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Um lixo chamado pacote

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Publicado no Transforma MP- Por Rômulo de Andrade Moreira, no Empório do Direito.

O Governo brasileiro enviou ao Congresso Nacional alguns projetos de lei alterando, dentre outras normas, o Código Penal, o Código de Processo Penal, o Código Eleitoral e a Lei de Execução Penal. Reunidos, chamou-os de “Pacote Anticrime”, um nome, por si só, sedutor, enganoso, presunçoso e autoritário.

Sedutor, pois busca, pela via errada, apoio da população em geral, afinal quem seria mesmo contrário a umas tais medidas como estas? Enganoso, sobretudo porque insusceptível de ser a solução para alguma coisa. Também é presunçoso, posto pretender algo que não está ao alcance de leis penais e processuais penais. Por fim, é autoritário (como a gente que o pensou), já que não foi ouvida a comunidade jurídica, nem a acadêmica, tampouco a sociedade civil.

Aliás, nem sequer preocupou-se em redigir e apresentar uma exposição de motivos, uma justificativa para as alterações, como sói (e deve) acontecer antes de se iniciar um processo legislativo verdadeiramente republicano e democrático, ainda mais de uma tal monta.
Aposta-se, mais uma vez erradamente, no incremento de leis penais incriminadoras (com o aumento de penas e criação de novos tipos penais) e de processo penal (subtraindo garantias processuais), para responder à gravíssima questão da segurança pública e da violência, a urbana sobretudo. Uma aposta que vem sendo feita há três décadas no Brasil, debalde…

É bem provável que toda essa opção pelo “fetichismo normativista” (Alberto Binder[1]), tenha começado entre nós a partir da Lei nº. 8.072/90, que tratou dos chamados Crimes Hediondos.Desde então, estamos assistindo no Brasil o endurecimento das leis penais e processuais penais, cujo resultado, longe de ser o esperado e o prometido, mostra-se em números: o encarceramento em massa!

Agora, e cumprindo promessa de campanha, elabora-se uma ousada estratégia para prender mais gente: os acordos penais. É bem verdade que a Justiça Penal Negociada não é exatamente uma novidade no Brasil, pois inauguramos este modo de tratar os casos penais em 1995, com a Lei nº. 9.099 e, mais especialmente, com a transação penal (art. 76), expressamente prevista na Constituição Federal e limitada às infrações penais de menor potencial ofensivo (art. 98, I).[2] Além disso, a transação penal, autorizada pelo Constituinte Originário, não leva ninguém ao cárcere, muitíssimo pelo contrário, evita-o. Trata-se, envesso, de uma medida despenalizadora e, sobretudo, descarcerizadora.[3]

Aqui, adota-se um dos aspectos mais perversos da Justiça Criminal estadunidense, certamente responsável pela gigantesca população carcerária daquele País, situando-o na primeira colocação dentre os países que mais tem gente presa no mundo. E, como se sabe, por lá quase todos os casos penais são resolvidos (?) a partir do plea bargaining[4], entupindo o sistema prisional americano de negros, imigrantes e brancos pobres (sim, lá também os há, mesmo porque “as suas políticas públicas não têm nada a ver com os anseios do povo, e estão estreitamente vinculadas aos interesses das grandes empresas[5]).

Trata-se de mais uma importação absurda de institutos e categorias de um sistema completamente diferente do nosso, o Common Law, concebido para funcionar, ao contrário do Civil Law (e da tradição romano-germânica, como nós), com poucas leis e com obediência aos princípios e à jurisprudência, numa verdadeira e desastrosa “americanização à brasileira” (Jacinto Coutinho).[6]

Já temos a delação premiada, agora teremos os acordos penais, que tendem a ser, tal como a primeira, instrumentos de coação e opressão em mãos das “agências do poder punitivo” (Zaffaroni).[7]

São dois dispositivos em especial que, acrescentados ao Código de Processo Penal, possibilitarão tais ajustes.

