URUGUAI: Prova de fogo para democracia neste domingo

Discurso moralista e calunioso contra esquerdas pelas redes sociais não encontra freio mesmo entre povo com os mais altos índices de escolaridade do mundo
Daniel Martínez comemora passagem para um segundo turno temeroso. Fotos: Raquel Wandelli

Em meio à convulsão social na Bolívia, Chile e Colômbia, os olhos da América do Sul se voltam neste domingo para o segundo turno das eleições do Uruguai. Nos últimos 15 anos, o país é considerado referência da fórmula justiça  social e desenvolvimento econômico com democracia. Mais do que colocar à prova esse modelo, a disputa acirradíssima entre esquerda e direita põe em xeque a vulnerabilidade da própria democracia perante o alastramento, por todo o continente, da narrativa neopentecostal, liberal e fascista (para tentar nomeá-la). O discurso autoritário e moralista, apoiado no combate às políticas públicas e na repressão militar avança nas camadas populares na velocidade dos algoritmos. Não encontra barreiras mesmo num país cujo povo tem os mais altos índices de escolaridade superior e é considerado dos mais politizados do mundo.

É essa prova de fogo que está de novo em jogo no páreo deste domingo: a força da democracia para derrotar seus próprios antídotos. Trata-se do mesmo embate que domina outros países, como Bolívia e Brasil, mas no Uruguai essa divisa se coloca num cenário bem mais nebuloso, cujos perigos não se mostram na superfície.  A disputa entre a Frente Ampla, representada pelo centro-esquerda Daniel Martínez, e o Partido Nacional, liderado pelo centro-direita Luís Lacalle Pou, aparentemente fugiria a essa ameaça. Isso porque a democracia uruguaia, tão jovem quanto a brasileira, mas muito mais consolidada, oporia uma resistência inabalável às investidas planetárias de um projeto neofascista.

Vitória mais segura das esquerdas nas eleições do Uruguai foi a derrota do plebiscito da Reforma Constitucional

A escuta das ruas do Uruguai mostra, contudo, que nenhuma suposição dessa ordem é mais segura no jogo de forças da política geoplanetária, que se vale de meios fora do jogo democrático para impor seus representantes na América Latina. Fala-se de fraudes, golpes disfarçados, alienação em massa, enfim, tudo que o Brasil experimentou no último pleito. Com a eleição de Bolsonaro, bombada pela eliminação de Lula da disputa e pela disseminação de fake news apoiada no uso da tecnologia social de Steve Bannon, o Brasil já provou que a democracia é mesmo uma flor frágil. Precisa de vigilância firme para não abrir flanco a sua própria destruição.

No discurso reproduzido por taxistas e setores mais afetos ao sistema da pós-verdade no Brasil, no Chile, na Argentina, a narrativa é idêntica: o combate ao avanço do comunismo pelo conclamado Foro de São Paulo; à ideologia de gênero como responsável pela degradação moral da sociedade; à corrupção, como se fosse uma prática identificada com a esquerda, e não com a direita; e o caos urbano, pretensamente deflagrado pela proteção aos direitos humanos e o relaxamento da segurança pública.

Mal entramos num táxi na véspera do pleito, o motorista tentou nos convencer dessas teses, impondo-nos na viagem do centro de Montevidéu até o Velódromo um vídeo no estilo Olavo Carvalho. A tecnologia social de Steve Bannon difunde pelas listas de whatsapp e pelos vídeos do YouTube afirmações caluniosas que não precisam de provas para virar verdade. Nem Pepe Mujica, que cultua uma vida franciscana, nem o presidente Tabaré Vásquez, um oncologista renomado, que enfrenta o câncer avançado no pulmão com uma dignidade comovente, são poupados das fake news e das acusações de corrupção.

