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Golpe

Preto no Branco – as ruas nos dias 13 e 18

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A manifestação do dia 13 foi pensada, em grande parte, como um espetáculo para causar impacto político. E a cobertura dedicada, um dia inteiro em todas as mídias, deixou muita gente convencida.  E não é para menos. Uma imensa máquina foi posta em funcionamento para operar esse efeito. Mas basta colocar o preto no branco, para reduzir o evento a sua real dimensão. Que está muito distante daquilo que ele pretende ter sido.

O primeiro preto no branco que é preciso colocar diz respeito às multidões bíblicas que os apresentadores da Globo enxergaram nas ruas no dia 13. O portal G1 fala em 3,6 milhões de manifestantes. Para um país de mais de 204 milhões de habitantes, temos que admitir, embora isso vá magoar os Marinhos, que é um número ridículo. É menos de 2% da população total. Isso com números hiperinflados. Números tão absurdos que chegamos a deparar a seguinte situação: para a avenida Paulista, o DataFolha dá 500 mil, a polícia militar, 1 milhão e 400 mil, e os organizadores do Vem Pra Rua, 2 milhões e meio.

Esses bons rapazes, usando o método da mentira descarada, estimaram um número cinco vezes maior que o Datafolha. Deram um bom exemplo de como age a gente honesta que está querendo livrar o país da corrupção, com o apoio de Alckmin, Aécio, Bolsonaro, Magno Malta e afins.

O mais provável é que, em lugar dos 3,6 milhões comemorados pela Globo, tenham ido às ruas no país inteiro algo entre 1,5 e 2 milhões de pessoas. Isso é pouco menos de 1% da população.  Enfim, números que só parecem monumentais com o zoom deformador da mídia em sua ânsia de derrubar a democracia. Na verdade, considerados a frio, como números, não assustam. É só o nosso velho e conhecido 1% que condena o Brasil a ser um país estagnado, violento, gerido pelo totalitarismo policial e pela autocracia dos muito ricos. Ou seja, o 1% da população brasileira que possui metade da riqueza do país.

Esse 1% é o inimigo número um da democracia.

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Foto por Alessandra Santos

O segundo preto no branco diz respeito aos negros e sua ausência na festa branca do dia 13. A questão, que já foi posta por Maria Carolina Trevisan, retomo aqui por outra ponta. A festa branca não foi a de todos os brancos, mas de um punhado, que defende seus privilégios com unhas e dentes, e não aceita partilhar nada. Nem o espaço da avenida Paulista. Curiosamente, o Datafolha, que tem primado por trazer bons gráficos da composição social das manifestações, desde 2014, não apresentou o gráfico com os percentuais de brancos e negros. (Nesse artigo, vamos chamar de “negros”, para fins de apresentação dos dados, a soma de “pretos” e “pardos”)

Omitir esses dados é uma regressão enorme. Vai na contramão das boas práticas do jornalismo informativo e pode privar-nos, como vamos ver, de um aspecto essencial para compreender o Brasil hoje. É um caso grave de desinformação, desses que costumam ocorrer na escalada dos conflitos. A análise do que vem ocorrendo de 2014 para cá mostra, justamente, que a crescente adesão dos negros à defesa da democracia é o grande fato novo na história política do país. Se a Folha não nos disse quantos negros estavam na Paulista, o motivo é muito significativo e vale a pena tentar explicá-lo.

A percepção de uma avenida tomada apenas por brancos não foi ilusão visual, embora bem provavelmente, num país multirracial, multidões assim tão descoloridas sejam inéditas. Em sua manifestação sangue puro, a elite branca, o grupo mais endinheirado da sociedade brasileira, deu a si mesmo o espetáculo “de país branco, europeizado”,  que quer para o futuro: um país sem negros. Ora, a força que usou para essa proeza pode ser também o seu calcanhar de Aquiles: o do isolamento político. Ao que tudo indica, essa elite está sozinha, embora não tenha ainda percebido isso.

O país sem negros que almeja, nada mais é que a expressão do horror de perder privilégios de quem quer de volta uma universidade sem cotas, um aeroporto sem mistura (“aeroporto ou rodoviária?”), a empregada doméstica escrava, o fim da impertinência dos cabelos negros (“baixar a crista dessa gente”), etc. E que teme, sobretudo, que o pior ainda esteja por vir.

Mas a situação política deu passos sobre os quais eles parecem ainda não suspeitar.

Os dados que dispomos mostram que entre 2014 e 2015 o número de negros nas manifestações da direita branca reduziu-se brutalmente. De início, em 2014, pretos e pardos somados eram quase 50% dos presentes nos protestos que pediam o Fora Dilma. Mas isso não durou muito. Um crescente repúdio da parte dos negros pelos projetos que iam sendo delineados nessas manifestações,  levou-os a um afastamento crescente. E com isso, claro, as manifestações ficaram cada vez mais exclusivamente brancas. Veja-se a Tabela:

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A tabela mostra que entre agosto de 2014 e agosto de 2015, o número de pretos e pardos somados nas manifestações caiu de 47% (33 + 14) para apenas 20% (17+3), uma redução enorme. E a debandada foi maior entre os pretos, que de início eram 14% em 2014, mas terminaram sendo apenas 3% em 2015, quatro vezes menos que um ano antes. Isso significa muitas coisas e, a mais importante de todas, é que os negros percebem que não há lugar para eles onde se grita contra as cotas, busca-se reduzir a maioridade penal,  aplaude-se a PM e os humoristas racistas, demoniza-se o bolsa família, além de chamar negros e sem terras de vadios e preguiçosos.  Não se trata, ao que parece, tanto de defender um governo, o de Dilma, mas um programa, o da democracia.