No art. 28-A, prevê-se o chamado “acordo de não persecução penal”, acertado mesmo antes do processo. Já no art. 395-A, tem-se o acordo penal feito após iniciada a ação penal e anterior ao começo da instrução criminal. Em ambos se exige a confissão do investigado/acusado, erigindo-se este meio de prova como regina probationum, como outrora já o foi (e viu-se o que se passou).

No primeiro caso (“acordo de não persecução penal”), o investigado deverá, caso aceite a “solução negociada”, reparar o dano ou restituir a coisa à vítima (salvo impossibilidade de fazê-lo); renunciar voluntariamente a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por determinado período; pagar prestação pecuniária; além de cumprir, por prazo determinado, outra “condição”[8]indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

Segundo a proposta, não será admitido este acordo prévio quando o investigado for “reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, salvo se insignificantes as infrações penais pretéritas.” Eis um sério problema: qual o critério para se concluir que se trata de uma “conduta criminal habitual, reiterada ou profissional”? Seria a prática de três crimes, ou dez? Onde estão, em nosso ordenamento jurídico penal, tais categorias? Sabemos, por exemplo, o que é reincidência (arts. 63 e 64, do Código Penal), mas o restante… sabe-se lá!

Já no acordo penal, quando já há processo, a situação é mais absurda, pois, além da confissão, exige-se do acusado a dispensa da produção de provas e a renúncia ao direito de recurso, considerando-se, ademais, que a respectiva decisão homologatória será uma sentença condenatória. Portanto, haverá uma condenação penal sem produção de prova e sem o interrogatório judicial do condenado, o que viola, evidentemente, o art. 5º., LIV, da Constituição, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
Por outro lado, a pena aplicada nesta sentença condenatória sui generis (digamos assim) será fixada atendendo-se aos “parâmetros legais”, logo poderá ser proposta a aplicação da pena máxima cominada abstratamente no tipo penal. Alguém duvida? Eu não, pois os conheço bem.

Uma outra “curiosidade” é a previsão (no § 7º.)  que o Juiz não homologará o acordo se “as provas existentes no processo forem manifestamente insuficientes para uma condenação criminal.” Pergunta-se: quais seriam estas provas se não houve nem sequer a audiência de instrução e julgamento? O que há nos autos, tão-somente, são meros atos investigatórios ou, no máximo, provas produzidas antecipadamente (cautelares, técnicas e irrepetíveis).

Aliás, talvez em ato falho, consignou-se no § 2º., que o réu poderá ser beneficiado a depender do grau de sua colaboração “para a rápida solução do processo.” Aqui, traindo-se, mostrou-se a lógica da proposta: um processo rápido e eficiente, às favas com o devido processo legal.
Repete-se esta igual lógica (neoliberal) no inciso IV do § 2º., do art. 185 do Código de Processo Penal: para “prevenir custos com deslocamento ou escolta de presos”, permitir-se-á o interrogatório por videoconferência (adiante voltamos ao assunto).

Trata-se, como se vê, quase que de um processo penal empreendedor, afinal de contas estamos “numa sociedade que faz da concorrência interindividual uma justa competição.[9]
Antecipando-se ao Supremo Tribunal Federal (que ainda não decidiu definitivamente acerca da matéria), e se arvorando constituintes originários, os mentores do “Pacote Anticrime” afrontam a Constituição Federal (art. 5º., LVII), alterando o art. 283 do Código de Processo Penal, para permitir a prisão imediata em virtude de condenação criminal exarada por órgão colegiado (acrescentou-se, no mesmo sentido, o art. 617-A). Perceba-se que aqui é mais grave a violação ao princípio da presunção de inocência, considerando que temos órgãos colegiados de primeiro grau, como no Tribunal do Júri (Conselho de Sentença) e na Justiça Militar, dos Estados e da União (Conselho de Justiça).

Portanto, caso aprovado o projeto de lei e sancionado pelo Presidente da República, não somente será admitida a execução provisória da pena após uma decisão condenatória de segundo grau, mas também no Tribunal do Júri e na Justiça Militar. Este dispositivo é, inacreditavelmente, um absurdo!

