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Quem é que vai pagar por isso?

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Por: Vinicius Souza *

A crise dos suportes tradicionais do jornalismo, especialmente o papel, leva à questão de como sustentar financeiramente as iniciativas jornalísticas digitais. O presente artigo pretende mostrar como alguns veículos que migraram de suporte e outros desenvolvidos diretamente na Web encontram, ou não, os recursos necessários para suas atividades. Paywall, crowdfunding, doações, assinaturas e diversos tipos de publicidade estão entre as alternativas.

Uma das primeiras reuniões de formação dos Jornalistas Livres

Poucas áreas tiveram seus modelos de negócio tão impactados pelas tecnológicas digitais quanto o Jornalismo. Apesar da liberdade de “procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras” ter sido definido como um direito básico no artigo 19º da Declaração Universal de Direitos Humanos[1] das Nações Unidas há quase 70 anos, poucas eram as pessoas ou grupos com acesso ou posse dos meios de produção da indústria das notícias. Ainda hoje não são muitos os que, apesar da queda nos custos de manutenção de sites, blogs e portais na internet, conseguem manter equipes de reportagem, apuração de notícias, análises econômicas e políticas, design de infográficos, captura e edição de imagens e tantas outras atividades ligadas ao jornalismo. Esse artigo procura dar um olhar sobre os principais modelos de negócio, com ou sem sucesso, que estão sendo aplicados nas iniciativas jornalísticas na internet atualmente.

 

A expressão “modelo de negócios” passou a ser mais usada a partir da explosão da chamada “bolha de internet”, na virada do milênio, quando ficou claro que nem toda ideia colocada na Rede seria facilmente vendida para grandes investidores por valores milionários. Há diversas definições para termo (França, 2016: s/n) mas para esse artigo vamos usar a mais simples delas: como o veículo de comunicação consegue os meios (incluindo investimentos em dinheiro) para manter suas atividades. Da tradicional venda de espaços para publicidade às “vaquinhas” virtuais, são várias as maneiras de se monetizar a atividade jornalística na internet. Mas há, ainda, outras formas não ou menos financeiras. É o que veremos a seguir

 

Papel e digital

 

Durante sua primeira fase, o jornalismo era uma atividade restrita aos políticos e partidos que tinham dinheiro para publicar suas ideias, como lembra Marcondes Filho (2009: 19-22), no que ele classifica como “primeiro jornalismo” , entre 1789 e a metade do século XIX. A segunda fase, a partir das revoluções burguesas, forja uma nova imprensa que precisa vender jornais para pagar os pesados investimentos com as novas tecnologias de impressão. Nesses, a saída, conforme Jorge (2013: 127-128) era publicar notícias do cotidiano, especialmente crimes, em jornais baratos de grande circulação, os penny-papers. Paulatinamente as verbas de publicidade passaram a ser o principal sustentáculo financeiro dos veículos que investiam em reportagens e análises mais aprofundadas, o que funcionou bem por todo o século XX. Com a Internet e sua cultura de distribuição gratuita de conteúdo avançando, no entanto, esse modelo entra em choque.

 

Desse modo, apesar de todos os grandes conglomerados de mídia no Brasil começarem a distribuir notícias por internet desde a segunda metade da década de 1990 (Ferrari, 2010 e Jorge, 2013), somente em 2012 as verbas publicitárias nos meios digitais iriam ultrapassar as destinadas aos veículos impressos[2] (e ambas ainda longe dos valores aplicados nas TVs abertas, especialmente a Rede Globo), isso num cenário de queda constante nas tiragens e fechamento de vários diários. Diversos modelos de rentabilizar os acessos aos portais noticiosos foram testados pelas empresas tradicionais. Entre eles, os principais foram a oferta de serviços digitais pagos (como endereços de e-mail, hospedagem de sites e blogs e o próprio provimento de internet) e os paywall (ou muro de pagamento), sistemas de cobrança para acesso ao conteúdo. No Brasil, usa-se principalmente o modelo “poroso” ou “flexível”, que, diferente do “duro”, o qual bloqueia todos os acessos gratuitos, permitindo a leitura de não mais de uns poucos textos por mês (normalmente entre cinco e 10) a partir de um mesmo endereço de Internet Protocol – IP[3]. A resistência ao paywall foi bastante forte no início, mas pouco a pouco ele vem sendo adotado com relativo sucesso.

 

O pioneiro nesse sentido foi a Folha de S.Paulo, que o utiliza desde 2012. Mas, apenas no ano passado, segundo o Knight Center for Journalism in the Americas, o jornal passou a ter mais assinaturas digitais do que das edições impressas. Em setembro de 2016, a Folha teria vendido 164 mil edições digitais e 151 mil impressas. No mesmo mês, o jornal O Globo também estaria bem perto de fazer a virada, com 150 mil de circulação digital e 163 mil impressa, de acordo com o Instituto Verificador de Circulação – IVC. Conforme relatório do órgão citado em artigo no blog Jornalismo nas Américas, do Knight Center,

“em setembro de 2016, as assinaturas digitais de 33 jornais com edições online monitoradas pelo IVC chegaram a 818.873, um número 20% maior do que a média de 2015. No mesmo período, a circulação impressa caiu quase 20%, chegando a cerca de 2,6 milhões de exemplares vendidos no Brasil. (Estarque, 2016: s/n)”

 

Apesar do aumento de assinaturas digitais, o modelo de sucesso ainda está longe de ser atingido, afinal, apenas 22% dos leitores de notícias na internet teriam pago alguma coisa por esse acesso tanto em 2015 como em 2016 (Carro, 2017: 106). Assim, segundo artigo da Ombudsman da Folha de S. Paulo, Paula Cesarino Costa, em outubro de 2016[4], o jornal “encerrou 2015 com receita líquida de R$ 526 milhões e lucro líquido de R$ 2,6 milhões”, menos ruim do que seu principal concorrente, O Estado de São Paulo, que teria tido um prejuízo de R$ 3 milhões no período, ou dO Globo, no vermelho em mais de R$ 51 milhões, provavelmente cobertos por outras operações do conglomerado, como a TV Globo, que recebe a maior parte dos investimentos publicitários em TV aberta (que responde por 53% das verbas totais) no Brasil[5], um país com 97% das residências com aparelhos de televisão mas apenas metade com acesso à internet (Carro, 2017). Mesmo com os valores aplicados em publicidade digital subindo ano a ano, em 2016 as mídias digitais receberam apenas 6,6% das verbas, mas já acima das revistas (4,1%), e do rádio (3.9%).

