Atraso em laudo antropológico ameaça sobrevivência dos remanescentes do Quilombo Vidal Martins, que chegaram a ser registrados como brancos e com sobrenome diferente para não ter acesso à terra herdada dos escravos. Localizado no Norte da Ilha de Santa Catarina, no acesso às praias, o Quilombo Vidal Martins vive neste final de semana um momento dramático da sua história à espera que um documento público devolva-lhe o direito à vida em comunidade. O reconhecimento definitivo do território se arrasta desde 2013, quando a Fundação Cultural Palmares expediu a certidão de autorreconhecimento quilombola. Esse libelo para o martírio de 28 famílias (cerca de cem pessoas) descendentes de escravos que resistem a uma situação de marginalidade social, fora da área de demarcação, depende, contudo, da apresentação de estudo histórico, socioeconômico, cultural e ambiental da área. Depois de um tortuoso processo burocrático, a comunidade espera que o laudo antropológico seja entregue na segunda-feira (20/8), como prometido, para que possa dar continuidade ao processo de regularização do seu território e ocupá-lo de fato.
Joana Zanotto para os Jornalistas Livres
Fotos: Jekupe Mawé
Edição: Raquel Wandelli
Uma mulher está à frente da luta pela demarcação do quilombo que leva o nome de seus antepassados. Helena Vidal Martins, presidente da Associação dos Remanescentes dos Quilombolas de Vidal Martins, perdeu o pai de sua filha em 2012, assassinado num conflito por terra. Decidiu então ir atrás de sua história para garantir território aos descendentes da comunidade. Foi então que a líder descobriu a grande fraude contra seu povo: a certidão no cartório dizia que o seu bisavô era branco. O avô havia sido registrado como Martins. Helena achou estranho. Ninguém dos seus era branco nem levava o nome de Martins. O avô relatava que os parentes haviam chegado à ilha confinados como escravos nos porões de um navio atracado na praia dos Ingleses. “Fomos atrás. Achamos o livro de escravos no Rio Vermelho. Constava os nomes de Vidal Martins, meu avô, e da sua mãe Joana, também escrava.” Com as informações e memórias dos antigos, foi possível montar a árvore da família e traçar o vínculo com a terra.
A certidão de autorreconhecimento quilombola, pré-requisito do processo, foi expedida em 2013 pela Fundação Cultural Palmares. Em 30 de março de 2015, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e a Universidade Federal de Santa Catarina firmaram acordo de cooperação técnica para elaboração do laudo que deveria ter sido concluído no prazo de um ano. No entanto, o relatório antropológico necessário para completar a primeira parte do processo demarcatório foi entregue pela UFSC e recusado pelo Incra em 2016, que o considerou incompleto e levantou 27 questionamentos. Após a recusa da primeira versão dos estudos, a universidade atrasa a apresentação dos documentos prometidos para dezembro de 2017.
No decorrer dos últimos anos, a comunidade se reuniu inúmeras vezes com o pessoal do Incra e universidade, com mediação do Ministério Público Federal. A Defensoria Pública da União entrou com pedido para realização de uma audiência pré-processual, após contato feito pela comunidade, em 25 de abril. A UFSC alegou que a comunidade Vidal Martins ainda deveria entregar alguns documentos importantes que faltavam para a constituição do laudo Os documentos deveriam ser referendados em assembleia da comunidade e por assinatura de todos os membros.
Um novo prazo de 90 dias foi determinado. “Passaram os 90 dias, o prazo foi prorrogado em mais 15. Esperamos que entreguem o laudo na segunda-feira, dia 20/8. porque a demora impede a comunidade de sair do aperto que vive hoje num território de resistência com casas muito pequenas”, como explica Helena.
Há anos na batalha pelo reconhecimento do território, Helena reclama da demora para a finalização do laudo. O primeiro relatório entregue foi devolvido pelo Incra que contestou a ausência de indicação do território. “A gente deu tudo. A comunidade que mais deu documentos foi a nossa. Fizemos o mapa três vezes, meu tio com a memória histórica dele tendo que caminhar de um lado ao outro, velho e com a perna machucada. Desumano. As pessoas passaram a desacreditar que conseguiríamos.” Enquanto isso, ameaçados pela especulação imobiliária, hostilizados pela população branca e vítimas de violência policial, os descendentes quilombolas foram se favelizando em torno do território que lhes pertence por direito.
ESCRAVOS PREFERIRAM POUPAR DESCENDENTES
DAS SUAS HISTÓRIAS DE SOFRIMENTO
Jucélia Beatriz Vidal se recorda das dificuldades de infância, quando morava num casebre de barro e atravessava os caminhos tomados d’água, tudo a pé. Não que a vida tenha se tornado fácil. Aos 60 anos, mãe de duas filhas, Helena, de 36 e Shirlen, de 38, vive com os parentes em uma casa de 200 metros quadrados fora do perímetro apontado oficialmente como área quilombola na capital de Santa Catarina, famosa pela colonização europeia. Ela e sua família estão entre as 28 que aguardam o reconhecimento do quilombo remanescente no Parque Estadual do Rio Vermelho. “Nós mesmo nos reconhecemos. A gente sabe da nossa história. Ninguém vai tirar da nossa boca. Mas o estado tem que reconhecer nós”, cobra Jucélia.