Quanto ao Júri, tem-se uma regra ainda mais expressa, com a modificação introduzida na alínea “e”, do inciso I, do art. 492, do Código de Processo Penal, permitindo-se a execução provisória da pena aplicada pelo Juiz-Presidente, ainda que tenha sido interposto o recurso de apelação, salvo “se houver uma questão substancial cuja resolução pelo Tribunal de Apelação possa plausivelmente levar à revisão da condenação.” Sabe-se lá o que é esta tal de “questão substancial.” De toda maneira, sabemos muito bem em que isso vai dar…

Da mesma maneira, dispõe-se que “a apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri não terá efeito suspensivo”, salvo quando verificado pelo Tribunal que o recurso não tem propósito meramente protelatório ou “levanta uma questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o aberto.”

Ou seja: na prática, certamente, réu condenado pelo Tribunal do Júri sairá preso e algemado da sala de sessões, invariavelmente! E não serão os Tribunais que o impedirão, mesmo porque, e como é sabido, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº. 118.770/SP, acolheu a tese de que “a condenação no júri abala fortemente a presunção de inocência e, com isso, fica autorizado o imediato início da execução penal, logo após a leitura da sentença.” O autor desta verdadeira pérola foi o Ministro Luiz Roberto Barroso, em voto divergente. O relator, Ministro Marco Aurélio, foi voto vencido.

Observa-se que se trata de um julgamento secreto (no momento da resposta aos quesitos), cuja decisão é adotada por leigos e não é motivada.

Ainda a propósito do procedimento no Júri, também se apresenta a ideia de que o recurso em sentido estrito interposto em relação à decisão de pronúncia não impedirá a realização do respectivo julgamento. Assim, pronunciado o réu, ainda que interposto o recurso (art. 581, IV, CPP), o Juiz poderá realizar o Júri. Neste sentido, são alterados os arts. 421 e 584, § 2º., do Código de Processo Penal.

Portanto, doravante, o acusado pronunciado irá imediatamente a Júri, ainda que tenha interposto recurso. Agora vejam o despautério: condenado o réu, inicia-se imediatamente a execução provisória da pena; algum tempo depois (na maioria das vezes, muito tempo depois), o recurso em sentido estrito é julgado procedente, absolvendo-se o acusado, impronunciando-o, desclassificando o crime, ou mesmo anulando a pronúncia. E então? O absurdo é manifesto!

Referimos agora à modificação proposta para o art. 609 do Código de Processo Penal, atinente aos embargos infringentes e de nulidade. Como se sabe, trata-se de dois recursos: os embargos infringentes, que têm por objeto a matéria decidida por maioria e que diga respeito a uma questão de fundo, ou seja, ao mérito do caso penal. Já os embargos de nulidade impugnam questões exclusivamente processuais, decididas também por maioria. Como está atualmente redigido o mencionado dispositivo, cabíveis ambos os recursos quando, de qualquer maneira, o acórdão for desfavorável ao réu. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto de divergência.

Pois bem. Qual a mudança sugerida? O cabimento dos recursos só será admissível quando, além de não unânime, o acórdão for absolutório. Assim, caso o recorrente tenha sido condenado por unanimidade, mas tenha havido algum voto divergente, por exemplo, quanto à aplicação da pena, do regime prisional ou relativamente a uma nulidade processual, inadmissíveis serão os recursos, pois não houve absolvição. Aqui, também na prática, desaparecem os embargos de nulidade, visto que uma questão exclusivamente processual nunca levará à absolvição do acusado, aos menos em nosso ordenamento jurídico.

