“Há preconceito com o nordestino há preconceito com o homem negro há preconceito com o analfabeto mas não há preconceito se um dos três for rico.” Criolo – Cálice
Rio de Janeiro, Niterói.
Sábado: a praça Juscelino Kubitschek, no centro de Niterói amanhece com cartazes que pregavam mensagens de ódio.
As mensagens — acompanhadas de uma ilustração que faz referência à Ku Klux Klan ameaçavam: “comunista, gay, judeu, muçulmano, negro, antifa, traficante, pedófilo, anarquista. Estamos de olho em você”.
Rio de Janeiro, Copacabana.
No último domingo de um inverno com altas temperaturas, o calor não se restringiu apenas ao clima quente.
Jovens de classe média, moradores do bairro, cercaram um ônibus que transportava jovens iguais a eles — só que diferentes — jovens que voltavam para suas casas depois de um dia na praia.
Ensandecidos, os jovens de classe média depredaram o ônibus e hostilizaram seus passageiros, sob o olhar cúmplice da Polícia Militar.
“Abre a porta, abre a porta, motorista! Só tem ladrão. Vamos dar porrada.
Fotografa eles, só tem ladrão!” gritavam.
A intolerância enquanto semente já foi cultivada e tem dado muitos frutos podres.
Regada a ódio, a desinformação, encontrou solo fértil na mente estéril de jovens que temem o diferente, louvam uma suposta “superioridade” baseada em méritos financeiros e entendem que tudo podem ao arrepio da lei.
A mesma mídia que os incentiva a agirem assim, despejando em suas mentes atrofiadas porções diárias de medo através de programas policialescos e discursos pseudo moralistas, protege-os quando são pegos em flagrante nalgum delito.
“Não são traficantes, são jovens de classe média apanhados com drogas”, assim diz, sem dizer, a manchete de um dos maiores portais de notícias no Brasil noticiando a prisão de um rapaz com grande quantidade de drogas.
É esse mesmo tipo de jovem que espancou uma mulher na rua e quando preso, justificou sua barbárie, dizendo:
“Eu achei que era uma prostituta.”
(Nota mental: Como assim? Prostituta pode ser espancada?)
No episódio ocorrido em Copacabana há um fato alarmante: a Polícia Militar assistiu, como coadjuvante, à ação dos criminosos, digo, dos jovens de classe média que depredaram o ônibus e espancaram seus passageiros.
Porque não os prenderam? Estavam cometendo vários crimes em flagrante, não estavam?
A resposta é bem clara: a Polícia Militar tem lado, e esse lado não é o lado dos mais fracos.
Certamente que tem lado, e esse lado é o lado do “cidadão de bem”. O cidadão bem nascido, bem nutrido, bem rico. Um tipo de cidadão totalmente diferente daqueles passageiros do ônibus atacado.
A verdade é que a Polícia Militar, quando não usa o mesmo rigor que usa para com o morador do morro e trata com distinção o jovem de classe média, dá alguns recados bem claros para ambos os lados:
“Vocês que não moram na Zona Sul, não venham para Copacabana, fiquem no Piscinão de Ramos que lá é o lugar de vocês.”
“Nós endossamos esse tipo de barbárie.”
“Jovens de classe média, a Polícia Militar está aqui para proteger e servir vocês.
Não se preocupem.”
Foi com enorme tristeza que li, em janeiro último, o artigo de Hildegard Angel no qual ela fazia duas, digamos… “sugestões”:
1 — Em dias de grande concentração de pessoas nas ruas e praias, nos fins de semana e feriados do verão, diminuir drasticamente a circulação das linhas de ônibus e de Metrô no fluxo Zona Norte — Zona Sul, estimulando o aumento do fluxo Zona Norte — Zona Oeste, para haver uma distribuição mais equilibrada da população das praias. Barra, Recreio, São Conrado têm praias imensas, lindas. Modo de evitar concentrações opressivas.
2 — Caso essa providência não alcance resultado, partir para um plano B radical: cobrar entrada nas praias de Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon. Isso pode soar com estranheza para os cariocas, que sempre tiveram a praia gratuita, mas no exterior é a normalidade. Preços módicos, naturalmente.
(Nota mental: disse Hildegard: “As medidas são antipáticas e discriminatórias, concordo. Mas ou é isso ou será o caos.”
O caos, desde que seja para os outros, é refresco, não é mesmo Hildegard?)
O artigo com as tais “sugestões” causou grande e negativa repercussão, até pelo fato de que Hildegard tem um histórico de serviços prestados à democracia, e não o contrário.
O artigo foi deletado, mas ficou o estrago: quantos jovens de classe média acharam boas as sugestões de Hildegard e resolveram implementá-las à força no último domingo?
Quantos jovens de classe média resolveram colar cartazes da Ku Klux Klan com o objetivo de, como feras (que são mesmo) demarcar território contra a “invasão” (sic) de comunistas, gays, judeus, muçulmanos, negros, antifas, anarquistas, ameaçando-os?
Que construção miserável de ser humano é essa que consegue pautar sua vida baseada no desprezo e no ódio, incapaz de ver no próximo um reflexo de si mesmo?
Escrevi essas linhas e, depois de um suspiro desolado, mirei-me a mim mesmo em meu próprio reflexo no espelho envergonhado com minha condição de mero espectador impotente, cuja única arma factível e possível é expressão da indignação expressa nessas linhas.
Em outro tempo, há mais de dois mil anos atrás, outro homem como eu também escreveu, talvez indignado como eu:
“O que é odioso para ti, não o faças ao próximo. Esta é toda lei, o resto é comentário” Talmud — Shabbat 31ª
Em tempo, e nesse tempo, para que não nos esqueçamos:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.”
Art. 5, inciso XV da Constituição Federal de 1988.
*Diógenes Júnior é militante comunista no PC do B e pesquisador independente. Paulistano de nascimento, caiçara de coração e gaúcho por opção está radicado em Porto Alegre, RS, de onde escreve sobre Política, História, Cinema, Comportamento, Movimentos Sociais, Direitos Humanos e um pouco de um tudo.