, até o momento, isto é apenas hipótese.”
Confira o áudio com a última entrevista da artista:
“Eu me chamo Marina Garlen, tenho 49 anos de idade e sou ativista da causa LGBT. Fiz parte do Comitê de Cultura LGBT da Presidência da República, do Ministério da Cultura. Sou estudante, sou de Salvador, e eu fui convidada para estar aqui representando a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) para fazer parte das atividades da Visibilidade Trans que em todo Brasil está sendo comemorada este ano.
Eu tenho certeza que assim como existe o Dia do Orgulho Gay, assim como existe a Visibilidade Lésbica, a Visibilidade Trans é uma maneira que nós temos de mostrar para a sociedade, para os políticos, para as pessoas que nós existimos, e que nós precisamos de Direitos. É um momento para mostramos também os dotes que nós temos, e não é só o de trabalhar apenas em salão de beleza, não!
Vamos deixar a prostituição seja uma questão de opção, e não de necessidade. Está na hora da sociedade entender que nós somos capazes, que nós estudamos. Existem muitas travestis e transexuais amigas da ANTRA que são professoras, outras são advogadas, assistentes sociais etc. Eu fui convidada no ano passado pela Fernanda de Morais para participar deste evento aqui, em São Paulo. Essa é a primeira vez que eu participo do evento.
Acho que nem teria necessidade de ter visibilidade trans, mas apesar de vivermos em um país democrático, a sociedade brasileira é arrogante, preconceituosa e machista. Por isso é importante gritar. Gritar para que as pessoas nos ouçam, vejam que nós estamos aqui. Somos artistas, somos prostitutas, somos jornalistas, somos professoras, somos médicas. A única coisa que nos falta é oportunidade.
Que as pessoas abram as sua mentes, que os empresários, os diretores de teatro, os donos das grandes empresas comecem a abrir espaço para que nós possamos ser inseridas no mercado de trabalho, nas escolas, porque sem educação, infelizmente, não é possível avançar. Hoje [Dia da Visibilidade Trans] é um dia importante para nós.
Espero que a sociedade veja o nosso dom, veja de que nós somos capazes, e que temos direitos, e também capacidade de sermos inseridas e estarmos dentro da sociedade participando.
Uma vez que pagamos os nossos impostos como qualquer cidadão – e nós temos esse dever – creio que os direitos também devem ser iguais. É muito importante essa visibilidade, pois esta é a maneira que temos de dizer para as pessoas que não somos marginais, que não somos bichos de sete cabeças. É uma maneira de abrir portas, de conscientizar as pessoas para que elas nos enxerguem como pessoas e cidadãs de fato.”