“Nóis não tá nisso pra ficar rico. Nóis tá nisso pra mudar o mundo.”
(Paulo Lima, o Galo)
A manifestação dos entregadores de aplicativos, que aconteceu na quarta (1/7), foi linda de se ver. Jovens pobres, negros, moradores das franjas da cidade, super-explorados pelos aplicativos, reconhecendo-se como trabalhadores. Reconhecendo a força da União.
Em São Paulo, a manifestação incluiu um desfile de milhares de motocicletas e bicicletas pelas principais vias da cidade, encerrando na Ponte Estaiada, que fica bem defronte aos estúdios da TV Globo. Os entregadores queriam ser flagrados pelas câmeras do SP TV, queriam ser vistos!
Trata-se de uma categoria profissional profundamente ofendida pela invisibilidade em que é cotidianamente confinada. Os usuários dos aplicativos normalmente não conversam com eles, não querem saber de papo. O olhar sai da pizza e vai para a maquininha do cartão de crédito. Zero empatia. E os entregadores vão para a próxima entrega.
Na manifestação do dia 1º, foram muitos sorrisos, o ruído agudo dos motores gritando a cada acelerada, as demonstrações de perícia e equilíbrio na pilotagem da motocicleta, a visibilidade enfim alcançada, a solidariedade entre todos — a cena mais bonita de se ver eram os pilotos de motos andando pelo asfalto abraçados aos de bicicletas, como forma de poupá-los do esforço físico de pedalar.
E o protesto alastrou-se por todo o País, tendo como principais reivindicações o aumento das taxas de remuneração dos entregadores, que têm caído vertiginosamente, e o fim dos bloqueios impostos pelos aplicativos, que na prática representam uma suspensão do entregador. Por fim, os profissionais insurgiram-se contra o sistema de pontuação de ranking, que é o que define os dias e a área em que o entregador pode atuar.
Se os aplicativos querem a todo custo convencer os entregadores de que eles são “empreendedores”, um tipo de “parceiro” dos donos das plataformas de entregas, ou até “micro-empresários”, o que se viu nas ruas do País foi daqueles momentos singulares, a categoria dos moto e cicloboys iluminada pela tomada de consciência coletiva de sua força política nas modernas economias capitalistas, em que ocorre a máxima exploração da força de trabalho.
Mas de onde vêm a inteligência coletiva deste movimento? Jornalistas Livres acompanharam a preparação da greve do dia 1º de julho de dentro de um grupo de whatsapp composto por Entregadores Antifascistas. Há centenas de outros grupos espalhados por todo o Brasil, e mesmo em outros países, como Argentina, Equador, Itália, Espanha.
Para chegar a uma mobilização como a que ocorreu no dia 1º, esses coletivos estão trabalhando com tenacidade. Os camaradas dos Entregadores Antifascistas, por exemplo, se consideram uma família — um tem de cuidar do outro. A solidariedade entre jovens pobres, que sofrem acidentes, que estão expostos à violência urbana, que são assaltados e subtraídos de seus instrumentos de trabalho (motos, bicicletas e celulares) é condição de sobrevivência no caos das ruas. Eles aprendem juntos, um fazendo para o outro indicações de filmes para assistir, de textos para ler. Eles elaboram planos para construir um aplicativo justo, que remunere os entregadores sem lhes aplicar taxas abusivas. Eles querem ser reconhecidos como empregados dos APPs, de modo que tenham assegurados seus direitos trabalhistas —por isso pensam em projetos de lei.
Anarquistas, comunistas, militantes de todas as extrações da esquerda disputam a atenção dos Entregadores Antifascistas. Mas o fazem de maneira respeitosa, cada um sugerindo seus conteúdos mais legais para tentar conquistar os corações e mentes dos novos atores políticos. E, assim, motoboys aprendem, por exemplo, o que foi a Associação Internacional dos Trabalhadores, a AIT, a primeira organização criada para reunir diversas correntes do movimento operário do mundo industrializado, na segunda metade do século 19. A AIT, que teve em sua liderança figuras como Karl Marx e Mikhail Bakunin, existiu entre 1864 e 1876, tendo sido fundamental na construção das utopias Socialista e Anarquista, gestadas a partir da Comuna de Paris, de 1871.
Entre os vários eixos da intervenção da AIT constavam: solidariedade com todos os trabalhadores e suas lutas, promoção do trabalho cooperativo, redução da jornada de trabalho de mulheres e crianças, redução da jornada de trabalho para 10 horas em todos os países. Impossível os entregadores não se identificarem com essa pauta, antiga em mais de 150 anos. (!!!) Eles, que são explorados pelos aplicativos, que os obrigam a trabalhar mais de 14 horas por dia. Eles, que recebem o equivalente a pouco mais de um salário mínimo por todo esse trabalho. Eles, que sonham com a construção de uma cooperativa para fugir das correntes de escravidão do IFood, Uber, Rappi e outras.
Cinema, livros, vídeos, textos entram nesse verdadeiro curso de formação express de militantes. As mensagens de whatsapp colocadas acima e o que se verá a seguir constituem parte da troca de informações entre os membros do grupo dos Entregadores Antifascistas, entre os dias 1º de junho e 5 de julho de 2020. Não identificaremos os autores das mensagens, a fim de não expô-los à possível retaliação dos aplicativos, que bloqueiam sem qualquer justificativa um entregador, privando-o do pão de cada dia durante a aplicação da pena. Os APPs dizem que esse bloqueio só ocorre quando “não há o cumprimento dos Termos & Condições”, mas vários motoboys acusam as empresas de perseguição. As datas em que as postagens foram feitas também não serão mencionadas, já que várias dessas postagens repetem-se durante o período, como um Vale a Pena ver de Novo, para quem perdeu a primeira postagem. Os posts no grupo foram organizados por temas:
Solidariedade
SOS para ajudar entregador ciclista cujo pneu estourou quando ele estava no centro de SP: todos ajudam
Ver-se como classe trabalhadora e aprender juntos
Luta contra o racismo
Tudo isso porque esses meninos e meninas estão levando muito a sério o desafio de responder às seguintes questões, conforme síntese feita por uma entregadora:
Quanto à pergunta “Quando?”, eles respondem com a sabedoria de um oriental:
LONGA VIDA À LUTA DOS ENTREGADORES ANTIFASCISTAS!
Veja aqui outras referências culturais e políticas apresentadas no grupo dos Entregadores Antifascistas. Para pensar:
7 respostas
Se puderem, enviem para eles a “Sopa de Wuhan” e “A cruel Pedagogia do virus” dois textos de Boaventura de Sousa Santos
O desprezo pelos entregadores não se dá apenas pelas empresas, mas também pelos destinatários das encomendas. Existem milhares de portões de metal pela cidade de São Paulo, na minha rua um portão inconstitucional fechou uma rua pública e tem uma placa que impede a entrada dos entregadores, que devem se identificar e aguardar fora da rua PÚBLICA, para eles os entregadores são cidadãos de segunda classe (a placa é específica para entregadores). Além disso, são obrigados a tocar no interfone de plástico, foco de contaminação por COVID-19, mas se morrerem, não faz diferença para esses cidadãos de primeira classe, entregadores são invisíveis e substituíveis para eles.