A alteração é impertinete, pois os embargos infringentes e de nulidade buscam, na verdade, melhor apurar determinada questão decidida por maioria pelo Tribunal, tendo em vista que o(s) voto(s) divergente(s) indica(m) uma séria dúvida sobre o acerto da decisão colegiada. Em última análise, aplica-se o princípio do favor libertatis ou favor rei, “base de toda a legislação penal de um Estado inspirado, na sua vida política e no seu ordenamento jurídico, por um critério superior de liberdade. Não há, efetivamente, Estado autenticamente livre e democrático em que tal princípio não encontre acolhimento. É uma constante das articulações jurídicas de semelhante Estado, um empenho no reconhecimento da liberdade e autonomia da pessoa humana. No conflito entre o jus puniendi do Estado por um lado e o jus libertatis do arguido por outro, a balança deve inclinar-se a favor deste último se se quer assistir ao triunfo da liberdade”, conforme lição sempre atual de Giuseppe Bettiol.[10]

 A respeito, muito pertinente também a lição de Carnelutti:                                              

No se necesita otra cosa para se deducir que la coincidencia de las opiniones aumenta la probabilidad de que deriven de esa fuente y así la probabilidad de su verdad.” Logo, “nos basta el principio indiscutible de que las divergencias entre las opiniones de distintos hombres en torno al mismo objeto, no se explican sino con el error de alguno de ellos; si no existiese error, todos estarían de acuerdo, puesto que la verdad no es más que una.”[11]

Com razão, Ricardo Gloeckner, pois, “é justamente sobre as bases do ´direito a um processo em regime de igualdade` que algumas propostas de alteração legislativa se fazem presentes, por exemplo, a da supressão de recursos e algumas prerrogativas do acusado.”[12]

Há ainda outras absurdidades como, por exemplo, a extração compulsória de material biológico para efeito de determinação do perfil genético, antes mesmo do trânsito em julgado da decisão condenatória (alteração proposta no art. 9º.-A, da Lei nº. 7.210/84), desautorizando o art. 8-2, “g”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, norma de natureza supralegal, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal.[13]

Aliás, por entenderem que a questão tinha relevância jurídica e social, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceram a existência de repercussão geral para julgar a constitucionalidade dos bancos de dados genéticos de condenados por crimes hediondos. A questão chegou à Suprema Corte por meio de um recurso extraordinário que questiona acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Segundo a decisão da corte mineira, a criação de base de informações desse tipo não viola o princípio da não autoincriminação porque decorre de condenação criminal transitada em julgado. O recurso é relatado pelo Ministro Gilmar Mendes. Para ele, a inclusão e manutenção de perfil genético de condenados em banco de dados estatal não é aceita, de forma unânime, como compatível com direitos da personalidade e prerrogativas processuais, consagrados pelo art. 5º., da Constituição Federal. Segundo o Ministro, os limites dos poderes do estado de colher material biológico de suspeitos ou condenados por crimes, de traçar o respectivo perfil genético, de armazenar os perfis em bancos de dados e de fazer uso dessas informações são objeto de discussão em diversos sistemas jurídicos (Recurso Extraordinário nº. 973.837).[14]

Também está entre as “medidas” propostas pelo Governo, o acréscimo do art. 4º-A, na Lei nº. 13.608/18, que dispõe sobre o serviço telefônico de recebimento de denúncias e sobre recompensa por informações que auxiliem nas investigações policiais, criando-se o “informante do bem” (sic), o wistleblowing, velho conhecido do Direito Norte-Americano e, portanto, mais um contrabando legislativo. Incorpora-se este tal “assoprador de apito” ao serviço público brasileiro, nas esferas federal, estadual e municipal, com direito, inclusive, a uma recompensa de até cinco por cento do valor recuperado a partir da deduragem.

