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América Latina e Mundo

Se violência gera violência, cultura gera cultura

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De 27 a 31 de outubro, El Salvador recebeu o II Congresso Latinoamericano de Cultura Viva Comunitária. Veja como foi o encontro e conheça um pouco mais sobre a história do país

por Ana Carolina Barão, com fotos de Diana Illescu, especial para os Jornalistas Livres

De 27 a 31 de outubro, El Salvador recebeu o II Congresso Latinoamericano de Cultura Viva Comunitária. Durante uma semana, diversas atividades culturais, debates, oficinas, círculos, passeios e intercâmbios aconteceram por todo o país com o objetivo de consolidar os processos de cultura viva comunitária.

Sob o tema “Convivência para o bem comum”, buscou-se conscientizar a população sobre a necessidade de modelos de políticas públicas para o fortalecimento e a multiplicação de iniciativas culturais, destinando o mínimo de 0,1% do orçamento nacional para tais ações e empoderando as comunidades em seus territórios.

No primeiro congresso que aconteceu em 2013, na cidade de La Paz, Bolívia, firmou-se um compromisso de se agregar esforços para que o próximo evento fosse realizado na América Central. Por isso, a Red Salvadoreña de Cultura Viva Comunitaria e o Movimento de Arte Comunitario Centroamericano (MARACA) se comprometeram a formar o comitê organizador e assumiram a responsabilidade de dar continuidade ao trabalho de consolidação nacional e regional em El Salvador.

A pequena extensão territorial de El Salvador (21.040 km²) não corresponde à grandeza de seu povo, que há mais de quinhentos anos resiste à exploração, ao imperialismo e a todas suas consequências: chacinas, extermínios, guerras civis e racismo. Para compreender a importância do congresso nesse país no qual se vê a cada esquina um homem armado com uma escopeta (guarda privada) ou aqueles que carregam facões com a mesma naturalidade que carregamos nossas mochilas, é preciso voltar no tempo.

Revolta de 1932

Antigamente, as comunidades indígenas de El Salvador eram muito ligadas a seus costumes, línguas, conhecimentos, a sua cultura. Suas terras eram distribuídas para trabalhar, formando assim um sistema de propriedade comunitária. No final do século XIX, latifundiários que pretendiam iniciar a cultura do café, desapropriaram essas terras que pertenciam aos povos originários, deixando-os ao relento.

A Grande Depressão que se iniciou em 1929, foi o período mais longo de recessão econômica do século XX, afetando diretamente El Salvador e sua economia cafeeira. A crise provocou a queda dos preços e consequentemente das exportações, fazendo com que tanto o governo quanto os latifundiários ganhassem menos. Assim, muitos funcionários públicos foram demitidos e os que permaneceram tiveram seus salários rebaixados. O mesmo aconteceu com os trabalhadores do campo, que passaram a ganhar a metade de seus rendimentos anteriores. As mulheres, que tradicionalmente já recebiam menos dinheiro e comida que os homens, ficaram nas piores condições.

Em 1931, aconteceram eleições presidenciais e, pela primeira vez, nenhum candidato foi imposto à população. Uma mulher, Prudencia Ayala, quis se candidatar, mas foi impedida, pois as mulheres ainda não tinham conquistado o direito de igualdade de voto. No mesmo ano, Arturo Araujo se elegeu com propostas progressistas, porém não cumpriu. A cada dia, o povo se revoltava mais, simpatizando e se aproximando do Partido Comunista, recém-criado (1930). Não tardou para que a repressão aumentasse, principalmente no campo.

Temerosos com as reivindicações populares, em 2 de dezembro de 1931, as forças armadas dão um golpe de Estado e impõem como presidente o General Maximiliano Hernández Martínez, conhecido como “el Brujo”. A crise não foi solucionada e os protestos aumentavam. Também aconteceram eleições municipais nas quais o Partido Comunista se elegeu, gerando mais atrito entre o governo.

Imersa em miséria e exploração, a sociedade civil se estruturava para uma insurreição. Cientes desses planos junto ao Partido Comunista, a polícia capturou Farabundo Martí e outros dirigentes. No entanto, os rebeldes já estavam organizados por todo o país, infiltrados inclusive no exército, e não havia tempo para detê-los. Praticamente aniquilado na capital, o levante que se iniciou em 22 de janeiro de 1932 tomou força na parte ocidental do país, onde indígenas e camponeses atuaram a partir das ordens de seus caciques e líderes locais. Rapidamente, o exército, sob o pretexto de salvar o país do comunismo, massacrou os povos originários, o que resultou em mais de 30 mil assassinatos.

