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Comportamento

Eu não tenho nenhum afeto pelo colégio onde estudei

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por Maurício Carvalho

Eu não tenho nenhum afeto pelo colégio onde estudei toda a infância e adolescência. Quando vejo uma matéria dessas me vem à cabeça lembranças muito nítidas do que foi pra mim ser um aluno dali; como da vez em que a dona da escola foi de sala em sala do terceiro ano, com os funcionários da sala do mimeógrafo – aos prantos, para uma sessão de humilhação pública porque um aluno havia roubado os originais de uma prova e distribuído em sala. Eram 06 salas a visitar. Lembro claramente dela dizer que seriam demitidos; ou da vez em que 02 colegas de classe discutiram aos gritos pra ver quem tinha mais dinheiro na carteira, ostentando notas e sobrenomes.

Ah, os sobrenomes, estavam todos lá. Foi no Santa Maria que aprendi o valor de um sobrenome e o significado de ser “de família”, assim como o valor dado a coisas que (logo aprendi) não tinham valor – como por exemplo a colega de classe que era zoada em sala por causa do “cabelo de empregada”. A tal colega, única negra da sala, era filha de funcionário público, naturalmente retraída, forçadamente excluída. Não a via em nenhuma das festinhas as quais eu também não era convidado.

Ser filho de funcionário público, na escala de valores que aprendi ali, era pouco.
Dos colegas de sala havia o filho do dono do hospital, o filho do advogado tal, o filho do deputado, a fllha do governador, a do médico de renome, a filha do dono da loja do shopping, o filho do dono do banco (esse vinha num carro com seguranças), e aí vinham os outros filhos, no meu caso, o filho do bancário, que logo aprendi não era lá grande coisa.

Talvez por isso eu enchia meu pai perguntando o que ele fazia exatamente no Banco do Brasil, já que ser bancário significava ser funcionário de alguém.

Pelo menos eu era mais poupado do que o filho de um professor lá mesmo do colégio

— Vc só tá aqui porque seu pai ensina aqui.
.
Negros quase não se via, muito raramente – exceção às moças e rapazes – todos da igreja, que ficavam dentro dos banheiros a fiscalizar o que os alunos faziam ali dentro. Ah, as moças, maioria do corpo de funcionários e que circulavam por todo o colégio, vestiam um uniforme azul com avental branco e touca branca, e eram chamadas de babás – ainda que estivessem trabalhando para os adolescentes, e estes, claro, tratavam-nas como alguém da família, como a empregada de casa, embutido aí toda uma relação assimétrica (e alguma ironia).

Por se tratar de um colégio católico, não faltava gente da Igreja, como o padre, que, toda vez que me via, segurava minha mão e ficava a roçar em mim, tudo no santo silêncio e na mais santa das aparências. Eu lembro até hoje dele olhando fixamente pra mim enquanto me apertava. Eu aprendi rapidinho a evita-lo, só não conseguia evitar cantar o hino nacional e todos os cânticos após o recreio – religiosamente.

Quem não pôde evitar a fúria cristã eram os professores de história, como um que tinha uma barba longa e foi tachado de comunista pelos alunos logo no semestre em que entrou; não durou mais que um ano. Um de matemática, ao tempo em que se cochichou que ele era gay, logo, logo, foi substituído.

Mas quem gostava de aparecer mesmo eram os políticos candidatos. Época de eleição, lembro bem, recebíamos visitas de Roberto Magalhães, Ricardo Fiúza (quem lembra?), Marco Maciel, Joaquim Francisco e outros que tão bem representavam o conceito de família. Ainda que a maioria dos estudantes não votasse, os candidatos estavam todos lá, na hora do recreio, em meio a euforia dos alunos. Euforia que contagiava também as coordenadoras e diretoras da escola – todas de amarelo, camiseta vermelha era terminantemente proibida -, recado dado com clareza, em plena eleição de 1989, inclusive aos alunos.

Dentro da escola era tudo vigiado. Não se podia jamais entrar num corredor ou mesmo subir num andar que não fosse o da sua sala. Para tudo havia explicação, era aí que eu me divertia, tentando enganar os funcionários, fumando escondido no laboratório de química ou vendo um coleguinha mostrando o pau no laboratório de biologia. Era o momento de libertação máxima.

Estudantes do Colégio Santa Maria, no Recife, fazem saudação nazista em sala de aula

Libertação que não se dava nem mesmo após a saída da escola. O velhinho bonachão de olhos verdes que ficava circulando pelo quarteirão era um ex-delegado da época do regime militar, famoso no Recife por torturar presos nos anos 60 e 70 – matérias devidamente registradas na imprensa local, que esmiuçou o passado obscuro do inspetor de segurança da escola, ávido em achar “maconheiros”, e que se orgulhava de arrebentar gente em porões; foi quando entendi esse tal de amor à pátria.