 

Embarcando de vez na Web

 

Com os altos custos de impressão e distribuição, vários veículos, entre tradicionais e mais recentes, migraram totalmente para a internet. É o caso do Jornal do Brasil, fundado em 1891, que deixou de ter versão impressa em setembro de 2010 (Barros e Spannberg, 2010) e da Revista Fórum, lançada durante o Fórum Social Mundial de 2001 e que deixou as bancas em 2014 após 129 edições em papel para ser publicada somente na internet[6]. Enquanto o Jornal do Brasil[7] aparentemente se mantém apenas com publicidade tradicional (banners de anunciantes como o próprio portal que hospeda o jornal, o Terra, e a Confederação Nacional do Comércio de Bens Serviços e Turismo – CNC), a Fórum procura novas formas de financiamento mais parecidas com as utilizadas pelas demais iniciativas jornalísticas brasileiras que já nasceram digitais.

 

Entre as fontes usuais do jornalismo digital estão as agências de publicidade na web orientadas a veículos informativos, como a Publy[8], usada, por exemplo, pela Fórum. Essas agências fazem a ponte entre os veículos interessados em monetizar suas operações com os anunciantes interessados em publicar seus banners em sites de grande tráfego. Cada “click” em um banner da agência gera um pequeno pagamento ao veículo. O modelo é diferente da publicidade tradicional em que um espaço fixo na página é vendido por um valor também fixo por um tempo determinado por conta do acesso total à página (e portanto a visualização do anúncio) independente da quantidade de usuários que clicam na propaganda. No novo modelo, os anúncios publicados e sua localização exata na página não são definidos em reuniões entre o veículo e a agência, que possui sistemas automatizados para distribuir peças que teoricamente atenderiam ao público-alvo das publicações.

 

Algoritmos definem anúncios

 

A Fórum utiliza também outro sistema semelhante de anúncios na web, o Google AdSense[9]. A agência virtual da gigante da internet paga os veículos tanto por visualização dos anúncios como por clique. Anunciantes e mídia podem definir critérios para a escolha dos anúncios mas no final é um algoritmo que irá destinar uma peça específica a um portal escolhido. Por conta disso, recentemente o serviço do Google foi alvo de boicotes por grandes veículos internacionais, como o Times londrino e a BBC, e por anunciantes de peso, como Audi e McDonald’s, por estar distribuindo anúncios e vídeos (no Youtube) com conteúdo extremista e de incentivo ao ódio político e religioso. A empresa foi obrigada a admitir a falha e revisar seus sistemas de triagem de anúncios, como anunciou seu diretor na Inglaterra, Ronan Harris, em 17 de março de 2017[10]. Segundo ele, apesar de mais de dois milhões de “bad ads” (anúncios ruins) e 100 mil anunciantes terem sido banidos do sistema apenas em 2016, muito ainda precisa ser feito para assegurar um ambiente virtual livre desses tópicos.

 

A Fórum recebe verbas, ainda, pela divulgação de “conteúdos” de outros produtores por meio da empresa OutBrain[11] (também utilizado pelo site da Folha de S. Paulo). Numa barra na página principal e também nos artigos da revista, são apresentados 12 links com fotos para “matérias” de fofocas de famosos, “reportagens” sobre produtos contra envelhecimento e queda de cabelos e programas de leitura dinâmica e memorização. Sistemas semelhantes, como o Taboola[12], usado entre outros pelo Jornal GGN[13], iniciativa digital do veterano jornalista de economia Luís Nassif, que tem um único anúncio da Cemig (companhia de energia do Estado de Minas Gerais), também “impulsionam conteúdos” que muitas vezes são frontalmente contrários à linha editorial do site, de esquerda. No caso do GGN, por exemplo, além das indefectíveis pílulas de emagrecimento milagroso, há links para “artigos” da consultoria Empiricus (que por sua vez também anuncia no OutBrain), de extrema direita, que vem faturando alto desde 2014 afirmando que só a retirada de Dilma Rousseff da Presidência poderia melhorar a economia no Brasil e agora alerta para o “perigo” de uma eventual eleição de Lula e já coloca como contraponto a imagem do prefeito de São Paulo João Doria Jr nos banners.

 

Assinaturas e doações

 

Por fim, a Fórum tem uma página[14] com pacotes de venda de assinaturas mensais vinculadas a um programa de descontos em livros da editora da revista, mesmo mantendo o acesso livre a todo o conteúdo do portal aos não assinantes. Muitos outros sites de jornalismo independente sobrevivem com doações e assinaturas digitais, ainda que geralmente não restrinjam o conteúdo. O Outras Palavras[15], por exemplo, se recusa a receber publicidade privada e também mantém uma página, a OutrosQuinhentos[16], para doações em valores fixos (R$ 20, R$ 40 e R$ 70), por depósito bancário de qualquer valor ou assinaturas mensais e anuais vinculadas a sorteios semanais e entrega de produtos como livros, ingressos para filmes e espetáculos, e descontos em livros da própria editora ou de editoras parceiras. Lançado em 2009, o site recebeu algumas vezes verba do Governo Federal em editais de Pontos de Mídia Livre do Ministério da Cultura, inclusive no último edital de agosto de 2015[17]. Com o golpe parlamentar de 2016 e o esvaziamento do MinC, que teve suas verbas cortadas e quatro ministros em um ano, não há previsão para novos editais que contemplem a mídia alternativa.