Luíz Monterrosa, diretor do Instituto de Direitos Humanos da UCA (Universidade Centroamericana José Simeón Cañas)

Segundo Luíz Monterrosa, diretor do Instituto de Direitos Humanos da UCA (Universidade Centroamericana José Simeón Cañas), essa tragédia marcou o pensamento salvadorenho, “Na consciência das pessoas, ficou que a violência resolve e que os poderosos mandam. Aquele foi o momento em que os indígenas viram a oportunidade de lutar por seus direitos. Desde então, existe uma resistência para se aceitar indígena, porque ser indígena é ser comunista.”

Guerra Civil

Na década de 70, organizações de guerrilha e populares começaram a se construir em todo o país. Consequentemente, a repressão contra o povo e contra os membros da igreja adeptos à “teologia da libertação” se intesificou. Nesse cenário, em 1977, Monseñor Oscar Arnulfo Romero foi nomeado arcebispo e iniciou sua luta ao lado da população carente. No mesmo ano, aconteceram eleições presidenciais, mas mais uma vez o povo salvadorenho sofreu um golpe militar. Desta vez, quem assumiu o poder foi General Carlos Humberto Romero, responsável pela criação de uma lei que dava autonomia para o exército cometer todos os tipos de atrocidades contra a população, pelo aumento da repressão, assassinatos, capturas, torturas, desaparecimentos e pelo fortalecimento dos Esquadrões da Morte — grupos paramilitares de extrema-direita.

Praça Salvador do Mundo — Ritual de abertura do congresso

No entanto, a repressão não conseguiu conter a mobilização popular. Camponeses ocuparam terras e trabalhadores ocuparam fábricas. Todos se manifestavam por todo país e Monseñor Romero os defendia arduamente por meio de suas homílias, conhecidas como “a voz dos sem voz”. Em 23 de março de 1980, durante uma missa, Monseñor se dirigiu aos militares “Em nome de Deus e em nome desse povo sofrido, cujos lamentos sobem até o céu a cada dia mais tumultuosos, lhes rogo, lhes suplico, lhes ordeno em nome de Deus: parem a repressão!”. No dia seguinte, ele foi assassinado enquanto rezava uma missa. Sua morte foi um dos fatores para a eclosão da Guerra Civil, em 1981.

“O assassinato de Romero foi a tentativa da classe dominante de deter o avanço do povo a partir da ideia de que, se matassem o líder da mudança, todos os outros teriam medo suficiente para não fazer nada. Na época, o movimento marxista era composto majoritariamente por cristãos e Romero tinha esse rol de liderança da sociedade. No entanto, a ele não agradava a ideia da guerrilha e para a direita ele era um subversivo. Com o seu assassinato, uma grande quantidade de cristãos que viviam na cidade percebeu que não lhe restava alternativa que não se armar, e então partiram para o campo e uniram-se à guerrilha armada.” — Luís Monterrosa

A FMLN (Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional), que hoje é o partido que governa El Salvador, formou-se em outubro de 1980 para reunir forças e enfrentar o exército. Sob o pretexto de conter o avanço da guerrilha, as forças armadas salvadorenhas forjaram diversos massacres. No Massacre de Mozote, quase toda população civil foi assassinada, em sua maioria jovens menores de dezoito anos, além de gestantes, idosos e mulheres que foram estupradas. De 1600 pessoas, apenas Rufina Amaya sobreviveu.

Para financiar bombas de napalm, mutilações, incontáveis desaparecidos, milhares de refugiados e atrocidades que nunca saberemos, pois os que sobreviveram não possuem saúde psicológica para nos contar, calcula-se que os EUA, governado por Ronald Reagan e posteriormente por George H. W. Bush, transferiu US$7 bilhões ao longo de 10 anos ao governo de El Salvador.