E falando em pátria, num país que recorre ao sentimento nacionalista justamente quando quer ratificar que somos uma nação que segrega, que oprime e que violenta, juntar isso com família e religião é o caldo que engrossa os tempos em que vivemos, onde alunos da ‘escola mais tradicional da cidade’, filhos de sobrenomes, estão em sala de aula fazendo saudações nazistas.

Pensando bem, não há nada de novo nisso, é daí que a palavra tradição faz todo sentido. Nunca foi diferente.

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2 Comments

2 Comments

  1. Virginia maria Neves Baptista

    07/03/20 at 15:18

    Que texto. Fantástico, Maurício Castro. Obrigada pela excelente leitura. Me fez lembrar de um fato que me ocorreu aos 14 anos ( hoje tenho 61) quando tive um “paquera” e meu pai descobriu. Ele logo quis saber de que família era. Eu disse que não sabia e na minha ingenuidade disse: “mas ele parece ter posses.” Meu pai logo me deu um lição dizendo que isso era o que de menos importava.Nas suas palavras” dinheiro agente faz com estudo e trabalho, ele tem que ser um homem bom pra vc, honesto e íntegro”. Nunca mais esqueci essa lição.Também estudei em colégio tradicional e católico. Existia preconceito, sim. E tantas coisas que eu discordava. Porém, e felizmente, nunca presenciei nada semelhante ao que vc relata.Também pertenço a família tradicional de Pernambuco, filha de advogado e professor da Faculdade de Direito do Recife. Jamais nos foi permitido ostentar absolutamente nada, muito menos tratar com desdém um funcionário Nossas amizades eram pautadas na integridade e não na classe a que pertenciam. Fico feliz por ter compreendido desde cedo que há valores e Valores, mesmo que pertencente a essa fatia de filhos das classes privilegiadas.

  2. Júnior

    08/03/20 at 11:38

    A ‘escola mais tradicional da cidade’ é apenas um reflexo da nossa elite, ou quem se acha como tal, um bando de donos de engenhos falidos que ainda se comportam como senhores feudais. Já tive discussões bem desagradáveis quando dizia que não gostava de Pernambuco, apesar de ter aqui nascido, pois na pobreza do seu bairrismo, acham que tenho obrigações de me apegar e ser leal a terra; onde esta casta vomita superioridade e arrogância, postando-se acima da patuleia, da plebe, com seus sobrenomes decadentes, num lugar onde tudo sempre continua do mesmo jeito de sempre , onde quem manda é determinado pelo DNA, não pela competência e trabalho.

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Comportamento

Quilimérios, um povo isolado entre belas rochas de Minas

Vídeo revela os moradores remanescentes que habitam há quase dois séculos uma área próxima à divida com a Bahia

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Quem percorre o Vale do Jequitinhonha no extremo Nordeste de Minas, quase divisa com o sul da Bahia, vê ao longe um conjunto de belas pedras de granito como se tivessem sido despencadas numa chuva de meteoritos. É difícil passar por ali e conter a vontade de ir ver de perto, afinal, a pacata e hospitaleira cidade de Rubim fica logo ali. Pois bem, foi neste belo lugar que um antigo quilombo volante, certamente vindo do interior da Bahia, resolveu se fixar de vez, esquecendo-se do tempo e da chamada civilização, vivendo ali esquecido, isolado. São os Quilimérios, um nome de origem desconhecida.

Uma equipe de cineastas e jornalistas de Belo Horizonte esteve lá e fez o interessante curta-metragem chamado Quilimérios, um documentário de 24 minutos que trata da história deste povo que vive isolado desde o século XIX, na parte mineira do Vale do Rio Jequitinhonha, que logo depois deságua no litoral baiano. Escondidos entre altas pedras de lugares quase inacessíveis, os Quilimérios ainda são desconhecidos por muita gente que vive até mesmo na própria região.

O curta Quilimérios conta um pouco da história deste povo, mostra cenários deslumbrantes e lugares quase intocados do Baixo Jequitinhonha, filmados praticamente com celular e drone, “o que o torna um produto experimental e inovador”, afirma Emerson Penha. O diretor do curta revela que ir a esta comunidade e fazer o documentário foi muito significativo: “É impressionante, nos dias de hoje, com tanta tecnologia, um povo permanecer isolado. Por outro lado, é importante poder mostrar que o mundo tem lugar para todos, independentemente do seu jeito de ser e viver. Todos têm direito a viver como desejam e isso precisa ser respeitado”, observa.