 

Newsletter como geradora de fluxo

 

Um modelo bem diferente é do Brio[18]. Capitaneado pelo jovem jornalista Breno Costa, com passagem pela Folha de S. Paulo, a iniciativa criada em 2015 começou como um lugar para grandes reportagens (ao contrário do que se apregoava inicialmente no jornalismo digital) chamado Brio Stories que pretendia cobrar pelo acesso às matérias mas não conseguiu gerar o fluxo de visitantes que esperava com o portal aberto[19]. O site decidiu então investir em duas iniciativas de produção de conteúdo (o Brio Lab[20] para material estritamente jornalístico e o Brio Room[21] para produtos audiovisuais com “DNA jornalístico”). Eles também mantém o Brio Hunter[22], para capacitação e acompanhamento (coaching) de jornalistas, especialmente recém-formados, que querem entrar no mercado de trabalho. Por fim, distribuíam gratuitamente até março de 2017 uma newsletter diária com resumo das principais notícias de outros veículos chamada Pílulas Hunter. Atualmente o serviço tem uma mensalidade de R$ 5,90[23].

 

Esse formato de newsletter com uma espécie de clipping (ou curadoria) de notícias tem sido usado por algumas iniciativas jornalísticas para gerar fluxo de visitantes nos sites e portais empresariais ou mesmo pessoais de seus criadores. Um bom exemplo é o Canal Meio[24]. Fundado em 2016, o Meio alia principalmente a experiência de Pedro Doria, que começou como colunista de internet na revista MacWorld ainda nos anos 1990 e atualmente é colunista do Globo, O Estado de São Paulo e Rádio CBN e do empreendedor Vitor Conceição, com 20 anos de experiência no mercado digital brasileiro. A iniciativa conta, ainda com a jornalista premiada Audrey Furlaneto. Perguntado para esse artigo sobre o modelo de negócio do Meio, Doria conta que não pretende fechar o conteúdo e nem abrir espaço para anúncios tipo click bait (isca de clicadas, como os oferecidos pela OutBrain e Taboola) ou mesmo o Google AdServe. Ele considera que a newsletter conseguirá captar em breve anúncios “de alto nível” que poderão dar retorno ao investimento inicial e manter a qualidade do serviço. Doria diz, ainda, que enxerga como seu mais forte concorrente no mercado nacional a newsletter do Nexo[25], chamada A_Nexo.

 

Apesar de também ser gratuita e diária, a A_Nexo, diferente da Meio, não publica apenas resumos de notícias e links para as fontes originais de outros veículos. Eles têm uma produção própria para o NexoJornal, com artigos, reportagens, análises e colunas cobrindo praticamente todas as editorias de um jornal tradicional. A iniciativa que nasceu digital em novembro de 2015[26], atualmente conta 30 profissionais de diversas áreas. Assim como a Brio, o Nexo começou distribuindo todo o seu conteúdo gratuitamente para criar público e depois mudou de estratégia para um paywall flexível. Serviços como a newsletter e as seções Vídeo, Estante – Trechos, Ensaio e Podcasts do portal seguem sendo grátis. Mas apenas cinco reportagens por mês das seções Política, Economia, Internacional, Sociedade, Cultura, Ciência e Saúde, Tecnologia, Esporte e Meio Ambiente estão disponíveis para os não-assinantes. Há dois tipos de assinatura: a mensal (R$ 12,00 cobrados a cada mês) e a anual (pagamento único de R$ 120,00). Existem duas opções de pagamento renovadas mensal ou anualmente de forma automática: cartão de crédito ou boleto bancário. Até aqui o modelo parece estar sendo muito bem sucedido, com resumos de seus conteúdos sendo inclusive distribuídos pelo Meio e pela Pílulas Hunter.

 

Fontes diversificadas

 

A iniciativa jornalística digital brasileira independente e sem fins lucrativos mais premiada[27] e com o modelo de negócio que talvez seja o mais consolidado até momento é a Agência Pública[28], fundada em 2011 pelas jornalistas Natalia Viana e Marina Amaral, ambas antigas colaboradoras da mais importante revista de jornalismo alternativo dos anos 1990 e 2000, a Caros Amigos. Inovadora, a Pública tem desde 2014 uma seção de checagem de informações (fact-checking) chamada Truco[29] e lançou em junho de 2017 um aplicativo de realidade aumentada para smartphones com informações históricas sobre a antiga área portuária do Rio de Janeiro, o Museu do Ontem[30]. A agência de jornalismo investigativo focada em direitos humanos faz questão de não receber anúncios e distribui gratuitamente todo o material produzido, inclusive para outros veículos, por meio de um modelo inspirado nas licenças Creative Commons[31]. A principal diferença é que enquanto no modelo original é permitido alterar o conteúdo desde que citada a fonte, a Pública aceita alterações somente nos títulos e intertítulos para adequação ao estilo do veículo. Ainda assim, a rede de jornais, sites, portais e revistas que reproduzem as reportagens de fôlego da Pública já chega a 60 veículos, incluindo El País Brasil, Huffpost Brasil, Carta Capital, portal UOL (da Folha de S. Paulo) e os já citados Luís Nassif Online e Outras Palavras.

 

Além da competência das jornalistas, a Pública nasceu também atraindo um grande interesse internacional. Afinal, Natalia havia sido, meses antes, a única brasileira chamada a Londres para ser a representante no país (depois em associação com a Folha de S. Paulo) para a seleção, tradução, edição e publicação dos documentos diplomáticos estadunidenses vazados pela organização WikiLeaks, de Julian Assange. Foi credenciada com essa exposição que ela conseguiu para a agência o financiamento da Fundação Ford e da Open Society Foundations e, mais tarde da Oak Foundation, Instituto Betty e Jacob Lafer e Aliança pelo Clima e Uso da Terra[32]. Também é possível fazer doações individuais via PayPal e Pague Seguro da UOL. Há, ainda, um fluxo por meio de crowdfundings constantes para bancar investigações específicas sugeridas por jornalistas de todo o Brasil que quiserem correr atrás de uma pauta instigante mas que não têm os recursos para isso nem um veículo de destaque para a publicação.