A guerra cessou em janeiro de 1992, com o acordo de Paz de Chapultepec. Desde a aprovaçao da lei que anistia todos os agentes do Estado que cometeram violações antes ou durante o conflito armado, em março de 1993, os responsáveis seguem impunes: “Sin juicio no hay perdón”. (Frase que escutei em El Salvador e que significa mais do que a justiça institucionalizada. As pessoas querem que seus algozes sejam julgados , que lhes peçam desculpas e se arrependam do que fizeram. Enquanto isso não acontecer, não haverá perdão.)

Cultura da violência

A partir dos anos 70, muitos salvadorenhos se refugiaram clandestinamente na Califórnia, EUA, distanciando-se do cenário de horror que se alastrava por suas terras a cada dia. Ao chegaram, não foram bem recebidos sequer pelas pandillas (gangues) mexicanas. Nesse contexto de violência, fácil acesso a armamentos, drogas e desemprego, as primeiras pandillassalvadorenhas começaram a se formar. Até meados dos anos 90, os EUA já havia multiplicado todos os seus esforços para deportar grande parte dos pertecentes a esses grupos. A partir do regresso desses salvadorenhos, as pandillas se fortaleceram em toda América Central.

Hoje, os grupos mais fortes em El Salvador são a Mara Salvatrucha e a Mara 18, que se enfrentam constantemente. Elas são formadas por homens jovens pobres e de classe média baixa, que expressam sua rebeldia por meio da devoção total a seus grupos e as suas ações: extorsões, assassinatos por contrato, mutilações e sequestros. Estima-se que, atualmente, apenas em El Salvador, existam mais de 60 mil pandilleros. Isso significa que quase 1% da população é diretamente envolvida com as pandillas.

Para Monterrosa, jovens entre14 e 21 anos tendenciam formar parte de algo, o que é comum no processo de construção de suas identidades. “Para mim, a melhor definição de pandilla é que se trata de uma forma anômala de organização frente à exclusão. É rara, mas responde de alguma forma às necessidades dos jovens que estão excluídos do sistema”.

Pelas ruas de San Salvador, pessoas caminham com cuidado, estão sempre atentas, independentemente de suas classes sociais. Parece que vigiam e que esperam algo todo o tempo. Quem tem dinheiro, já fez de seu bairro condomínio de segurança máxima com direito a um, dois ou mais seguranças armados — recentemente, o país passou por seu mês mais violento, outubro, no qual foi registrado 17,5 assassinatos por dia. E sobretudo, vale ressaltar o trabalho da mídia burguesa e o empenho em reforçar a narrativa do terror e da violência 24 horas por dia.

*La Prensa Gráfica é um dos maiores periódicos de El Salvador e fica exatamente em frente à embaixada dos EUA, que é a segunda maior do mundo. A primeira é no Iraque.

Por toda história, há duas coisas que sempre se repetem e elas são homens e armas. A cultura da violência está diretamente ligada ao imperialismo, à exploraçao, ao patriarcado, à imposição e ao uso da força para isso. Em 2012, El Salvador foi classificado como o país com a maior taxa de feminicídio do mundo. Enquanto a desigualdade de gênero existir, a violência também vai. No entanto, quando se abrem portas para que as comunidades autogestionem suas atividades culturais, resgata-se aquele mesmo censo de comunidade e igualdade que existia entre os povos indígenas antes que suas terras fossem desapropriadas pelos latifundiários para o cultivo do café.

Cultura e resistência

Diferentemente da cultura pré-hispânica que foi resguardada entre as montanhas no México, El Salvador enfrentou dificuldades para proteger seus costumes. Por ser um território de passagem, recebeu influências que vieram tanto do norte quanto do sul do continente. Apesar do “American way of life”estar presente desde a moeda, que é o dólar, até a culinária, é nos povoados e na periferia que as tradições resistem, por meio de pessoas que, apesar de toda a tragédia que viveram, ainda carregam aquilo que sempre lhes deu força para enfrentar o que fosse: memória do que é comunidade.

Em El Salvador, ainda não existe nenhuma lei de arte e cultura como a Lei Cultura Viva sancionada ano passado pela presidenta Dilma Rousseff. Atualmente, discute-se na Assembleia Legislativa a criação desta lei, que seria a primeira do país. “Um dos esforços importantes nessa semana de Congresso é a incidência política no parlamento. Vamos colocar na agenda nacional o tema sobre a aprovação da lei de arte e cultura, que visa resolver todas as demandas históricas da cultura comunitária e também pleitear 1% do orçamento nacional para a cultura ou 0,1% para a cultura comunitária”, declarou Julio Monge, Coordenador Geral do II CVC.

