A pandemia da Covid-19 traz ao mundo uma situação jamais vivida pela atual geração de habitantes do nosso redondo (sempre bom lembrar) planeta. Do ponto de vista histórico, chama atenção o paralelo com a chamada “gripe espanhola” do início do século XX que, apesar do nome, não surgiu na Espanha. Um olhar atual sobre aquela epidemia traz, em nossos dias, alarmantes preocupações. Já sob a ótica da psicologia, muito há que se estudar e se falar sobre os efeitos do confinamento, aliado ao medo e às preocupações, especialmente dos mais vulneráveis e de seus entes mais próximos. Lamentavelmente, o que têm orientado os discursos, em especial no Brasil e nos países que mais sofreram e estão sofrendo com a pandemia, é um ponto de vista míope, caolho, retrógrado e extremamente enviesado sobre
Economia.
É óbvio que é importante olhar para a economia, não seria eu, um economista, que diria o contrário. No entanto, mais do que nunca é preciso entender a complexidade do mundo e ser capaz de enxergar a economia em meio a outras também importantes áreas do conhecimento, como a história, a psicologia, a filosofia, a sociologia, a medicina entre outras. Além disso, é desalentador observar a visão e o uso que se faz da área de estudo que escolhi ao me inscrever no vestibular no já longínquo início dos anos 90.
Preocupa-me ver reflexões sobre o mundo que encontraremos após a pandemia que focam em aspectos relacionados estritamente à questão econômica e seus desdobramentos, apresentando problemas seculares como se fossem consequências futuras da Covid-19, apesar de tais problemas estarem sempre presentes nos discursos, embora muitas vezes sejam ignorados (quando não provocados) na prática. Daria pra entender, embora eu não seja especialista em psicologia, o subconsciente agindo em pessoas preocupadas com a preservação de seus privilégios tentando justificá-los com um discurso mais palatável de preocupação com os menos favorecidos, mas dói ver esses discursos serem propagados por pessoas já massacradas pelo secular sistema de privilégios de um dos países mais desiguais do planeta.
Vale lembrar que bem antes da Covid-19, já tinha muita gente falando em menos direitos em troca de um trabalho, sem perceber o conteúdo abertamente escravocrata desse
discurso. Como era de se esperar, os direitos se foram e os empregos, que continuam no
centro das “preocupações”, justificando todas as ações do “governo”, não vieram. Tampouco
vieram depois das “salvadoras” reformas trabalhista e da previdência, mas o nosso eterno
“agora vai”, na escalada propagandista já encardida do “sou brasileiro e não desisto nunca”
induz as pessoas a acreditarem que, finalmente, o que faltava da nossa “cota de sacrifício” pra
“salvar a economia” é colocar nossas vidas e as das pessoas próximas em risco.
Se ninguém te contou uma novidade, eu agora vou contar: o estrago na economia está dado, e em boa parte do mundo, independentemente do quanto você arrisque a sua vida. Resta saber três coisas: 1) Quanto tempo levaremos para podermos começar a planejar nossa retomada, inclusive, mas não somente, econômica (necessidade que já existia antes da epidemia, é bom lembrar)?; 2) Sobre quantos cadáveres buscaremos essa retomada?; e 3) Qual a possibilidade de você e de pessoas próximas estarem entre as vítimas?
Inegavelmente a resposta a essas perguntas será melhor à medida que você, as pessoas próximas a você, e a população de onde você vive adotarem os cuidados necessários, respeitarem a ciência e não acreditarem em “mitos”. Se
você, em um passado recente, foi infectado pela crença em “mamadeira de piroca” é a chance de se redimir ou de se contaminar de vez, dessa vez literalmente, e com possíveis consequências às pessoas próximas.
É preciso ressaltar os chamados “serviços essenciais”. É claro que tem pessoas que não podem deixar de trabalhar, seja pela necessidade do serviço, seja pela necessidade de sobrevivência, e essas merecem todo nosso apoio, cuidado, carinho, atenção, admiração e respeito. É também necessário lembrar que, infelizmente, pessoas já vulneráveis social e economicamente, eventualmente estão sendo obrigadas, coagidas, ameaçadas e, por esse motivo, estão, apesar
do medo, indo trabalhar.
Se aprendêssemos a, em vez de colocar o dedo na cara dessas
pessoas, repudiarmos e responsabilizarmos os criminosos que atentam contra a vida de seus
“colaboradores” e cobrássemos principalmente de quem tem OBRIGAÇÃO de apoiar
trabalhadores e pequenos empresários, mas preferem proteger os sempre polpudos lucros
dos bancos sem exigir nenhuma contrapartida, certamente já teríamos um mundo pós-
pandemia mais evoluído e civilizado. Entretanto a permissividade com pessoas que agridem
enfermeiras, que protestam por condições mínimas de trabalho, de quem toda a sociedade
depende nesse momento não me deixa ser otimista. A realidade do Brasil 2020, infelizmente, é
a de um país que normaliza manifestação barulhenta em frente a hospitais, em meio a uma
pandemia, sem ação repressiva da polícia, desde que feita por “cidadãos de bem”.
Mas, e se pudéssemos pedir uma mudança simples e definitiva para o período pós-pandemia, o que pediríamos? De minha parte, acredito que deveríamos tirar o “E daí?” do vocabulário. O “E daí?”, como expressão simples com requintes de um sentir-se superior, é uma expressão reveladora de um autoritarismo e de uma prepotência típicos daqueles que são incapazes de ter empatia por quem quer que seja, resumindo o descomunal descaso e a indiferença cotidiana que nos trouxe até aqui. Certamente não fossem os estrondosos “E daí?” que se acumulam historicamente no crescente individualismo sistêmico replicados nas vozes de ministros que “odeiam os povos indígenas”, que querem “passar a boiada” enquanto tratamos de sobreviver, que querem privatizar a “porra” do Banco do Brasil e acham que não valem os esforços de salvar as pequenas empresas, a tal Covid-19 não seria tão grave quanto ora se apresenta.
Certamente ela não seria páreo para um mundo que tivesse aprendido com a história e tirado as lições necessárias da gripe espanhola, da crise de 29, das duas guerras mundiais, das ditaduras e das experiências nazifascistas. A história só se repete como tragédia ou como farsa? Talvez, mas certamente não se repete sem cúmplices, e essa cumplicidade se alimenta do mau-caratismo, da ignorância e do individualismo expressos de maneira resumida e tosca, no cadáver linguístico insepulto mais malcheiroso da história: o “E daí?”. Que ele seja a principal vítima da COVID-19.
Beijos no coração de todos e todas.
Fiquem em casa.