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Žižek: A atualidade de Marx

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Por Slavoj Žižek.
 ARTIGO ENVIADO PELO AUTOR DIRETAMENTE PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO.
A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO

Quando penso no bicentenário de Karl Marx comemorado este ano, logo me ocorre uma deliciosa piada soviética sobre a rádio Yerevan. Um ouvinte pergunta: “É verdade que Rabinovitch ganhou um carro novo na loteria?”. E a rádio responde: “A princípio, é verdade, sim. Só que não foi um carro novo, foi uma bicicleta velha, e ele não ganhou ela, ela lhe foi roubada.” Não seria possível dizer que algo semelhante não vale também para o destino do ensinamento de Marx hoje, 200 anos após seu nascimento?

Perguntemos à rádio Yerevan: “É verdade que Marx ainda é atual hoje?”. E já dá para adivinhar que tipo de resposta teríamos: “A princípio, sim, ele descreve maravilhosamente a dança louca das dinâmicas do capitalismo, que só atingiu seu auge hoje, mais de um século e meio depois de seus escritos, mas… Gerald A. Cohen enumerou os quatro atributos fundamentais da noção marxista clássica de classe trabalhadora: (1) ela constitui a maioria da sociedade; (2) ela produz a riqueza da sociedade; (3) ela consiste dos membros explorados da sociedade; (4) seus membros são os necessitados da sociedade. Quando combinam-se esses quatro atributos, geram-se mais dois: (5) a classe trabalhadora não tem nada a perder com uma revolução; (6) ela pode e irá iniciar uma transformação revolucionária da sociedade.1 Não se pode dizer que os quatro primeiros atributos se aplicam à classe trabalhadora atual. É por isso que não se pode produzir os enunciados (5) e (6). (Ainda que algumas das características possam ser válidas para certas partes da sociedade atual, elas não estão mais unificadas em um único agente: os necessitados na sociedade não são mais os trabalhadores, etc.)

O impasse histórico do marxismo não repousa apenas no fato de que ele contava com a perspectiva da crise derradeira do capitalismo e portanto não podia dar conta de explicar como o capitalismo saía de cada crise fortalecido. Há um equívoco ainda mais trágico em operação no corpo clássico do marxismo, descrito de maneira muito precisa por Wolfgang Streeck: o marxismo estava certo a respeito da “crise final” do capitalismo; é evidente que estamos adentrando ela hoje, mas essa crise é simplesmente isso, um processo prolongado de corrosão e desintegração, sem que haja uma Aufhebung hegeliana fácil à vista, sem que haja nenhum agente para conferir a essa corrosão uma virada positiva e transformá-la em passagem para algum nível mais elevado de organização social:

“É um preconceito marxista – ou melhor, modernista – que o capitalismo enquanto época história somente irá se encerrar no momento em que uma sociedade nova e melhor estiver à vista, e em que houver um sujeito revolucionário disposto para implementá-la para fazer avançar a humanidade. Isso pressupõe um grau de controle político sobre nosso destino comum com o qual não podemos nem sonhar depois da destruição da autonomia coletiva (e inclusive da esperança por ela) realizada na revolução neoliberal-globalista.”2

A visão de Marx era a de uma sociedade gradualmente se aproximando de sua crise final, uma situação marcada pela simplificação da complexidade da vida social a um grande antagonismo entre os capitalistas e a maioria proletária. No entanto, até mesmo um rápido panorama das revoluções comunistas do século XX já deixa claro que essa simplificação nunca efetivamente chegou a ocorrer: os movimentos comunistas radicais sempre estiveram circunscritos a uma minoria vanguardista que, para obter hegemonia, precisava aguardar pacientemente uma crise (geralmente uma guerra) que fornecia uma estreita janela de oportunidade. Em tais situações, uma autêntica vanguarda tem a chance de pode aproveitar o momento, mobilizar o povo (ainda que não a maioria de fato) e tomar o poder. Aqui, os comunistas sempre se mostraram totalmente “não-dogmáticos”, prontos para se colarem a outras pautas: terra e paz na Rússia, libertação nacional e unidade contra a corrupção na China, por exemplo… Eles sempre tiveram plena consciência de que a mobilização acabaria logo e tratavam de preparar cuidadosamente o aparato de poder para garantir sua manutenção no poder naquele momento. (Em contraposição à Revolução de Outubro, que explicitamente tratou os camponeses como aliados secundários, a Revolução Chinesa sequer fingiu ser proletária: ela abordou diretamente os agricultores como sua base.)