Para Monge, é melhor que um jovem tenha em suas mãos um tambor do que uma arma. “Estamos convencidos de que o aporte para a cultura é necessário, urgente e imperioso. O nosso discurso frente à insegurança e à violência é que precisamos reocupar as ruas, as praças, os parques. Agora mesmo estamos no Teatro Nacional, que se localiza em um lugar muito perigoso, com muitos homícidios. Em contraposição, estamos aqui para reivindicar a vida, a cultura e o conhecimento.”

De todos os esforços do II Congresso Latinoamericano de Cultura Viva Comunitária, creio que o mais valioso seja o empoderamento das comunidades em seus territórios. Este é o momento de disputar os espaços que existem nas vidas jovens com cultura, educação, perspectivas e consciência. E realmente acredito que as coisas vão melhorar por aqui. É o que mais desejo. Pois, se existem duas coisas que salvadorenhos sabem fazer melhor que pupusas é se auto-organizar e lutar até o fim.

FONTES

http://www.elsalvador.com/articulo/sucesos/munguia-payes-hay-mas-pandilleros-que-militares-activos-90672

https://www.youtube.com/watch?v=T2B-R3XNBLU

http://www.tiki-toki.com/timeline/entry/83661/Evolucin-de-las-pandillas-en-El-Salvador-desde-1945#vars!panel=775723!

http://www.salanegra.elfaro.net/es/201208/cronicas/9301/

http://es.insightcrime.org/analisis/surenos-otros-pandilleros

Historia de El Salvador — De como la gente guanaca no sucumbió ante los infames ultrajes de españoles, criollos, gringos y outras plagas

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/09/homicidios-em-el-salvador-atingem-cifra-historica-em-agosto.html

https://rccs.revues.org/4830

América Latina e Mundo

Chilenos enterram a Constituição de Pinochet e começam um inédito (e incerto) processo Constituinte

Carta Magna produzida em 1980 era a base do modelo neoliberal chileno, que destruiu a Saúde, a Educação e a Previdência públicas

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Estátua equestre do general Manuel Baquedano, que liderou expedições contra os indígenas do sul, pintada de vermelho - Bárbara Carvajal (@barvajal)

A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.

Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.

Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes. 

A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.

Nova Constituição: chance de o Chile renascer - @delight_lab_oficial
Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial

A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.  

“Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.

Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.  

O novo ciclo

A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.

O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.

Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.

A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.

Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.

Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.

O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes - Bárbara Carvajal (@barvajal)
O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)

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Chile

Chilenos se preparam para um plebiscito histórico sobre manter ou dar adeus à “Constituição do Pinochet”

Chilenos estão ansiosos para o plebiscito, adiado desde abril por conta da pandemia

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Era uma demanda colocada por alguns setores da sociedade chilena há anos, mas foram os protestos de 2019 os que voltaram exigir a derrubada da Constituição de 1981, imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, no domingo 25 de outubro, mais de 14 milhões de chilenos acudirão às urnas em um plebiscito histórico que decidirá se o país “aceita” (aprueba) ou “rejeita” (rechaza) uma nova Carta Magna. A votação foi pensada como um caminho político para aplacar a crise social que o Chile enfrenta.

Por: Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

Os ânimos estão à flor da pele. Nos muros, nas redes sociais, na mídia praticamente não se fala de outra coisa. Não é para menos, já que o plebiscito, inicialmente marcado para o dia 26 de abril, foi atrasado pelo governo devido à pandemia. Além disso, acontecerá somente uma semana depois do primeiro aniversário do chamado “estallido social”, iniciado em 18 de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais igualitário. Mas a sociedade chilena -como tantas outras na América Latina e no mundo- está profundamente polarizada e, apesar de as pesquisas dizerem que a maioria votará pelo “aceita”, nada está definido.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Por um lado, o “apruebo” reúne intenções diversas, que vão desde exigir uma mudança no modelo neoliberal chileno até entregar mais direitos às mulheres, aos índios e às diversidades sexuais.

