Por Mariana Turino e Ruy S. S. Jr.
A Min. Cármen Lúcia disse recentemente que durante sua presidência no Supremo Tribunal Federal falhou em pacificar o país. Podemos acrescentar também que falhou em demonstrar o mínimo de vontade de moralizar o Poder Judiciário, mantendo o auxílio-moradia ao arrepio da lei.
Em 31/03/2018 denunciamos aqui a decisão do Ministro Fux, na Ação Originária 1.946 que determinou a retirada da pauta de julgamento do STF das Ações que discutem o AUXÍLIO-MORADIA, com o consequente envio das mesmas à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal.
Afirmamos que além da questão não ser passível de conciliação, as liminares que determinam o pagamento deveriam ser cassadas, o que não ocorreu e beneficia juízes e procuradores em prejuízo dos cofres públicos até hoje.
No último dia 19/06/2018 a AGU – Advocacia-Geral da União – devolveu as Ações ao STF afirmando que a solução da questão depende da edição de Leis ou de Emenda Constitucional1.
A AGU reconhece, assim, que não há lei que permita o recebimento do auxílio-moradia por juízes e procuradores.
O STF, por uma medida liminar, além de usurpar a função do Poder Legislativo, causando vultuoso prejuízo aos cofres públicos, trata juízes e procuradores de modo diverso de todos os demais funcionários públicos.
Qualquer funcionário público do Brasil em igualdade de condições com Juízes e Procuradores que ingressar com uma Ação Judicial buscando o pagamento de qualquer parcela, mesmo que prevista em lei, terá seu pedido de medida liminar indeferido.
Esse indeferimento tem por base o art. 1.059, CPC, o art. 1º da Lei 9.494/97 e o art. 7º, § 2º da Lei 12.016/09, bem como, a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 04 do STF, que vedam a concessão de tutela provisória que implique aumento de vencimentos para servidores públicos.
Tutela provisória é uma forma de entregar o resultado final da ação antes do término completo do processo, denominado trânsito em julgado. A tutela provisória pode ser deferida nos casos previstos em lei, em decisão liminar (decisão inicial sem análise do mérito da ação) ou mesmo na sentença. O problema aqui é que é vedado o deferimento de tutela antecipada nesse tipo de ação.
Estamos, portanto, diante de um escandaloso tratamento diferenciado deferido pelo STF aos juízes e procuradores.
Uma outra questão importante se coloca:
O STF terá coragem de seguir a sua jurisprudência e determinará a devolução dos valores recebidos com base nas decisões liminares?
Segurados do INSS que recebessem com base em liminar revogada na Sentença, ou com base em Sentença reformada pelo Tribunal de 2ª Instância já são obrigados devolver os valores recebidos, com base em jurisprudência sólida e pacífica do STJ e STF, o mesmo vale para juízes e procuradores?
Além da ilegalidade no pagamento de subsídio sem previsão legal, não devemos perder de vista a realidade econômica da população brasileira e do orçamento público.
O valor do auxílio-moradia é R$ 4.377. O rendimento médio salarial do cidadão brasileiro em 2017 foi de R$ 2.149,00, segundo dados do IBGE. Mais de 15 vezes inferior ao teto da remuneração de magistrados e membros do MP. Não bastasse tamanha desproporção, a elite jurídica no serviço público não se sente constrangida em auto conceder-se o privilégio do auxílio-moradia em valor 2 vezes maior que a média salarial do cidadão comum.
A maioria da população recebe salários irrisórios para jornada extenuante de 44 h semanais, tendo que arcar com todos os custos inerentes a sua sobrevivência. Por que com juízes e membros do Ministério Público é diferente?
Estudo da ONG Contas Abertas estima que os cofres públicos destinaram mais de R$ 5 bilhões para custear o auxílio-moradia entre 2014, quando foi concedida a liminar por Fux, e dezembro de 2017. Mais de 1 bilhão de reais ao ano para pagar um privilégio com resquício da mentalidade monarquista.
São 30 mil beneficiados pelo auxílio, 17 mil juízes e 13 mil membros do MP, segundo a ONG, equivalente a 0,01% da população brasileira.
Em tempos de congelamento orçamentário decorrente da malfadada EC 95 (aquela que congelou os gastos públicos por 20 anos), a destinação de orçamento para pagamento do auxílio-moradia implica redução de gastos com rubricas sociais e investimentos e agrava ainda mais o fosso de desigualdade de nossa Nação.
Causa ainda mais espanto as diversas declarações de juízes, procuradores e promotores de que o auxílio-moradia seria uma forma de recompor a remuneração que não teve reajustes anuais, espécie de jeitinho para agraciar os já privilegiados. Sem o “inconveniente” da incidência de imposto de renda, uma vez que é verba classificada como indenizatória.
O Estado Democrático de Direito foi concebido para abolir com os indevidos privilégios absolutistas
de determinadas e poucas classes sociais em detrimento da maioria da população.
O Estado Democrático visa reduzir o poder político arbitrário e despótico e racionalizar a organização social e os direitos fundamentais dos indivíduos, dentre os quais a igualdade.
Dessa forma, é evidente que o auxílio-moradia afronta a organização democrática ao privilegiar uma restrita classe, que se vale de sua posição e poder social para gozar de privilégio descabido e incompatível com a realidade econômica da população.
O funcionalismo é incumbido do dever de servir ao público e não dele se servir.
Toda forma de aprofundamento da concentração de renda e desigualdade social deve ser combatida para a efetivação do Estado Democrático.
- Mariana Turino é advogada, formada pela UniCEUB, e Ruy S. S. Jr. é advogado, formado pela Universidade Estadual de Feira de Santana/Ba.