– A gente está na terra onde nossos antepassados estão enterrados. Nós quando éramos pequenos sofríamos muito, muito mesmo. Por isso não sei muito da lei, sei ler e escrever pouco. Mas meu pai sempre falava para nós: “Isto aqui tudo é de vocês. Nossos antepassados eram escravos que vieram no navio negreiro.” Desde que eu era pequenininha ele contava. Mas eu falo com muita tristeza… Alegria e tristeza! Porque eles apanhavam muito. Ali, antes de chegar na entrada do Rio Vermelho [aponta na direção], tem o nome de Mocotó porque eles matavam o gado. Os senhores comiam do bom e davam o mocotó pros escravos comerem.
Aos 65 anos, Odílio Izidro Vidal, o tio de Helena, é a pessoa mais velha da comunidade. Cresceu vendo seu pai trabalhar na roça no cultivo de arroz, feijão, mandioca, produzindo farinha, trocando pescado por carne seca e açúcar na Lagoa da Conceição. Quando o pai ia ao centro saía às 5 da manhã e retornava meia-noite para casa, o trajeto feito a pé pela Barra da Lagoa. “A gente não tinha dinheiro, mas tinha fartura”. Por dia de pesca chegava a pegar de 30 a 40 quilos de camarão.
– As únicas pessoas que moravam aqui éramos nós, meu pai, meu tio e tia. No tempo do golpe militar, enganaram meu pai. Falaram que ele poderia continuar usando a área. Até que tiraram a gente e ele comprou aquele pedacinho de terra pequeno com o dinheiro do trabalho. Quando eu fiquei maior, trabalhei na área. Ajudei a abrir a estrada para a Barra da Lagoa. Mas fomos impedidos de continuar entrando no terreno onde hoje está o Parque do Rio Vermelho. Agora podemos entrar aqui por causa do quilombo. Íamos brigar com quem? Com o governo? Meu pai morreu faz uns 30 anos e nem sabia dessa lei dos quilombolas. Nem eu não sabia. Fui saber agora, faz uns cinco anos mais ou menos. A Helena [sobrinha] foi atrás dos documentos da nossa história. Do que eu vivi em diante sei tudo.
O procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos é regulamentado pelo Decreto nº 4.887, de 2003, assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da SIlva. Em 2004, passou a vigorar no Brasil a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. O Brasil, juntamente com mais 16 países, ratificou a convenção dando a ela força de lei. A Convenção assegura às comunidades quilombolas o direito à propriedade de suas terras e estabelece a necessidade de consulta sobre todas as medidas suscetíveis de afetá-las.
Comunidade Quilombola Vidal Martins
O Quilombo Vidal Martins, onde habitam 28 famílias descendentes de escravos, localiza-se no bairro Rio Vermelho, em Florianópolis. Um dos mais antigos da ilha, completou 180 anos em 2011.
Escavações arqueológicas realizadas pelo padre João Alfredo Rohr (1908-1983) apontam a existência de populações dos índios Carijós no local, os resultados das pesquisas encontram-se no Museu do Homem do Sambaqui e no Museu de Antropologia da UFSC.
Sobre o início da ocupação portuguesa sabe-se muito pouco, mas existem indícios de já haver algum povoamento no início do século XVIII, e da construção de uma capela em 1750. Com segurança, o povoamento e a história do Rio Vermelho começaram apenas na segunda metade do século XVIII, quando os açorianos chegaram a partir de 1748. A ocupação das terras motivou a construção de uma segunda igreja, em 1810. Pelo aumento rápido da população, em 1831, por decreto da Regência, foram criados o distrito e a paróquia de São João Baptista do Rio Vermelho.
Alguns dos primeiros moradores do distrito foram os senhores de escravo, seus respectivos escravos e a população proveniente das ilhas dos Açores e da Madeira. As casas dos senhores de escravos eram em sua maioria de pedra, assim como as senzalas. Já as casas dos escravos alforriados eram de taipa, ou pau-a-pique e barro, e se localizavam na parte sul do povoado, mais distante do centro.
Os meios de transporte antigos eram a pé, de canoa e a cavalo. Para transporte de carga usava-se a carroça e o carro de boi. No Rio Vermelho localizava-se a maior área da ilha cultivada com mandioca, e era onde ficava também, a maior concentração de engenhos, que antigamente eram manuais e mais tarde foram substituídos por engenhos movidos à força dos bois.
O bairro do Rio Vermelho hoje possui cerca de 15.000 habitantes, segundo o IBGE (2010).