Os negros que abandonaram a elite branca e passaram maciçamente a apoiar o governo que viam como mais representativo da democracia. Eles entram em aliança com os brancos mais pobres, os das periferias, os que têm os rendimentos mais baixos. Nessa aliança, os negros marcam uma presença decisiva nas manifestações, como aconteceu em 20 de agosto de 2015. O gráfico do Datafolha é muito interessante:

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Os negros somam agora 49% e, ultrapassando os 46% de brancos da baixa classe média e das periferias, formam a maioria dos presentes nas manifestações contra o impeachment na cidade de São Paulo. E essa foi, com muita probabilidade, a tendência que se impôs no país inteiro. É muito provável que um dia, essa virada que deu aos negros um papel de protagonistas, que não tiveram em nenhum momento no passado, venha a ser entendido como um divisor de águas. Não cabe dúvidas de que saíram às ruas para fazer a defesa da democracia, das políticas de combate às desigualdades, das políticas de inclusão e das ações afirmativas.

É isso que explica a avenida Paulista do dia 13 de março, sangue puro, inteiramente branca, alva de cabo a rabo, ou, em outras palavras, incapaz de trazer os negros como massas de manobra para seus projetos políticos. Os negros não morderam a isca do convite para a grande festa cívica nas ruas brasileiras. Do ponto de vista político, isso significa que as elites que deram o show da Globo e que saíram cantando vitória, estão de fato mais isoladas que nunca.

O mesmo aconteceu com os brancos pobres que, por motivos semelhantes aos dos negros, relativos aos impactos positivos das medidas democráticas sobre suas circunstâncias de vida, não embarcaram na canoa dos brancos ricos em 2014 e 2015.

Dou apenas duas indicações, restringindo-me à cidade de São Paulo, e tomando por base as manifestações de agosto de 2015. Os brancos que recebem até R$ 1.576 (os pobres) representam 27% da população da cidade de São Paulo. Mas o número deles que foi protestar contra o governo Dilma em agosto de 2015 ficou apenas em 6% dos presentes. Já os brancos com renda entre R$ 15.760 (dez vezes mais que os anteriores) e R$ 39.400, que são a minoria ínfima na cidade, apenas 2% da sua população, eram 14% dos que estavam lá. Ou seja, superavam em sete vezes a sua proporção real.  O ódio ao governo Dilma não está entre os brancos, mas entre os brancos mais endinheirados. Quanto maior a renda, maior o ódio.

Quem sairá às ruas agora, em todo o país, são os pretos e os brancos mais pobres. Isso, claro, se tiver ônibus, trem, metrô, se não se montarem bloqueios policiais para parar carros e, o que certamente já deve estar em estudos em vários gabinetes, se não se estabelecerem barreiras de acesso às zonas centrais das cidades (como já se pratica em todos os verões cariocas).

Seja como for, a branquitude das ruas no dia 13 demonstra claramente a iminência de uma grande unidade de negros e brancos pobres no dia 18, ou seja, a unidade das periferias. Defender a figura de Lula, que a elite branca quer destruir a qualquer preço como símbolo da democracia, é agora o lugar visível dessa unidade.

Vamos ver se o gênio popular saberá antecipar e driblar os muitos obstáculos, do locaute ao blackout, do apagão digital ao cerco policial, que devem mostrar suas caras até a consumação do dia 18. O que está na rua, como ninguém ignora, não é apenas a luta contra o fascismo mas também, se houver êxito nessa, a luta por uma mudança radical nos rumos do governo Dilma em direção a uma política popular. Esse é o preto no branco que mais interessa.

*Bajonas Teixeira de Brito Jr. é doutor em filosofia, professor universitário e escritor