Martínez, da Frente e Lacalle Pou, do Partido Nacional, que surfou na onda dos ataques à esquerda na América do Sul

O candidato de direita, que corre com uma margem de 5 a 7 pontos na dianteira, carrega consigo não apenas a possibilidade de alternância normal de poder para um governo mais liberal e conservador, que promete manter as políticas públicas na área de educação e saúde e também as liberdades conquistadas, como descriminalização do aborto e do uso da maconha. Ele pode ser um Cavalo de Troia para a fórmula bombástica dos desmoralizados neoliberais Macri e Piñeda, e também dos neofascistas Iván Duque e Bolsonaro. Filho de um militar marcado pela colaboração à ditadura uruguaia e por um dos governos mais corruptos do país, Lacalle se ergueu num processo de disseminação de fake news e de campanha dogmática contra as esquerdas na América do Sul.

A chapa de Lacalle, que saiu do primeiro turno com quase 11% a menos que a de Martínez, arrastou para o segundo uma aliança com candidatos vencidos, como o liberal Ernesto Talvi, do Partido Colorado, e Guido Manini, do Cabildo Abierto, uma espécie de Bolsonaro uruguaio, que cavalga essa legenda “oportunamente” criada para a eleição. Mesmo tendo sido formalmente rejeitado pelo candidato do Partido Nacional, transferiu seus votos para Lacalle tão logo saíram as preliminares do primeiro turno. Mostra de que a rejeição tem um caráter apenas estratégico: não afugentar o eleitorado que se assusta com os arroubos fascistas do ex-militar. Neoliberal na economia, inimigo declarado das políticas de distribuição de renda, defensor da tortura e da repressão policial, Manini ameaça as liberdades conquistadas após a ditadura, encorajando seus 11% de eleitorado a defenderem teses antidemocráticas que retornarão com mais força num possível governo de Lacalle. Por outro lado, afasta a adesão de certos eleitores do Colorado, que obteve 12% no primeiro turno, desagradando setores da sigla mais comprometidos com a história do partido contra a ditadura. E é aí que mora a esperança da FA no segundo turno, segundo o presidente da frente, Javier Miranda.

A eleição no Uruguai sempre foi marcada pela polarização entre brancos e colorados, num eleitorado caracterizado pela clara definição política. Só em sua primeira e triunfal vitória, em 2004, com Tabaré Vásquez, a Frente Ampla, formada por 40 agremiações partidárias de esquerda e centro-esquerda, definiu a disputa no primeiro turno. Em 2010, o popularíssimo Pepe Mujica enfrentou essa bipolaridade na segunda volta, assim como o próprio Tabaré na sua reeleição em 2015.  Disputa acirrada não é novidade para o cenário uruguaio, portanto. A novidade é a ascensão da direita após o processo de redemocratização e de derrota dos governos liberais que sucederam a ditadura militar, impondo ao país a mais grave crise econômica da sua história. Justamente para enfrentar a ascensão da direita, a Frente Ampla optou pelo perfil mais conservador de Daniel Martínez e com isso desagradou setores mais à esquerda, como o Partido Comunista, que nem por isso deixaram de se integrar à campanha.

Candidato da Frente Ampla e família: opção por perfil mais conservador para enfrentar direita

As últimas pesquisas eleitorais apontam vantagem de 47% para a chapa Lacalle e Beatriz Agrimón, contra 42% da dupla Martínez e Graciela Villar, variando de um ou dois pontos a mais ou a menos. Com esse índice, que praticamente corresponde à margem de erro em qualquer cenário eleitoral, nenhum meio de comunicação, nenhum analista político, nem instituto de pesquisa (as chamadas “encuestadoras”) pode dar a disputa por vencida para um dos lados. Muitos veículos que fizeram a projeção de derrota para a Frente Ampla já no primeiro turno podem morder a língua. Considerar a imprevisibilidade desses processos é uma questão de respeito ao percentual de indecisos e à verdade das urnas, que não pode ser subjugada à influência das “encuestas”.

A única verdade que pode ser antecipada, não importa o resultado de amanhã, é que em nenhum lugar do mundo as liberdades, as conquistas sociais e os direitos trabalhistas estão assegurados. Nenhum projeto de governo está imune às ofensivas do fascismo neoliberal que se colocam fora do jogo democrático. Ganhando ou perdendo, a democracia terá levado um grande susto ou uma grande puxada de tapete.

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