grande problema do marxismo ocidental (e até mesmo do marxismo como tal) era a ausência do sujeito revolucionário: como explicar que a classe trabalhadora não conclui a passagem do em-siao para-si de forma a constituir enquanto agente revolucionário? Esse problema fornecia a principal raison d’être do recurso à psicanálise, evocada no interior dessa tradição precisamente para dar conta de explicar os mecanismos libidinais inconscientes que bloqueiam o surgimento da consciência de classe inscrita no próprio ser (situação social) da classe trabalhadora. Dessa forma, salvou-se a verdade da análise socioeconômica marxista: não havia motivo para renunciar a teorias “revisionistas” sobre a ascensão das classes médias etc.

É por essa mesma razão que o marxismo ocidental também sempre se mostrou atento a outros atores sociais que poderiam desempenhar o papel de agente revolucionário, como o suplente substituindo a classe trabalhadora indisposta: campesinos do Terceiro Mundo, estudantes e intelectuais, os marginais excluídos… A versão mais recente dessa ideia recorre aos refugiados: somente um influxo de um número muito grande de refugiados seria capaz de revitalizar a esquerda radical europeia. Essa linha de pensamento é profundamente obscena e cínica. Para além do fato de que tal desdobramento certamente impulsionaria enormemente a violência contra os imigrantes, o aspecto realmente insano dessa ideia é o projeto de se preencher a lacuna dos proletários ausentes importando-os do exterior, de forma que teríamos a revolução por meio de um agente revolucionário substituto terceirizado.

É possível identificar o fracasso da classe trabalhadora enquanto sujeito revolucionário já no próprio núcleo da revolução bolchevique. A arte de Lênin foi saber detectar o “potencial de raiva” (Sloterdijk) dos camponeses insatisfeitos. A Revolução de Outubro foi vitoriosa em larga medida por conta do lema “paz, terra e pão” direcionado para a vasta maioria de camponeses, agarrando o breve momento de radical insatisfação desse setor. Lênin já estava pensando nessa linha uma década antes das Teses de Abril, e por isso temia o possível êxito das reformas agrárias de [Piotr] Stolypin que visavam criar uma nova e forte classe de camponeses independentes. Ele escreveu que se o projeto de Stolypin fosse bem sucedido, estaria perdida, por décadas, a oportunidade de uma revolução.

Todas as revoluções socialistas exitosas, da cubana à iugoslava, seguiram esse modelo: agarrou-se a oportunidade em uma situação crítica extrema, cooptando a libertação nacional ou outros “capitais de raiva”. Aqui, é claro, um partidário da lógica marxista hegemônica prontamente assinalaria que essa é justamente a lógica “normal” do processo revolucionário: é única e precisamente através de uma série de equivalências entre múltiplas demandas, sempre radicalmente contingentes e dependentes de um conjunto específico (singular, até) de circunstâncias, que atinge-se efetivamente a “massa crítica” necessária. Uma revolução nunca ocorre quando todos os antagonismos se reduzirem ao grande antagonismo, mas quando eles combinam sinergicamente suas forças.