 

Juntando os amigos

 

O crowdfundig, também chamado de financiamento coletivo ou “vaquinha virtual” em português, é um sistema de arrecadação via internet em que sites especializados recebem projetos de pessoas físicas ou jurídicas das mais diversas áreas e gerenciam as doações geralmente por uma porcentagem do valor levantado. Um desses serviços, o Kickante[33], tem uma página em que lista os 10 principais sites de crowdfunding do país[34]. O mais famoso deles no é o Catarse, que inclusive fez uma pesquisa sobre o sistema de vaquinha virtual no país entre 2013 e 2014[35]. Para o jornalismo digital independente, o financiamento coletivo é uma opção bastante atraente. Em primeiro lugar, como tudo é feito via Web, se encaixa muito bem à própria cultura de produção em que os jornalistas estão imersos hoje. Além disso, liberta o jornalista das rédeas editorias (e ideológicas) da imprensa hegemônica e o aproxima de um público tão ávido por reportagens que não saem nos jornais tradicionais que se compromete a pagar pela sua realização.

“Para os criadores, o crowdfunding abre todo um leque de novas possibilidades de financiamento de suas ideias. Para o público, oferece um sentido de participação antes impensável. O fã sente-se como um criador, autêntico colaborador do processo produtivo, capaz mesmo de ajudar a determinar os destinos das obras/produtos que admira. (FELINTO, 2012: 141)”

Uma iniciativa jornalística brasileira digital financiada exclusivamente por crowdfunding é o coletivo Jornalistas Livres[36]. Iniciada de maneira quase anárquica no dia 15 de março de 2015 devido à angústia que profissionais independentes ou mesmo ligados a grandes grupos midiáticos sentiam ao ver a cobertura ideologicamente enviesada das manifestações contra o governo recém reeleito de Dilma Rousseff, o coletivo precisou buscar nos meses seguintes recursos para a montagem de uma infraestrutura mínima de atuação (aluguel de sede para os encontros, domínio e servidor de internet, impressão de credenciais, serviços de telefonia e um fundo para o financiamento de alguma reportagem especial). A campanha[37] de 45 dias no Catarse entre maio e junho de 2015 obteve o maior volume de doações via crowdfunding do jornalismo brasileiro, arrecadando R$ 132.730,00 (32% acima da meta estipulada) de 1.292 apoiadores.

 

Desde então, o coletivo tem usado esse fundo em suas atividades. O dinehri tem sido suficiente porque nenhum Jornalista Livre recebe por seu trabalho. Praticamente todas as colaborações, sejam reportagens, artigos de opinião, fotos, vídeos, memes, etc, são feitas de forma voluntária com os equipamentos dos próprios profissionais e estudantes da equipe. Há núcleos dos Jornalistas Livres em vários municípios do país e troca de material e colaboração com outros coletivos em coberturas especiais, como por exemplo as manifestações e greves distribuídas pelo Brasil. Na sede que divide com outras mídias alternativas (como Fórum e Outras Palavras) em São Paulo são realizadas as reuniões semanais de pauta, abertas a qualquer interessado, nas terças-feiras à noite. Mas o controle diário de produção e publicação é realizado por meio de chats via Telegram, serviço de mensagens russo semelhante ao WhatsApp. O chat dos editores, jornalistas com mais senioridade que possuem as senhas de publicação nos diversos canais como Medium, WorldPress, Facebook, WhatsApp, Telegram e Twitter, possui atualmente 50 membros ativos.

 

O uso de serviços gratuitos de redes sociais e plataformas de construção e até hospedagem de sites é comum em iniciativas jornalísticas que não possuem um fluxo regular de recursos financeiros. A mídia NINJA[38] (acróstico para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ativismo) é outro exemplo. Surgida em 2013 a partir das experiências da Rede Fora do Eixo[39] e da Pós-TV[40], seu modelo de produção é colaborativo com boa parte dos parceiros vivendo em casas coletivas nas várias sedes e produzindo eventos culturais de forma independente como festivais, ou por meio de editais públicos. Os jornalistas, artistas, ativistas e produtores culturais compartilham um caixa comum, assim como roupas, equipamentos, utensílios de cozinha, etc. Além das coberturas ao vivo via streaming de smartphones que os tornaram famosos pela forma de reportar as manifestações de junho de 2013, também produzem comercialmente vídeos, ensaios fotográficos, cobertura de eventos, etc e, de maneira similar à Pública, os ninja possuem ainda patrocínio das fundações estadunidenses Ford e Open Society.

 

Falando outra língua

 

Esse sistema de “brodagem”, ou seja, amigos (brothers) se ajudando, trabalhando e vivendo em rede por meio de escambo e uso de moedas alternativas, atraiu muita atenção dos meios tradicionais de comunicação. É representativo da dificuldade da velha mídia de entendimento não só do modelo de negócio mas até mesmo da linguagem usada por eles, a entrevista no programa Roda Viva[41], da TV Cultura de São Paulo, com dois dos idealizadores da Mídia NINJA, Pablo Capilé e Bruno Torturra. Os jornalistas entrevistadores se dividiam basicamente em três grupos: os que não compreendiam a simplicidade dos equipamentos para transmissão streaming (na época smartphones 3G e o aplicativo coreano gratuito TwitCasting[42]), o conceito de multiparcialidade contraposto ao mito da imparcialidade jornalística e os que não “sacavam” como eles podiam viver sem salário com dinheiro compartilhado e não dividido.

 

Fora das casas, interligando as cidades e colaboradores independentes, também há uma produção distribuída semelhante à dos Jornalistas Livres que, aliás, contaram muito com a parceria tecnológica dos NINJA em seu início.

Temos vários chats do Telegram e um deles, por exemplo, é o chat de editoria, que tem inclusive colaboradores jornalistas de renome que não fazem parte da Mídia Ninja, mas fazem parte da nossa editoria. É por meio desse chat de editoria que diariamente vamos decidindo o que entra e o que não, as notícias do dia, vamos debatendo assuntos pertinentes. Tem um chat só de design, tem um chat só de texto e redação, tem os chats regionais e assim por diante. Então, a nossa redação se movimenta pela comunicação pelos chats e é muito mais vivo que presencialmente, por conta da conexão com outras cidades. (Cleyton Nobre in França, 2016. s/n)

Como se vê, dentro das lógicas do Século XXI de produção e comunicação em redes digitais, a variedade de modelos de negócio para o jornalismo na Web é bastante grande. As iniciativas até aqui mais sólidas e sustentáveis parecem ser as que juntam diferentes modos de financiamento e/ou contam com trabalho colaborativo e voluntário. E, diferentemente dos investimentos necessários para manter estruturas com impressoras rotativas, estúdios, transmissores, antenas e equipamentos caríssimos; os custos de produção e divulgação das notícias e coberturas por meio de redes sociais e sites próprios são relativamente baixos. Esse novo ambiente comunicativo digital tem permitido a entrada em cena de players inovadores que estão criando não somente novas maneiras de se fazer jornalismo, mas também de sobreviver da atividade.