Sobre isso, João Ubaldo Ribeiro, lembrou certa vez, que “os próprios militares e policiais encarregados dos inquéritos tinham desprezo pelos dedos-duros – como, imagino, todo mundo tem, a não ser, possivelmente, eles mesmos. E, superado aquele clima terrível seria de se esperar que algo tão universalmente rejeitado, epítome da deslealdade, do oportunismo e da falta de caráter, também se juntasse a um passado que ninguém, ou quase ninguém, quer reviver. Mas não. O dedurismo permanece vivo e atuante, ameaçando impor traços cada vez mais policialescos à nossa sociedade.” E, conclui: “Sei que as intenções dos autores da ideia são boas, mas sei também que vêm do desespero e da impotência e que terminam por ajudar a compor o quadro lamentável em que vivemos, pois o buraco é bem, mas bem mesmo, mais embaixo.”[15]

Outrossim, modifica-se, ainda que sutilmente, a disciplina do interrogatório por videoconferência. Hoje, o § 2º., do art. 185, do Código de Processo Penal, impõe que a videoconferência só pode ser realizada “excepcionalmente”. A alteração proposta retira exatamente aquele advérbio de modo, tornando regra o que era para ser exceção. Lamentável, ainda mais se tratando, como se sabe, de um meio de defesa, cuja presença física do interrogado junto ao interrogante é fundamental e, por isso, sempre aconselhável. E, a fim de tornar ainda mais banal a videoconferência, retira-se do inciso IV, daquele mesmo § 2º., a palavra “gravíssima”.

Arvorando-se agora legislador constituinte, os proponentes das “medidas” querem estabelecer a competência do Juiz Federal de execução penal para toda ação de natureza penal que tenha por objeto fatos ou incidentes relacionados à execução da pena ou infrações penais ocorridas no estabelecimento penal federal. Ora, quem trata da competência dos Juízes federais é o art. 109 da Constituição Federal! Mais um erro grosseiro, portanto.

Também se autoriza que o Juiz Federal determine a gravação de atendimentos de advogados nos estabelecimentos penais federais de segurança máxima (novo art. 3º., § 5º., da Lei nº. 11.671/08), arrostando-se as prerrogativas prevista no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, mais particularmente o art. 7º., III da Lei nº. 8.906/94.

Viola-se, outrossim, o princípio de reserva de jurisdição que, segundo o Ministro Celso de Mello, no julgamento do Mandado de Segurança nº. 23452/RJ , “importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política , somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem haja eventualmente atribuído o exercício de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais“. Estamos nos referindo ao § 8º., do art. 3º., da Lei nº. 11.671/08, no qual se permite que regime prisional possa ser excepcionado por decisão do diretor do estabelecimento penal federal, “no caso de criminoso colaborador, extraditado, extraditando ou se presentes outras circunstâncias excepcionais.”

Curioso, para usar um eufemismo, é o acrescentamento do inciso III ao § 1º., do art. 1º., da Lei nº. 12.850/13, nominando-se expressamente algumas organizações criminosas existentes no Brasil, como o Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro e Amigo dos Amigos. Impagável essa!

Também há previsão de uma outra alteração nesta mesma lei, com o acréscimo do § 9º., ao art. 2º., impedindo a progressão do regime de cumprimento de pena e de outros benefícios prisionais, descurando-se, mais uma vez, da Constituição Federal, mais particularmente, o seu art. 5º., XLVI, que trata da individualização da pena.

Sabe-se que a individualização da pena engloba, não somente a aplicação da pena propriamente dita, mas também a sua posterior execução, com a garantia, por exemplo, da progressão de regime.

E o art. 59 do Código Penal, que estabelece as balizas para a aplicação da pena, prevê expressamente que o Juiz sentenciante deve prescrever “o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade”, o que indica induvidosamente que o regime de cumprimento da pena é parte integrante do conceito “individualização da pena”.

Logo, não se pode admitir que, a priori, alguém seja condenado a cumprir a sua pena em regime integralmente fechado, vedando-se absolutamente qualquer possibilidade de progressão.