Alejandra Saez, uma trabalhadora independente, me disse que vai aprovar porque “se necessita uma mudança imediata, apesar de que o resultado chegue com o tempo, tomar a decisão de transformar o sistema já é um grande avanço”. “Quero que as novas regras validem o bem-estar das pessoas e não os cofres dos outros. Que não nos sintamos atacados pelo sistema”, afirmou.

Já o bioquímico Francisco Pereira me explicou que votará “apruebo” porque considera que é necessária uma “mudança drástica na atual Constituição, já que apesar de que outorga direito a serviços básicos, em nenhum momento garante o acesso a esses serviços, deixando muitos recursos principalmente nas mãos do mundo privado. Além disso, foi escrita para um contexto de desenvolvimento de país determinado muito diferente do atual, e é bastante rígida, o que dificulta que ela seja adaptada às atuais necessidades do Chile”.

Nas campanhas eleitorais, também é possível ver que muitos dos que pedem uma nova Constituição querem reformar as instituições encarregadas da segurança pública, já que, em 2019, pelo menos 30 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e o Chile foi cenário de graves violações aos direitos humanos no marco dos protestos sociais, segundo Human Rights Watch, a ONU, entre outros. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 460 pessoas sofreram lesões oculares durante as manifestações devido ao uso excessivo da força policial. Delas, pelo menos duas ficaram completamente cegas.

Por outro lado, Natalia C. (que pediu não ser identificada) aposta pelo “rechazo” porque considera que “não há necessidade de escrever uma nova Constituição inteira para realizar as reformas que o país precisa”. Nas redes sociais, as pessoas que chamam a votar por essa alternativa também dizem temer que o Chile se transforme em um país “caótico” e/ou “esquerdista”.

Além disso, muitos sinalizam que votar “apruebo” seria dar um aval à destruição de patrimônio que ocorreu no marco das mobilizações sociais. É que o metrô de Santiago, várias igrejas, ruas e estátuas foram parcialmente destruídos e/ou incendiados desde outubro de 2019, mas não há informação detalhada disponível sobre quem foram os responsáveis de cada um desses atos.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Muitos ainda estão indecisos. O microempresário Javier Baltra comentou que achava melhor votar nulo porque “ambas as opções estão cheias de problemas. Aprovar pode ser sinônimo de um Estado maior, e eu acho isso problemático para a economia. E rejeitar é deixar tudo como está até agora e não sei se isso é uma boa ideia”.

Além de escolher entre as opções “apruebo” ou “rechazo” uma nova Constituição, os chilenos devem votar se desejam que a eventual Carta Magna seja escrita por uma Convenção Constitucional formada por 155 constituintes eleitos ou por uma Convenção Mista de 172 membros (metade legisladores e metade cidadãos eleitos).


A LEI ATUAL


Qualquer pessoa que não conheça a história do Chile provavelmente se surpreenderá ao saber que um país como este tenha ainda uma Constituição que foi escrita na época da ditadura militar. “Nossa, mas é um país tão desenvolvido”; “como assim?”; “sério?” foram alguns dos comentários que recebi de amigos brasileiros quando contei sobre o que está acontecendo agora.


A Constituição atual foi aprovada em um questionado plebiscito realizado no dia 11 de setembro de 1980, em plena ditadura do Pinochet, quando milhões de chilenos viviam sob o medo da repressão, sem registros eleitorais e com os partidos políticos dissolvidos.
O texto foi escrito pelo advogado constitucionalista Jaime Guzmán, um dos maiores ideólogos da direita chilena, e que foi assassinado por um comando de ultraesquerda em 1991.

Ele foi escolhido por uma comissão designada pela ditadura. Posteriormente, a redação contou com a revisão e o apoio do Conselho de Estado e a Junta Militar, composta pelos máximos chefes do Exército e o diretor da polícia, que exercia como “poder legislativo”. Guzmán criou uma série de regras muito difíceis de alterar para perpetuar seu modelo econômico e político.

Como ele mesmo disse quando escrevia a Constituição, sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, eles se veriam “obrigados a seguir uma ação não tão distinta ao que alguém como nós gostaria (…) que a margem seja suficientemente reduzida para fazer extremamente difícil o contrário”.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Para realizar reformas à Carta Magna, Guzmán detalhou que é necessário alcançar um quórum de dois terços ou três quintos, segundo o caso, algo que, na prática, tem sido praticamente impossível de conseguir, porque nem o oficialismo nem a oposição conta com essa quantidade de votos.