Na região do Baixo Jequitinhonha, divisa entre Minas Gerais e Bahia, as pedras gigantes marcam o caminho do rio. A muralha natural isola tudo, até mesmo a passagem do tempo. Nesse cenário, os Quilimérios vivem como no século XIX. Para eles, o isolamento foi a única opção e até hoje o mistério de sua existência permanece. A explicação sociológica mais razoável é que seriam remanescentes dos quilombos volantes, grupos nômades formados por afrodescendentes que escapavam do cativeiro, indígenas expulsos de suas terras e mesmo brancos que fugiam das cidades por diversas razões.

A história que se conta entre várias gerações na região de Rubim, cidade mais próxima e de pouco mais de 10 mil habitantes, é que esse grupo de pessoas foi formado a partir da fuga de um ex-escravo, Juca Preto, contratado por um fazendeiro da vizinha cidade de Pedra Azul para matar alguém importante. Após cometer o crime, Juca fugiu para a região onde seus descendentes vivem até hoje e que permanece quase inacessível. Ali só se chega a pé ou a cavalo. Na fuga, Juca levou uma índia, com quem teria dado início à família dos Quilimérios. São pessoas muito reservadas, que cultivam costumes antigos e têm hábitos comportamentais como o casamento endogâmico. Atualmente restam apenas alguns quilimérios remanescentes, já que as novas gerações vêm se transferindo para Rubim.

Quilimérios é um filme de Emerson Penha, com música de Túlio Mourão, fotografia de Fábio Damasceno, produção de Zu Moreira, edição de Rafael Diniz (Fiel) e argumento de Tião Soares.

Confira o vídeo acima indo ao Youtube.

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Chacina

Cuiabá nas ruas contra do racismo, o fascismo e o genocídio

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Da: MediaQuatro especial para os Jornalistas Livres

Desde de 2019, com as manifestações contra os cortes na educação e a deforma da previdência, Cuiabá não juntava tanta gente nas ruas. E talvez nunca tenha havido tamanho contingente policial, incluindo helicóptero, para o improvável caso de “vandalismo”. Mas era mesmo de se esperar. Afinal, o racismo estrutural brasileiro em uma das capitais mais conservadoras do país exige que se trate os pretos e pretas sempre como potenciais criminosos. BASTA! O país não pode mais conviver e não conseguirá sequer viver como nação integral enquanto houver preconceitos que se refletem em práticas cotidianas e políticas públicas que oprimem e excluem a maior parte da população.

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

Chegamos a um ponto no Brasil que não é mais suficiente não ser racista. É preciso lutar contra o racismo, nas ruas, nas redes, nos campos e nas casas. E a luta antirracista é central na derrubada do governo Bolsonaro e suas políticas genocidas na economia, na segurança pública e na saúde. Foi por isso que, apesar da necessidade de se intensificar o isolamento social, fomos à Praça Alencastro e marchamos pelas avenidas Getúlio Vargas, Marechal Deodoro, Isaac Póvoas e BR 364 para retornarmos à Praça da República sem qualquer incidente.

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

Assim como em outras cidades e estados por todo o Brasil, em Cuiabá e Mato Grosso os negros e negras são maioria e são exatamente os corpos pretos os mais encarcerados, os pior pagos, os que vivem nos lugares mais distantes, os que mais precisam trabalhar fora de casa durante a pandemia (e muitas vezes sem sequer os equipamentos de proteção adequados) e os que mais são atingidos pela Covid-19. Isso não é uma coincidência. É resultado de quase 400 anos de escravidão formal, que em Mato Grosso também vitimou indígenas em larga escala, e de uma abolição inconclusa que indenizou os “proprietários” de pessoas mas nunca pagou a dívida histórica com quem sente na pele seus efeitos até hoje.

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

É fato que o assassinato do estadunidense negro George Floyd foi o estopim dos protestos antirracistas em todo mundo e também no Brasil, onde houve atos em pelo menos 20 cidades, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Recife. Mas por aqui, as mortes do menino Miguel, do adolescente João Pedro e dos jovens em Paraisópolis, só pra citar alguns casos mais representativos nos últimos seis meses, demonstram cotidianamente o que significa ser alvo do preconceito, da polícia e das políticas.