O ponto não é apenas que a revolução perdeu o bonde da História e deixou de seguir as suas leis imanentes, pois na verdade não há História, pois a história é um processo contingente, aberto. O problema é outro: é como se houvesse uma Lei da História, uma linha mestra predominante mais ou menos clara de desenvolvimento histórico, e que nesse contexto uma revolução só poderia ocorrer nos interstícios desse processo enquanto um fenômeno “contra a corrente”. Por isso, os revolucionários precisam aguardar pacientemente surgir o momento (geralmente muito breve) em que o sistema abertamente entra em pane ou colapsa, se aproveitar da janela de oportunidade, agarrar o poder que naquele momento se apresenta como que caído no chão, suscetível a ser reivindicado, e depois logo cuidar de fortificar seu domínio sobre o poder, construindo aparatos repressivos etc. de forma que quando passar o movimento de confusão e a maioria retomar a sobriedade e se desapontar com o novo regime, já será tarde demais para se livrar dele, dado seu firme enraizamento.

Os comunistas também sempre calcularam cuidadosamente o momento certo para interromper a mobilização popular. Tomemos o caso da Revolução Cultural Chinesa, que sem dúvida continha elementos de uma utopia efetivamente encenada. Logo no seus últimos momentos, antes da agitação ser barrada pelo próprio Mao (já que ele já havia atingido seu objetivo de re-estabelecer seu pleno poder e se livrar da mais alta concorrência da nomenclatura), ocorreu a “Comuna de Shanghai”: um milhão de trabalhadores que simplesmente levaram a sério os lemas oficiais, exigindo a abolição do Estado e até mesmo do próprio partido, e queria uma organização comunal direta da sociedade. Não é à toa que foi justamente nesse momento que Mao optou por convocar o exército para intervir e restaurar a ordem. Trata-se do paradoxo do líder que suscita um levante incontrolável ao mesmo tempo em que busca exercer pleno poder pessoal: a sobreposição entre ditadura extrema e emancipação extrema das massas.

A questão da continuada relevância da crítica da economia política de Marx na nossa era atual de capitalismo global precisa portanto ser respondida de maneira propriamente dialética. Afirmemos não apenas que ainda hoje a crítica da economia política de Marx, seu raio x das dinâmicas do capital, permanece totalmente atual, mas mais do que isso, afirmemos que é apenas hoje, com o capitalismo global, que, Marx atingiu sua plena atualidade. Ou, para falar em hegelianês, apenas hoje a realidade atingiu seu conceito. Dito isso, no entanto, intervém aqui uma inversão propriamente dialética: pois é neste exato momento de plena atualidade que precisa aparecer a limitação, o momento do triunfo é também o da derrota. Depois de superar os obstáculos externos, a nova ameaça vem de dentro, assinalando a inconsistência imanente. Quando a realidade atinge plenamente seu conceito, esse conceito mesmo precisa ser transformado. Aí reside o paradoxo propriamente dialético: não se trata de dizer que Marx estava simplesmente errado, ele muitas vezes se provou acertadíssimo, mas mais literalmente do que ele imaginava.

Tomemos a questão do “fetichismo da mercadoria”, por exemplo. Há uma clássica piada sobre um homem que acredita ser um grão de milho e é levado a uma instituição mental em que os médicos fazem de tudo para finalmente convencê-lo de que ele não é um grão de milho mas sim um ser humano. Quando ele recebe alta (convencido de não ser um grão de milho mas sim um homem) e permitem que ele saia do hospital, ele imediatamente volta tremendo. Há uma galinha na porta e ele teme que ela irá comê-lo. “Meu caro”, diz o médico, “você sabe muito bem que você não é um grão de semente e sim um homem.” “É claro que eu sei”, responde o paciente, “mas a galinha sabe disso?” O que isso tem a ver com o conceito de fetichismo da mercadoria? Leiamos o que dizem as palavras iniciais do subcapítulo sobre o fetiche da mercadoria n’O capital, de Marx: “Uma mercadoria aparenta ser, à primeira vista, uma coisa óbvia, trivial. Mas sua análise a revela como uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e caprichos teológicos.” (p. 146) O fetichismo da mercadoria (nossa crença de que as mercadorias são objetos mágicos dotados de poder metafísico inerente) não está situado em nossa mente, na forma distorcida pela qual percebemos a realidade, mas em nossa própria realidade social. Podemos até saber a verdade, mas agimos como se não a soubéssemos – na nossa vida real, agimos como o sujeito da piada.