Essa Constituição também instaurou um modelo econômico, político e social neoliberal, que se adentrou na educação e na saúde privada e um sistema de aposentadoria conhecido como AFP baseado na poupança individual e que no ano passado entregou aposentadorias pelo valor de 110.000 pesos chilenos (uns US$ 140). Esse sistema, hoje sumamente questionado pela população chilena, foi elogiado pelo Ministro de Economia do Brasil, Paulo Guedes, em várias ocasiões.

Se bem que o texto legal não estabeleça especificamente que a saúde, a educação ou o sistema de aposentadoria devam ser privados, na prática, sim, impõe princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nesses setores. Por exemplo: não existe no Chile nenhuma universidade que seja gratuita.

Segundo analistas, a Constituição atual também é hierárquica e desconecta a cidadania do poder político, porque não inclui muitos mecanismos de participação.

Ao longo da sua história, sofreu duas modificações: a primeira, em 1989, ano do fim da ditadura, quando foi derrogado um artigo que declarava “ilícitos” a grupos que realizassem “violência ou uma concepção da sociedade do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundada na luta de classes”. Outra, em 2005, quando depois de um grande acordo político o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu alterar outros aspectos, como que os comandantes em chefe das Forças Armadas passassem a estar subordinados ao poder civil, e a eliminação de senadores designados e vitalícios. Isto permitiu que em 2006 (há 14 anos!) o Senado fosse totalmente conformado por membros de eleição popular.

Agora, se a opção “apruebo” ganhar o plebiscito, o texto não só será modificado: a sociedade poderá dar adeus à chamada “Constituição do Pinochet”. Sem dúvidas, uma decisão histórica.

Veja também: Chileno preso no RIR: desembargador reconhece ilegalidade da prisão

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Bolívia

Veja a tradução da declaração de Evo Morales

Declaração de Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, dada em 18 de outubro, dia da eleição presidencial após o golpe.

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DECLARAÇÃO DE IMPRENSA DO EX-PRESIDENTE EVO MORALES
Buenos Aires, 18 de outubro de 2020

  1. Desde a cidade de Buenos Aires, neste dia histórico, domingo, acompanho nosso povo em seu compromisso com a pátria, com nossa democracia e com o futuro de nossa amada Bolívia, de exercer seu direito ao voto em meio aos acontecimentos em nosso País.
  2. Saúdo o espírito democrático e pacífico com que se desenvolve a votação.
  3. Diante de tantos rumores sobre o que vou fazer, venho declarar que a prioridade é exclusivamente a recuperação da democracia.
  4. Quero pedir a vocês que não caiam em nenhum tipo de provocação. A grande lição que nunca devemos esquecer é que violência só gera violência e que com ela todos perdemos.
  5. Por este motivo, conclamo as Forças Armadas e a Polícia a cumprirem fielmente o seu importante papel constitucional.
  6. Diante da decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de suspender o sistema DIREPRE (Divulgação de Resultados Preliminares) para ir diretamente para a apuração oficial, informo que, felizmente, o MAS possui seu próprio sistema de controle eleitoral e que nossos delegados em cada mesa irão monitorar e registrar cada ato eleitoral.
  7. O povo também nos acompanhará nesta tarefa de compromisso com a democracia, como o fez tantas vezes, situação pela qual somos gratos.
  8. É muito importante que todas e todos os bolivianos e partidos políticos esperemos com calma para que cada um dos votos, tanto das cidades como das zonas rurais, seja levado em conta e que o resultado das eleições seja respeitado por todos.
  9. Neste domingo, no campo, nas cidades, no altiplano, nos vales, nas planícies, na Amazônia e no Chaco; em cada canto de nossa amada Bolívia e de diversos países estrangeiros, cada família e cada pessoa participará com alegria e tranquilidade na recuperação da democracia.
  10. É no futuro que todos os bolivianos, inclusive eu, nos dedicaremos à tarefa principal de consolidar a democracia, a paz e a reconstrução econômica na Bolívia.
    Viva a Bolívia!
    Evo Morales

Tradução: Ricardo Gozzi /Jornalistas Livres

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