Flávia Martinelli
05/06/2020 04h00
Não existe “manifestação segura” com pandemia e repressão violenta da polícia. Mas se omitir também é um perigo. Veja como tomar todos os cuidados necessários para ir às ruas ou dar o suporte de casa
Com reportagem de Ariane Silva e Jéssica Ferreira, especial para o blog Mulherias
Seja por causa da Covid-19 ou da violência policial, vidas negras estão se perdendo por motivos que poderiam ser evitados. No cenário brasileiro, soma-se ao racismo institucional a explícita manifestação de ideias e símbolos fascistas e neonazistas de pequenos grupos de apoio ao presidente Jair Bolsonaro que, há meses e sem pudor, defendem a intervenção militar no sistema democrático, como fechamento do Superior Tribunal Federal (STF).
“Tudo tem limite, né?”, diz a arte-educadora e produtora cultural Queren Pereira, de 29 anos, mulher negra e periférica de São Paulo. Ela esteve na Avenida Paulista no último domingo e vai novamente ao local no próximo dia 7 participar do protesto “Vidas Negras Importam”, marcado para as 14h. “Se está ocorrendo uma manifestação no meio da pandemia é porque é extremamente necessário, ninguém sai de casa para arriscar a vida por nada.”
Torcedora do Corinthians, a educadora ressalta que sua ida à manifestação não pode ser confundida com passar por cima do isolamento social, defendida pelas instituições de saúde para evitar a propagação do novo coronavírus. “Não! Fui para a rua com a urgência necessária, porque posso fazer isso, porque não sou do grupo de risco e porque é preciso reagir a esses discursos de ódio apoiados por autoridades que deveriam dar bom exemplo. Isso não pode ser naturalizado”, explica Queren.
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Sobre o grupo que defende o presidente Bolsonaro ela é taxativa: “Essas pessoas que quebram o isolamento com bandeiras de ódio, com taco de beisebol e com discursos antidemocráticos se sentem confortáveis pois estão amparadas pelo sistema do atual governo e da segurança pública”. Reagir, diz a militante, é “exigir um posicionamento dessa máquina de matar preto, pobre e favelado. É preciso dar um basta nisso”.
A morte de George Floyd pela polícia dos Estados Unidos foi um dos estopins para os atos no Brasil. “Aqui somos mortos até em casa, caso do menino João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos“, lembra Queren. O garoto foi baleado durante uma operação policial no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, e mais de 70 furos de bala perfuraram a casa onde ele brincava com os primos.
Assim como o último protesto reuniu torcedores de times de futebol rivais, como Palmeiras, São Paulo e Santos, a corinthiana espera nova união de forças nas ruas. “As pessoas brancas e não periféricas que podem precisam se manifestar também. Precisam estar na linha de frente nos protestos porque o povo preto vive esse enfrentamento diariamente. Estamos exaustos desse papel.”
Ser antirracista não é apenas usar uma hashtag no Facebook. “Mas agir como linha de frente empregando pessoas pretas, apoiando na prática, cedendo seus privilégios para promover equidade e a igualdade.”
Mas é seguro protestar durante a pandemia?
Não. Um protesto em condições normais já traz algum risco. Você pode se perder das pessoas que estão com você, passar mal por conta do sol, frio ou caminhar mais que o planejado sem comida. Nada disso é motivo para ficar em casa e é possível se preparar bem para imprevistos com uma mochila com água, lanches, agasalho e sapatos confortáveis. A pandemia, porém, traz novas preocupações.
Ir ou não aos protestos de domingo deve ser uma escolha pensada com extrema seriedade, considerando a própria saúde e condições de vida dos familiares que vivem na mesma casa. Além disso, o momento político exige reflexão diante da repressão violenta.
E aí? Devo ou não ir à manifestação?
Se você for de algum grupo de risco, divide moradia com pessoas idosas ou tem sintomas de Covid-19, é melhor ficar em casa, viver e lutar por seus ideais outro dia. O blog Mulherias elaborou um guia a quem pode apoiar as manifestações de casa e também aos que decidirem participar dos protestos. Leia antes de tomar a sua decisão.
Importante: as orientações de saúde foram baseadas em protocolos da Organização Mundial da Saúde e dicas da professora de epidemiologia da Escola de Saúde Pública da Universidade de Boston Ellie Murray, traduzidas para o português pelo blog.