 

Referências:

BARROS, Cindhi Vieira Belafonte e SPAANENBERG, Ana Cristina Menegotto. Do Impresso ao Digital: A história do Jornal do Brasil. Anais do 10º Encontro Nacional de História da Mídia. UFRS 2010. Disponível em <http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/encontros-nacionais/10o-encontro-2015/gt-historia-do-jornalismo/do-impresso-ao-digital-a-historia-do-jornal-do-brasil/at_download/file>, acesso em 2 de julho de 2017.

 

CARRO, Rodrigo. In Digital News Report 2017. Reuters Institute for the Study of Journalism. (pp. 106-107) Disponível em <http://po.st/lfJFXh>, acesso em 2 de julho de 2017.

 

ESTARQUE, Marina. Após adotar paywall, jornais brasileiros batem recorde audiência e vendem cada vez mais assinaturas digitais. In Blog Jornalismo nas Américas, Knight Center for Journalism in the Americas. Disponível em <https://knightcenter.utexas.edu/pt-br/blog/00-17750-adocao-de-paywall-faz-aumentar-audiencia-de-jornais-no-brasil-e-estimula-venda-de-assi>, acesso em 29 de junho de 2017.

 

FELINTO, Erick. Crowdfunding: entre as Multidões e as Corporações. Revista Comunicação, mídia e consumo. São Paulo, ano 9, vol. 9, n. 26, p. 137-150. Disponível em: <http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/347/pdf>. Acesso em 14 julho de 2017.

 

FERRARI, Pollyana. Jornalismo Digital. São Paulo: Contexto, 2010.

 

FRANÇA, Erick Caldeira de. Modelos de negócio no jornalismo independente e digital brasileiro. Monografia de pós-graduação em jornalismo digital e produção multimídia do Instituto e Educação Superior de Brasília – IESB, 2016. Disponível em < http://jordigital.iesb.br/wp-content/uploads/tccs/jdpm12015/FRAN%C3%87A%20-%20Erick%20-%202016%20-%20Modelos%20de%20neg%C3%B3cio%20no%20jornalismo%20independente%20e%20digital%20brasileiro%20-%20TCC%20JDPM12015.pdf >, acesso em 15 de junho de 2017.

 

JORGE, Thaïs de Mendonça. Mutação no Jornalismo – Como a notícia chega à internet. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2013.

 

MARCONDES FILHO, Ciro. Ser Jornalista – O desafio das tecnologias e o fim das ilusões. São Paulo: Paulus, 2009.

 

[1] Disponível em <http://unicrio.org.br/img/DeclU_D_HumanosVersoInternet.pdf>, acesso em 1º de Julho de 2017.

[2] Disponível em < https://knightcenter.utexas.edu/pt-br/blog/00-10482-no-brasil-internet-supera-jornais-e-se-torna-o-segundo-meio-preferido-para-investiment>, acesso em 1º de Julho de 2017.

[3] O endereço IP define o terminal e a conexão usados para acesso a determinado conteúdo. Os paywall conseguem identificar assim qual máquina está solicitando a leitura de um artigo no portal do jornal, quantas vezes esse mesmo computador ou usuário acessou o portal e liberar ou não o acesso, pedindo uma senha pessoal ou direcionando o leitor à página de assinatura digital.

[4] Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/paula-cesarino-costa-ombudsman/2016/10/1825449-a-conta-da-noticia.shtml>, acesso em 2 de Julho de 2017.

[5] Fonte: Kantar Ibope Media. Disponível em <https://www.kantaribopemedia.com/meios-de-comunicacao-janeiro-%D0%B0-dezembro-2016/>, acesso em 2 de Julho de 2017.

[6] Ivan Longo. Do impresso ao digital, Fórum proporciona uma nova experiência de se ler revistas. Disponível em <http://www.revistaforum.com.br/2015/07/05/do-impresso-ao-digital-forum-proporciona-uma-nova-experiencia-de-se-ler-revistas/>, acesso em 7 de junho de 2017.

[7] Disponível em <http://www.jb.com.br/>, acesso em 2 de julho de 2017.

[8] Disponível em <http://pt.publy.net/>, acesso em 2 de julho de 2017.

[9] Disponível em < https://www.google.com.br/adsense/start/#/?modal_active=none/>, acesso em 2 de julho de 2017.

[10] Disponível em < https://www.blog.google/topics/google-europe/improving-our-brand-safety-controls/>, acesso em 2 de julho de 2017.

[11] Disponível em <http://www.outbrain.com/pt_br/about/company>, acesso em 3 de julho de 2017.

[12] Disponível em <https://www.taboola.com/>, acesso em 4 de julho de 2017.

[13] Disponível em <http://jornalggn.com.br>, acesso em 4 de julho de 2017.

[14] Disponível em <http://www.revistaforum.com.br/socio/>, acesso em 3 de julho de 2017.

[15] Disponível em < http://outras-palavras.net/>, acesso em 3 de julho de 2017.

[16] Disponível em < http://www.outraspalavras.net/outrosquinhentos/>, acesso em 3 de julho de 2017.

[17] Disponível em <http://www.cultura.gov.br/documents/10883/1300669/Portaria+n%C2%BA%2034+-+Fase+de+Classificados+-+M%C3%ADdia+Livre+-+Portal+MinC.pdf/26b08b77-9ee3-4f82-b52b-de7f143f9fb7>, acesso em 3 de julho de 2017.

[18] Disponível em <https://briohunter.org/>, acesso em 29 de junho de 2017.