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

Desse modo, derrubar o governo o quanto antes o governo do fascista que ocupa a presidência é indispensável para conseguirmos combater a epidemia de forma minimamente eficiente. E tirar apenas o presidente não é suficiente, porque seu vice e ministério são igualmente racistas, como está provado em entrevistas antes mesmo das eleições, em pronunciamentos em eventos e na fatídica reunião ministerial.

Texto e fotos: www.mediaquatro.com

Enquanto não derrubarmos as políticas estúpidas da “guerra às drogas”, do encarceramento em massa, da concentração de renda, do agronegócio acima da agricultura familiar, não há presente para o país. E enquanto não investirmos em políticas públicas de igualdade racial e de gênero, de proteção às minorias e à diversidade, e de promoção dos direitos humanos a TODOS e TODAS, incluindo a punição de policiais assassinos, milicianos e racistas, não haverá futuro também.

 

 

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#EleNão

Os camisas negras de Bolsonaro

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Mais de 1 milhão de crianças, 2 milhões de mulheres e 3 milhões de homens foram submetidos ao assassinato e à tortura de forma programada pelos nazistas com o objetivo de exterminar judeus e outras minorias. Nos primórdios da Itália fascista, os camisas negras – milícias paramilitares de Mussolini – espancavam grevistas, intelectuais, integrantes das ligas camponesas, homossexuais, judeus. Quando a ditadura fascista se estabeleceu, dez anos antes da nazista, Mussolini impôs seu partido como único, instaurou a censura e criou um tribunal para julgar crimes de segurança nacional; sua polícia secreta torturou e matou milhares de pessoas. Em 1938, Mussolini deportou 7 mil judeus para os campos de concentração nazista. Sua aliança com Hitler na 2ª Guerra matou mais de 400 mil italianos.

Perdoem-me relembrar fatos tão conhecidos, ao alcance de qualquer estudante, mas parece necessário falar do óbvio quando ser antifascista se tornou sinônimo de terrorista para Jair Bolsonaro. Os direitos universais à vida, à liberdade, à democracia, à integridade física, à livre expressão, conceitos antifascistas por definição, pareciam consenso entre nós, mas isso se rompeu com a eleição de Bolsonaro. O desprezo por esses valores agora se explicita em manifestações, abraçadas pelo presidente, que vão de faixas pelo AI-5 – o nosso ato fascista – ao cortejo funesto das tochas e seus símbolos totalitários, aqueles que aprendemos com a história a repudiar. Jornalistas espancados pelos atuais “camisas negras” estão entre as cenas dessa trajetória.

A patética lista que circulou depois que o deputado estadual Douglas Garcia(PSL-SP) pediu que seus seguidores no Twitter denunciassem antifascistas mostra que o risco é mais do que simbólico. Depois do selo para proteger racistas criado pela Fundação Palmares, e das barbaridades ditas pelo seu presidente em um momento em que o mundo se manifesta contra o racismo, e que lhe valeram uma investigação da PGR, essa talvez seja a maior inversão de valores promovida pelos bolsonaristas até aqui.

A ameaça contida na fala presidencial e na iniciativa do deputado, que supera a lista macartista pois não persegue apenas os comunistas, tem o objetivo óbvio de assustar os manifestantes contra o governo e de açular as milícias contra supostos militantes antifas, dos quais foram divulgados nome, foto, endereço e local de trabalho.

É a junção dos “camisas negras” com a Polícia Militar, que já se mostrou favorável aos bolsonaristas contra os manifestantes pela democracia no domingo passado em São Paulo e no Rio de Janeiro. E que vem praticando o genocídio contra negros impunemente no país desde sua criação, na ditadura militar, muitas vezes com a cumplicidade da Justiça, igualmente racista.

Como disse Mirtes Renata, a mãe de Miguel, o menino negro de 5 anos que foi abandonado no elevador pela patroa branca de sua mãe, mulher de um prefeito, liberada depois de pagar fiança de R$ 20 mil reais, “se fosse eu, a essa hora já estava lá no Bom Pastor [Colônia penal feminina em Pernambuco] apanhando das presas por ter sido irresponsável com uma criança”. Irresponsável. Note a generosidade de Mirtes com quem facilitou a queda de seu filho do 9º andar.

Neste próximo domingo, os antifas vão pras ruas. Espero não ouvir à noite, na TV, que a culpa da violência, que está prestes a acontecer novamente, é dos que resistem como podem ao autoritarismo violento. Quem quer armar seus militantes, e politizar forças de segurança pública, está no Palácio do Planalto. É ele quem precisa desembarcar. De preferência de uma forma mais pacífica do que planejam os fascistas para mantê-lo no poder.

Por: Marina Amaral, codiretora da Agência Pública

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