Como ensina Luiz Luisi, “o processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos complementares: o legislativo, o judicial, e o executório ou administrativo.” Explicitando este conceito, o mestre gaúcho ensina: “Tendo presente as nuanças da espécie concreta e uma variedade de fatores que são especificamente previstas pela lei penal, o juiz vai fixar qual das penas é aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execuçãoAplicada a sanção penal pela individualização judiciária, a mesma vai ser efetivamente concretizada com sua execuçãoEsta fase da individualização da pena tem sido chamada individualização administrativa. Outros preferem chamá-la de individualização executória. Esta denominação parece mais adequada, pois se trata de matéria regida pelo princípio da legalidade e de competência da autoridade judiciária, e que implica inclusive o exercício de funções marcadamente jurisdicionaisRelevante, todavia no tratamento penitenciário em que consiste a individualização da sanção penal são os objetivos que com ela se pretendem alcançar. Diferente será este tratamento se ao invés de se enfatizar os aspectos retributivos e aflitivos da pena e sua função intimidatória, se por como finalidade principal da sanção penal o seu aspecto de ressocialização. E, vice-versa.” (grifei).

E conclui o autor: “De outro lado se revela atuante o subjetivismo criminológico, posto que na individualização judiciária, e na executória, o concreto da pessoa do delinqüente tem importância fundamental na sanção efetivamente aplicada e no seu modo de execução.”[16]

Neste mesmo sentido, Rodríguez Devesa afirma que “pueden distinguirse tres fases en el proceso de determinación de la pena aplicable: individualización legal; individualización judicial e individualización penitenciaria.”[17]

Portanto, não restando dúvidas de que a possibilidade de progressão de regime é parte integrante da individualização da pena, afigura-se-nos inconstitucional esta modificação proposta, desde que constitui elemento impeditivo daquela garantia.

Por fim, não esqueçamos da nova disciplina proposta para a legítima defesa, uma verdadeira “licença para matar”, muito ao gosto dessa gente. Esta questão, porém, por ser eminentemente de Direito Material, foge do escopo deste artigo. Deixo o leitor, então, e por todos, na boa companhia de Luís Greco[18] e José Carlos Porciúncula.[19]

Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.


[1] “Se le ha puesto el nombre de ´fetichismo normativista` a la práctica según la cual las autoridades públicas sancionan leyes, muchas veces con propuestas ambiciosas de cambio y, luego, se despreocupan de su puesta en marcha. Tras esta práctica no se encuentra una forma de “pensamiento mágico” –lo que sería una forma de volver superficial el fenómeno con analogías fáciles, sino uno de los mecanismos más profundos de pervivencia de la sociedad de privilegios, es decir, usar la legalidad como una máscara de legitimidad y no como instrumento de realización de políticas efectivas.”, disponível em http://biblioteca.cejamericas.org/bitstream/handle/2015/5254/binder-ref-justicia.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

[2] Como afirma Aury Lopes Jr., “a ampliação dos espaços de consenso é uma tendência inexorável e necessária, diante do entulhamento da Justiça criminal em todas as suas dimensões. Contudo é preciso compreender que nosso sistema jurídico (civil law) impõe limites que não permitem a importação de uma negociação tão ampla e ilimitada no que se refere à quantidade de pena — como a proposta pelo projeto “anticrime” do governo federal — que se assemelha ao plea bargainingnorte-americano (common law). Uma negociação dessa magnitude representa o fim do processo penal, na medida em que legitima em larguíssima escala a “aplicação de pena privativa de liberdade sem processo“, disponível em https://www.conjur.com.br/2019-fev-22/limite-penal-adocao-plea-bargaining-projeto-anticrimeremedio-ou-veneno.

[3] Sobre a matéria, veja-se o excelente livro de Vinícius Gomes de Vasconcelos, “Barganha e Justiça Criminal Negocial”, publicado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, em 2015, após o trabalho vencer o 19º. Concurso de Monografias de Ciências Criminais – IBCCRIM.

[4] Importante notar, conforme ensina o Professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, que, “antes de tudo, há de se questionar por que a matéria foi apresentada como plea bargain e não plea bargaining. Deve haver, por evidente, uma diferença; e se não houvesse, haver-se-ia de dizer, mesmo porque nem todo mundo é expert na língua inglesa. Os dicionários dizem que sim; que há diferença. E ela sugere que falar em plea bargain, a par de ser, na hipótese brasileira, uma demonstração de desconhecimento, pode ser uma tentativa de reduzir a discussão sobre o tema, concentrando-o tão só no acordo que se estabelece; ou deal; ou contract; ou agreement. Plea bargaining, por evidente, é muito mais e, envolvendo toda a negociação para se chegar ao acordo e suas consequências, dá conta das pessoas, do objeto e dos trâmites, naquilo que são seus fundamentos e os fundamentos dos seus fundamentos.”, disponível em https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/6311-Plea-bargaining-no-projeto-anticrime-cronica-de-um-desastre-anunciado.