[19] Mais detalhes sobre o fracasso no plano de negócios em < https://medium.com/brio-stories/raz%C3%B5es-para-otimismo-com-o-jornalismo-e08aa023e85e>, acesso em 29 de junho de 2017.

[20] Disponível em <https://briohunter.org/lab/>, acesso em 29 de junho de 2017.

[21] Disponível em <htt https://briohunter.org/room/>, acesso em 29 de junho de 2017.

[22] Disponível em <https://briohunter.org/>, acesso em 29 de junho de 2017.

[23] O director explica os motivos da mudança em < http://us3.campaign-archive2.com/?u=b2d6ff04d02b5697f0583e1ab&id=90f8a30a15/>, acesso em 29 de junho de 2017.

[24] Disponível em < http://www.canalmeio.com.br/>, acesso em 9 de julho de 2017.

[25] Disponível em < https://www.nexojornal.com.br/>, acesso em 9 de julho de 2017.

[26] Disponível em < http://www.portaldosjornalistas.com.br/nexo-esta-na-rede/>, acesso em 9 de julho de 2017.

[27] Disponível em < http://apublica.org/quem-somos/>, acesso em 14 de julho de 2017.

[28] Disponível em < http://apublica.org/>, acesso em 14 de julho de 2017.

[29] Disponível em < http://apublica.org/truco/>, acesso em 14 de julho de 2017.

[30] Disponível em < http://apublica.org/museu-do-ontem/>, acesso em 14 de julho de 2017.

[31] Veja como funciona em <https://br.creativecommons.org/>, acesso em 14 de julho de 2017.

[32] Disponível em <http://apublica.org/quem-somos/#financiadores>, acesso em 14 de julho de 2017.

[33] Disponível em < https://www.kickante.com.br/>, acesso em 14 de julho de 2017.

[34] Disponível em < https://www.crowdfundingnobrasil.com.br/>, acesso em 14 de julho de 2017.

[35] Disponível em < http://pesquisa.catarse.me/>, acesso em 15 de julho de 2017.

[36] Disponível em < https://jornalistaslivres.org/>, acesso em 15 de julho de 2017.

[37] Disponível em < https://www.catarse.me/jornalistaslivres>, acesso em 15 de julho de 2017.

[38] Disponível em < http://midianinja.org/ >, acesso em 15 de julho de 2017.

[39] Disponível em < http://foradoeixo.org.br/ >, acesso em 15 de julho de 2017.

[40] A Pós-TV < http://foradoeixo.org.br/tag/pos-tv/> foi uma experiência de produção de vídeos e coberturas de eventos via internet desenvolvida por ativistas do Fora do Eixo e os jornalistas Lino Bochini (atualmente dirigindo as mídias digitais da revista Carta Capital) e Bruno Torturra (que hoje tem a iniciativa jornalística Fluxo < http://www.fluxo.net/> e colabora com o programa Greg News < http://br.hbomax.tv/serie/Greg-News-Com-Greg%C3%B3rio-Duvivier-01-Eps-01/501493/TTL613338>, de Gregório Duvivier na HBO). Acessos em 15 de julho de 2017.

[41] Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=kmvgDn-lpNQ>, acesso em 15 de julho de 2017.

[42] Disponível em < http://pt.twitcasting.tv/?hl=pt>, acesso em 15 de julho de 2017

 

 

 

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LUTA ANTIRRACISTA PRECISA ACERTAR A ‘CABECINHA’ DE WILSON WITZEL

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Há anos a tática sobre segurança pública no Rio se concentra em operações espetaculares que resultam, de tempos em tempos, em um derramamento de sangue, com direito a traficantes, moradores de comunidades e policiais mortos.

O roteiro todos já conhecem. Unem-se policiais de diversos batalhões, eles invadem determinada localidade com poder de fogo muito superior, e terminam matando principalmente a ponta da cadeia do tráfico, a base da estrutura das facções, enquanto seus líderes comandam tudo de longe ou de dentro dos presídios, e no dia seguinte um novo comando paralelo se instala no mesmo lugar.

É uma máquina de moer gente. Mata-se loucamente, e no dia seguinte é como se nada tivesse mudado.

A situação é esta porque em certos locais do Rio a única chance de um jovem criado em situação de miséria comprar um tênis da moda é segurando uma arma que ele não sabe atirar direito. A parcela da população favelada que sobra do espaço da cidadania, por motivos que vão desde abandono familiar, déficit educacional ou imposição de terceiros, é seduzida por uma rede comércio ilegal que promete dignidade no contexto da extrema exclusão e sacrifica a vida destas pessoas como copos descartáveis.

São quase sempre jovens negros, no tráfico, na polícia ou nas casas vizinhas ao confronto entre eles. E suas mortes não comovem nem de perto tanto quanto o cãozinho morto na porta do Carrefour.

É assim desde que a abolição foi seguida pela recusa em absorver os negros no mercado formal de trabalho e a imigração de estrangeiros brancos para substituí-los. A pobreza se perpetuou a partir da negligência em gerar oportunidades e condições de vida saudável, e nela a criminalidade floresceu desde sempre.

Se soubesse da história do Rio, Wilson Witzel, o novo governador eleito no estado, que repete a palavra matar o tempo todo para agradar os ouvidos de uma classe média tanto preocupada com roubos quanto é racista, adepta de praias segregadas, odienta do funk, do samba e de pagode, faria algo para interromper a espiral macabra que corrói sua sociedade por dentro.

Alteraria o atraso social com políticas públicas inteligentes de ensino integral, cooperativas de trabalho, reforma do sistema penitenciário, investimento em tecnologia da informação e preparo de suas polícias. Enfrentaria o racismo com mais educação e cultura, e não faria coro com privilegiados que gostam de se remeter aos negros com termos tipicamente usados para animais, como “abate”.

Em 2010, o Rio viu Sérgio Cabral vencer Fernando Gabeira aproveitando-se, em parte, da crença de que o adversário era veado e maconheiro. Dali seguiu-se uma bandalheira que resultou, nos últimos anos, no colapso total das contas públicas. Já não há mais espaço de tempo para novos demagogos. E nem a população suporta mais mentiras no lugar de competência. Algo melhor que matar precisa vir à cabeça do novo governador. E eu sugiro que superar o seu racismo entranhado seja o melhor começo.