A especialista americana tem usado seu Twitter com sugestões para minimizar os riscos da pandemia em manifestações. “Sim, eu fui contra os protestos antiquarentena. Sim, eu apoio o #VidasNegrasImportam. Não, essas visões não são contraditórias. A Covid é uma emergência de saúde pública. O racismo também. Precisamos lutar contra os dois”, posicionou-se a especialista.
E se eu for, como faço para me cuidar?
- Escolha sapatos confortáveis e use roupas simples, sem estampas, que sejam difíceis de identificar numa foto. Esconda piercings, tatuagens e outras marcas de identificação, e prenda os cabelos.
- Prepare uma mochila com seus documentos, dinheiro vivo para voltar para casa, agasalho, água (se possível numa garrafa com canudinho, para por debaixo da máscara) e comida. Assim você fica com as mãos livres para segurar faixas e cartazes e também para se proteger em caso de conflitos com a polícia, mas carrega com você tudo que precisa para cuidar de você durante o ato.
- Avise alguém que você vai à manifestação e combine um horário para entrar em contato novamente e avisar que já está em casa em segurança. Se levar o celular, coloque senha numérica forte e desative o desbloqueio por reconhecimento facial ou impressão digital. Anote em um papel o contato de alguém para o caso de você perder seu celular, ficar sem bateria ou ter o aparelho apreendido ou furtado.
- Use máscara o tempo todo. Coloque antes de sair de casa e só retire depois que retornar. Cuide dos seus olhos também, use óculos de proteção para barrar o contato com eventuais gotículas de saliva suspensas no ar. Eles também protegem das bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha que podem ser usados pela polícia.
- Gritar espalha gotículas de saliva no ar, então prefira usar cartazes, caixas de som, tambores e outras formas de se manifestar.
- Fique próxima a um pequeno grupo de pessoas próximas para ter menos contato com pessoas desconhecidas.
- Evite aglomerações: mantenha a distância de pelo menos 2 metros das outras pessoas durante a manifestação.
- Evite maquiagem, pomadas ou cremes na pele, pois eles ajudam partículas como gotículas de saliva a grudarem na pele e intensificando os efeitos de gás e spray de pimenta.
- Ao chegar em casa tire as roupas que usou e coloque para lavar. Tomar um banho assim que chegar também ajuda a descontaminar tanto de vírus que possam ter ficado em contato com a pele quanto de gás e spray de pimenta, se você tiver sido atingida. Lembre de lavar bem os cabelos.
- Se possível, fique em casa pelas duas semanas seguintes ao protesto. Seguindo essas dicas você diminui mas não elimina o risco de contaminação por coronavírus. Os sintomas da Covid-19 demoram de 3 a 14 dias para aparecer (e você pode contaminar outras pessoas antes mesmo de ter qualquer sintoma). Isole-se.
Advogados populares: a Comissão de Direitos Humanos da OAB estará atenta para possíveis violações.
Se eu ficar em casa, como ajudar?
- Compartilhe esse guia com as pessoas que conhece e que vão às ruas para ajudar na segurança delas.
- Doe kits com máscaras, álcool gel, lanches e água a quem vai ao protesto.
- Procure os grupos que estão organizando as manifestações, eles certamente precisam de ajuda na divulgação ou em outras tarefas.
- Use as mídias sociais para se manifestar e ampliar o alcance das manifestações: é preciso amplificar a luta por justiça e pelas vidas negras.
Protestos marcados para o próximo domingo (7/6):
Outras manifestações estão sendo marcadas e há algumas cidades com diferentes pontos de encontro. Pesquise, fale com amigos e organize-se para apoiar virtualmente os atos pelas vidas negras, contra o fascismo e em defesa da democracia.
- São Paulo: Vidas Negras Importam – 14h no MASP
- Rio de Janeiro : Vidas Negras Importam – 15h no Busto do Zumbi
- Belo Horizonte: Vidas Pretas Importam – 15h na Praça Sete
- Curitiba: Vidas Negras Importam – Fora Bolsonaro – 14h na Praça Santos Andrade
- Porto Alegre: Vidas Negras Importam! – 13h na Praça do Tambor
- Brasília: Museu Nacional da República, 9h.
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