[5] CHOMSKY, Noam, “Réquiem para o sonho americano – Os 10 princípios de concentração de riqueza & poder”, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017, p. 157. Este livro foi baseado no documentário “Requiem for the american dream”, criado e editado por Peter Hutchison, Kelly Nyks e Jared P. Scott.

[6] O texto “Processo Penal e Americanização à Brasileira: Resistência”, está no prefácio do livro “Sistema Penal e Poder Punitivo (Estudos em Homenagem ao Professor Aury Lopes Jr.)”, coordenado pelo Professor Salah H. Khaled Jr. Neste trabalho, o Professor Jacinto Coutinho cita o artigo de Máximo Langer, “Dos transplantes jurídicos às traduções jurídicas: a globalização do plea bargaining e a tese da americanização do processo penal.”

[7] Segundo Zaffaroni, “a função do Direito Penal, hoje e sempre, é conter o poder punitivo. O poder punitivo não é seletivo do poder jurídico, e sim um fato político, exercido pelas agências do poder punitivo, especialmente a polícia. Não estou falando da Polícia Federal ou da que está na rua e sim de todas as agências policiais, campanhas de inteligência, arquivos secretos, polícia financeira, enfim, agências executivas. Essas agências têm uma contenção jurídica que é o Direito Penal.”, disponível em https://www.conjur.com.br/20anos/2017-ago-03/raul-zaffaroni-jurista-argentino-funcao-do-direito-penal-e-limi.

[8] A prestação de serviço à comunidade e a prestação pecuniária são penas previstas no art. 43, I e IV, do Código Penal. O uso da palavra “condição”, portanto, é um eufemismo usado para esconder que se trata, na verdade, de uma sanção de natureza penal, aplicada sem nem sequer alguma acusação formal ter sido formulada. Neste sentido, note-se que o § 6º. do art. 28-A estabelece que, “homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.” (grifei).

[9] EHRENBERG, Alain, “O culto da performance – Da aventura empreendedora à depressão nervosa.” São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2016, p. 13.

[10] “Instituições de Direito e Processo Penal”, Coimbra: Editora LDA, 1974, p. 295. Tradução para o português de Manuel da Costa Andrade.

[11] “Lecciones sobre el proceso penal”, Vol. IV (tradução de Santiago Sentis Melendo), Buenos Aires: Bosch, 1950, p. 68.

[12] “Direito fundamental ao recurso no processo penal: uma crítica à concepção bilateral da impugnação”, texto publicado na Revista Justiça e Sistema Criminal, Vol. 6, nº. 11, julho/dezembro de 2014, p.185.

[13] Diz o dispositivo do Pacto de São José da Costa Rica: “Toda pessoa acusada de delito tem direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.

[14] A propósito, escrevi com Alexandre Morais da Rosa o texto publicado no https://emporiododireito.com.br/leitura/os-perigos-do-banco-de-dna-na-pauta-do-supremo-tribunal-federal

[15] Crônica publicada no jornal O Globo, na edição do dia 17 de dezembro de 1995.

[16] “Os Princípios Constitucionais Penais”, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 37 e segs.

[17] Apud Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, “Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal”, Madri: Editorial Colex, 1990, p. 30.

[18] https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/analise-sobre-propostas-relativas-a-legitima-defesa-no-projeto-de-lei-anticrime-07022019.

[19] https://www.conjur.com.br/2019-fev-20/porciuncula-projeto-moro-imperador-nao-acima-gramaticos.

 

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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Geral

O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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