Por: Rodrigo Veloso – Colaborador dos Jornalistas Livres morador do Rio do Janeiro formado em Relações Internações

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OS BACHARÉIS DA RESISTÊNCIA

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Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Duke

 

O ano de 2005 é chave para a compreensão da crise brasileira contemporânea. Foi aí, no chamado “mensalão”, que se desenhou pela primeira vez aquela que, na minha percepção, é a característica mais importante da crise: o ativismo político dos profissionais da lei.

Desde 2005 que juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores e procuradores são personagens recorrentes na crônica política. Depois de 2014, a Operação Lava Jato se tornou palco para a fama desses profissionais. Mais do que nunca, o Brasil é a República dos Bacharéis.

Os marqueteiros da Operação Lava Jato afirmam que pela primeira vez na história do Brasil os empresários milionários sentiram na pele o peso da lei. É uma meia verdade. Se é meia verdade, por consequência lógica, é meia mentira também.

Os empresários presos atuavam no ramo da construção civil e de obras de infraestrutura. Os agentes econômicos envolvidos com atividades financeiras e especulativas não foram incomodados. Somente os mais ingênuos são capazes de acreditar que Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro são mais corruptos que os executivos do Itaú ou do Santander, que também financiavam campanhas eleitorais, que também estabeleciam relações nada republicanas com a classe política.

Por que uns foram presos, enquanto os outros estão aí, lucrando bilhões todos os anos?

A seletividade da Operação Lava Jato é óbvia e salta aos olhos de qualquer um que queira enxergar a realidade. A narrativa do combate à corrupção está sendo utilizada como pretexto para o desmanche do Estado e dos investimentos públicos em infraestrutura, o que favorece os interesses ligados ao capital financeiro nacional e internacional. A comunidade jurídica brasileira colaborou com esse projeto, ajudou a desmontar parques industriais, levando empresas nacionais à falência, sempre com o pretexto do “combate à corrupção”.

Como bem disse Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, a Justiça brasileira “prometeu acabar com os cupins, mas acabou ateando fogo à casa”.

Porém, seria um erro dizer que a comunidade jurídica é um bloco homogêneo, que todos os seus integrantes se movem na mesma direção. Alguns momentos na cronologia da crise mostram que o cenário não é tão simples, que há bacharéis dispostos a confrontar a hegemonia daqueles que entregaram seus serviços aos interesses do capital financeiro internacional.

Destaco aqui três nomes: Rodrigo Janot, Rogério Favreto e Marco Aurélio de Mello.

Em algum momento da crise, os três contrariaram interesses hegemônicos. Meu objetivo aqui é relembrar esses episódios e sugerir que a resistência democrática não pode abrir mão da institucionalidade. Ir às ruas e disputar o imaginário das pessoas não significa deixar de operar por dentro das instituições burguesas, explorando suas contradições. Uma coisa não exclui a outra. Uma coisa complementa a outra.

 

Rodrigo Janot

Rodrigo Janot foi empossado pela presidenta Dilma Rousseff como procurador geral da República em 2013, sendo reconduzido ao cargo, também por Dilma, em 2015. Janot foi personagem protagonista em alguns dos momentos mais agudos da crise brasileira, no período que compreendeu a derrubada de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.

Sinceramente, não sou capaz de definir a identidade ideológica de Rodrigo Janot, de dizer se ele é de esquerda ou de direita. Talvez ele não pense a realidade nesses termos. Antes de se tornar procurador geral da República, Janot tinha atuação engajada na defesa dos direitos da população carcerária. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Janot se manifestou a favor da candidatura de Fernando Haddad.

26 de agosto de 2015. Sabatina de recondução de Janot à chefia da Procuradoria Geral da República. Senado Federal. A crise institucional se aprofundava e começava a se desenhar no horizonte o golpe parlamentar que meses depois derrubaria Dilma Rousseff.

A oposição, liderada por senadores do PSDB e do DEM, colocou Janot contra a parede. Ana Amélia, Aécio Neves, Aloísio Nunes, Antonio Anastasia exigiam que a PGR denunciasse a presidenta Dilma Rousseff. Foram quase 12 horas de uma sabatina tensa e atravessada pelo partidarismo político. Por inúmeras vezes, Janot disse que não havia indícios suficientes para fundamentar uma denúncia contra a presidenta da República.

Janot não denunciou Dilma enquanto ela estava no exercício do mandato.

Já com Temer, o comportamento de Rodrigo Janot foi completamente diferente. Foram duas denúncias, em pleno exercício do mandato. A primeira denúncia foi apresentada em junho de 2017. A segunda veio três meses depois, em setembro.

Michel Temer precisou acionar suas bases na Câmara dos Deputados para barrar as duas denúncias. Precisou liberar verbas para os deputados aliados. Precisou gastar capital político. Acabou lhe faltando fôlego político para aprovar a Reforma da Previdência, que era a grande agenda do seu governo. Capital político tem limite, igual a peça de queijo: diminui um pouco a cada fatia retirada.

Se Temer não conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, parte da derrota pode ser explicada pelas flechas disparadas por Rodrigo Janot, que acabou colaborando para defender os direitos previdenciários dos trabalhadores brasileiros do ataque do capital especulativo.

Qual era o seu objetivo? Comprometimento com uma agenda social-democrata? Um republicanismo genuíno que parte do princípio de que não pode existir seletividade na aplicação da lei? As duas coisas juntas?

Não dá pra saber. Fato mesmo é que ao desestabilizar Michel Temer, Janot contrariou os interesses do rentismo.

 

Rogério Favreto

Quem acompanha a trama da crise brasileira lembra bem do dia 8 de julho de 2018. Era manhã de domingo e o país foi sacudido pela notícia que dividiu a sociedade, deixando metade da população em estado de graça e a outra metade babando de ódio.

“Lula vai ser solto!”. Assim, estampado em letras garrafais em todos os veículos da imprensa.

Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região em diálogo direto com lideranças petistas, autorizou um habeas corpus de urgência, determinando a soltura imediata de Lula.

Todos os envolvidos sabiam que Lula não seria solto. Lula nem fez as malas. O objetivo ali era tático: levar as instituições burguesas a extrapolar os limites da própria legalidade.

Sérgio Moro despachou estando de férias e negou o habeas corpus, o que ele não poderia fazer. Moro contrariou a ordem de um superior, subvertendo a hierarquia do Poder Judiciário.

Thompson Flores, presidente do Tribunal da 4° Região, cassou a decisão de Favreto, o que somente poderia ser feito pelo colegiado dos desembargadores.

Em um ato de resistência, Rogério Favreto deixou claro para o mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.

 

Marco Aurélio Mello

Marco Aurélio Mello, tendo mais coragem que juízo, vem sendo a voz da resistência no Supremo Tribunal Federal. Eu poderia dar vários exemplos de ações de Marco Aurélio em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da soberania nacional. Fico apenas com dois.

1°) Em 19 de dezembro de 2018, na véspera do recesso do Judiciário, Marco Aurélio soltou um bomba: em decisão autocrática determinou que a Constituição fosse respeitada, ordenando a libertação de todos os presos condenados em segunda instância, o que beneficiaria o presidente Lula.

É que a Constituição é clara. Só pode prender depois do trânsito em julgado. Se está errado ou não é outra discussão. Constituição não se questiona, a não ser para fazer outra Constituição.

Liminar pra cá, liminar pra lá. Procuradores da Lava Jato convocando entrevista coletiva para dizer como STF deveria agir. Mais uma vez a sociedade dividida. Novamente, Lula nem fez as malas, pois experimentado que é, sabia muito bem que não seria solto.

Dias Toffoli, presidente do STF, derrubou a decisão de Marco Aurélio, contrariando o regimento interno da Casa, que diz que somente a plenária do colegiado é legítima para anular ato autocrático de um ministro.

Se Lula não estivesse preso, o regimento seria respeitado. Lula não é um preso comum.

2°) Na última semana, vimos outro embate entre Marco Aurélio e Dias Toffoli. Dessa vez, o motivo foi a venda dos ativos da Petrobras. Marco Aurélio, outra vez em decisão autocrática, proibiu a venda, num ato de defesa da soberania nacional. Dias Toffoli autorizou a venda, se alinhando aos interesses privados e internacionais.

Apresentei três exemplos, de três profissionais da lei que em algum momento da crise contrariaram os interesses que hoje ditam os rumos da política brasileira. Não existiu nenhuma articulação entre eles. Os exemplos mostram apenas que as instituições burguesas não são homogêneas, que existem contradições que devem ser exploradas.

A resistência democrática, portanto, precisa se equilibrar sobre dois pés. Um nas ruas, agitando e apresentando soluções para o nosso povo, que já vai começar a sentir na pele as consequências de um governo ultraliberal, autoritário e entreguista. O outro pé deve estar bem fincado nos corredores palacianos, onde se desenrolam as tramas institucionais.

Precisamos, sim, de líderes populares, de líderes que saibam falar ao coração do povo, que entendam as angústias da nossa gente. Precisamos também de articuladores, de conhecedores da lei e dos regimentos, de lideranças versadas no jogo jogado nos bastidores. Resistência democrática é trabalho de equipe.

 

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Armai-vos uns aos outros

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Por José Barbosa Junior
O presidente da República Fundamentalista de Vera Cruz (antigo Brasil – porque agora nada pode ser vermelho), decretou nesta terça-feira algumas flexibilizações na Lei que regulamentava a posse de armas, o que, na prática, significa que ele liberou geral. A proposta anterior, de no máximo duas armas por cidadão, passou para quatro armas, sendo liberadas outras mais, conforme a necessidade apresentada pelo futuro portador.
Em resumo, a barbárie está liberada oficialmente em nosso país. “Cidadãos de bem” agora vão poder, finalmente, matar os bandidos que lhe atormentam a vida. Por bandidos leia-se pobres, pretos, pardos e párias, que de já tão coisificados, tornaram-se sem valor e pessoalidade em sua existência.
O que mais me choca, porém, é que Bolsonaro foi eleito e é apoiado, inclusive e principalmente nesta questão, por gente que se afirma cristã. Isso mesmo! Gente que diz seguir aquele nazareno marginal que afirmou que “bem-aventurados são os pacificadores, pois eles serão chamados filhos de Deus”, aliás o mesmo que afirmou que “quem vive pela espada, morrerá pela espada”.
Parece estranho. E é.
Mais estranho ainda porque em toda a campanha do atual presidente, ele fez questão de repetir o versículo que diz “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
A verdade é que a liberação de armas só gerará mais violência num país que respira violência.
A verdade é que mais mulheres serão vítimas de feminicídio, já que seus maridos machões agora poderão ter suas armas para suprirem seus outros fracassos.
A verdade é que mais LGBT’s morrerão nas mãos de homofóbicos que disfarçam seus preconceitos em discursos machistas e religiosos.
A verdade é que agora fica mais fácil planejar o suicídio, endêmico numa sociedade cada vez mais doente e adoecedora, refém de um sistema que empurra pessoas à depressão (sem contar as depressões que independem de fatores externos) e num país onde adolescentes cada vez mais se matam por conta de bullying e outras coisas mais. Ah! E sem falar no alto índice de suicídio entre pastores, tema cada vez mais recorrente nos últimos anos.
A verdade é que as brigas de trânsito, de bares, de baladas agora serão resolvidas na base do “quem saca primeiro”, porque com essa liberação a ideia de que o outro possa estar armado será sempre evidente e, entre ele e eu, é melhor que eu saque antes dele.
A verdade é que temos um governo violento, que ampara e incita à violência, que não esconde o prazer na tortura e na morte dos inimigos. Isso legitima e legitimará a barbárie!
Em nome da verdade… no governo mais mentiroso que já temos! E eu aguardo o dia da liberdade! Ela virá… mais cedo ou mais tarde!

*Teólogo e Pastor da Comunidade Batista do Caminho em Belo Horizonte.

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