É assim que a ideologia opera na nossa era de cinismo: não é preciso “crer” nela. Ninguém leva a democracia ou a justiça a sério, todos nós estamos cientes de como essas instâncias são corruptas, mas mesmo assim nós participamos delas – em outras palavras, nós demonstramos nossa crença neles – porque assumimos que elas funcionam mesmo que nós não acreditemos nelas. O mesmo vale para a religião: nós “realmente cremos” nelas, apenas seguimos (alguns dos) rituais e costumes religiosos como parte do respeito pelo “estilo de vida” da comunidade à qual pertencemos (judeus não-crentes obedecendo as regras da alimentação kosher “em respeito à tradição”, por exemplo). “No fundo, eu não acredito nisso, é só parte de minha cultura” parece ser o modo predominante da crença deslocada característica de nossos tempos. É por isso que dispensamos os crentes fundamentalistas como “bárbaros” ou “primitivos”, como anticulturais, como uma ameaça à cultura: eles ousam levar a sério suas crenças. A era cínica em que vivemos não surpreenderia em nada Marx. As teorias de Marx portanto não estão simplesmente vivas: Marx é um fantasma que continua a nos assombrar, e a única forma de mantê-lo vivo é concentrarmos nos insights deles que hoje são mais verdadeiros do que em seu próprio tempo.

Então como ficamos? Devemos descartar os textos de Marx como documentos interessantes do passado e nada mais? Em um paradoxo dialético, os próprios impasses e fracassos do comunismo do século XX, impasses que eram claramente ancorados nas limitações da visão de Marx, ao mesmo tempo comprovam sua atualidade: a solução marxista clássica fracassou, mas o problema permanece. Hoje, o comunismo não é o nome de uma solução, é o nome de um problema, o problema dos comuns em todas as suas dimensões: os comuns da natureza enquanto substância da nossa vida, o problema de nossos comuns biogenéticos, o problema de nossos comuns culturais (“propriedade intelectual”), e, last but not least, os comuns enquanto espaço universal da humanidade do qual ninguém deve ser excluído. Qualquer que seja a solução, ela terá necessariamente de enfrentar esses problemas.

Nas traduções soviéticas, o famoso comentário de Marx a seu genro Paul Lafargue, “Ce qu’il y a de certain, c’est que moi je ne suis pas marxiste”, ficou “Se isso é marxismo, então eu não sou marxista”. Esse erro de tradução transmite perfeitamente a transformação do marxismo em um discurso universitário: para o marxismo soviético, até mesmo o próprio Marx seria um marxista que participava do mesmo conhecimento universal que constitui o marxismo. O fato de que ele tenha criado o ensinamento posteriormente conhecido como “marxismo” não constitui exceção alguma de forma que a negação expressa por ele só se refere a uma versão específica equivocada que falsamente se proclamaria “marxista”. Na verdade, o que Marx queria dizer era algo mais radical: uma lacuna separa o próprio Marx – o criador que possui uma relação substancial diante de seus ensinamentos – dos “marxistas” que seguem seus ensinamentos. Há uma conhecida piada dos irmãos Marx em Os Galhofeiros (1931) que transmite bem essa lacuna. O capitão Spaulding pergunta: “Você se parece muito com o Emanuel Ravelli. Você é irmão dele?” Ao que o sujeito responde: “Mas eu sou Emanuel Ravelli.” E Spaulding simplesmente rebate: “Então não é à toa que você se parece com ele! Mas insisto, há uma semelhança.” O sujeito que é Ravelli não se parece com ele, ele simplesmente é Ravelli. E, da mesma forma, o próprio Marx não é um marxista (um dentre os marxistas); ele é o ponto de referência eximido da série. É a referência a ele que faz dos outros marxistas. E a única forma de se permanecer fiel a Marx hoje é de não ser mais um “marxista”, mas sim de repetir o gesto fundador de Marx de uma nova maneira.

 

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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