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3 Comments

3 Comments

  1. não vou dizer

    15/03/16 at 6:55

    Eu amo o Bajonas e vou protegê-lo

  2. Só comentando

    29/03/16 at 11:59

    Eu me considero uma pessoa de esquerda, apesar da dificuldade em definir ou conceituar “esquerda”, hj. De qualquer forma, é ponto pacífico que me alinho mais aos posicionamentos do “jornalistas livres”, que ao posicionamento dos “MBL”s, “Antipetistas” e “revoltados contra corrupção” por esse Brasil afora. Dito isso, acho que vcs tem feito uma cobertura um tanto problemática, com um posicionamento um tanto maniqueísta. Me parece um pouco caricatural essa imagem passada por vcs do manifestante branco com medo do negro, manifestante indignado com a tal perda de seus privilégios, que quer “colocar o negro em seu lugar” (como li em outro site). Desinformado, provavelmente; mal-informado, tenho quase certeza; manipulado, acredito; maldoso? Acho que não. Lembro de ter visto em alguma pesquisa que boa parte dos manifestantes do 13 de março não eram a favor da criminalização do aborto, nem acreditavam que não existe racismo no Brasil, nem acreditavam que as mulheres estão em pé de igualdade com os homens… enfim, tinham claras algumas ideias que são tidas por nós, esquerda, como exclusividade nossa. Não imagino, sendo isso verdade ou não, o pq tenhamos que fazer com o “lado de lá” o que muitos fazem com a gnt, ou seja: menosprezar, simplificar, fazer caricaturas, torná-los inimigos, burros completos, cheios de ódio de raça e de classe, prontos pra babar de raiva ao primeiro sinal de igualdade. Se quisermos dialogar, me parece que o caminho não pode ser esse. Claro que há os raivosos, claro que há os ignorantes completos, mas me parece que reduzir uma massa (seja de 2 milhões ou 500 mil pessoas) dessa maneira é tratá-los de forma um tanto estúpida. A esquerda precisa de mais que isso, mais que entrar no Fla-Flu, mais que reforçar (e estabelecer novos) preconceitos, mais que falar em “Casa Grande e Senzala”, mais que estigmatizar quem vai às manifestações. Precisamos, entre outras coisas, estabelecer um debate de ideias (não de pessoas). O embate a favor das cotas, por exemplo, não pode ser tido como vencido e, a partir desse suposto resultado, passar a se tratar os que se opõe como escravistas sádicos. É preciso manter a serenidade, a clareza e argumentação. No fim das contas, todos acreditam estar certos sobre suas posições, acreditam serem boas pessoas e falarem, à sua maneira, por um país melhor (acredito eu). Não podemos reduzir toda uma pluralidade (ainda que dentro de um grupo social ou racial) a uma única imagem, um único pensamento e uma única vontade. Enxerguemos pessoas, por favor.

  3. James Gresslrer

    14/04/16 at 12:12

    As manifestações de 2013 nada tiveram a ver com os “somos todos cunha” de agora.Brancos foram de 48% para 75%, e pretos/pardos de 47% para 20%.Mais claro impossível.Os golpistas usaram aquele entusiamo como base e , na surdina, deram-lhe nova roupagem.

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Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

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Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

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#EleNão

EDITORIAL – HOJE É DIA DE LUTO! PERDEMOS O MENINO GABRIEL

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Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.

Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…

O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus

Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.

Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.

Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.

Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.

Obrigada, querido companheiro!

Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.

 

 

Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres

 

Grande personagem da nossa história: Gabriel, um brasileiro

 

 

 

 

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Golpe

Presidência cavalga para fora dos marcos do Estado de Direito

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Por Ruy Samuel Espíndola*

O Governo, num Estado de Direito, deve ser eleito, e, depois de empossado, deve ser exercido de acordo com regras pré-estabelecidas na Constituição. Essas são as regras do jogo, tanto para a tomada do poder, quanto para o seu exercício, como ensina Norberto Bobbio. Governo entendido aqui como o conjunto das instituições eletivas, representadas por seus agentes políticos eleitos pelo voto popular. Governo que, numa República Federativa e Presidencialista como a brasileira, é exercido no plano da União Federal, pela chefia do Executivo, pela Presidência da República e seus ministros, como protagonistas e pelo Congresso Nacional, com os deputados federais e senadores, como coadjuvantes.

Ao Governo, exercente máximo da política, devem ser feitas algumas perguntas, para saber de sua legitimidade segundo o direito vigente: quem pode exercê-lo e com quais procedimentos? Ao se responder a tais questões, desvela-se o mote que intitula este breve ensaio.

Assim, pode-se dizer “Governo constitucional” aquele eleito segundo as regras estabelecidas na Constituição: partido regularmente registrado, que, em convenção, escolheu candidato, que, por sua vez, submetido ao crivo do sufrágio popular, logrou êxito eleitoral. Sufrágio que culminou após livre processo eleitoral, no qual se assegurou, em igualdade de condições, propaganda eleitoral e manejo de recursos para a promoção da candidatura e de suas bandeiras, e que não sofreu, ao longo da disputa, nenhum impedimento ou sanção do órgão executor e fiscalizador do processo eleitoral: a justiça eleitoral. Justiça que, através do diploma, habilita, legalmente, o candidato escolhido nas urnas, a se investir de mandato e exercê-lo. Um governo constitucional, assim compreendido, merece tal adjetivação jurídico-politica, ainda que durante o período de campanha ou antes ou depois dele, o candidato e futuro governante questione o processo de escolha, coloque em dúvida sua idoneidade, ou mesmo diga que não estará disposto a aceitar outro resultado eleitoral que não o de sua vitória, ou, após conhecer o resultado da eleição, diga que o conjunto de seus adversários podem mudar para outros países, pois não terão vez em nossa Pátria e irão para a “ponta da praia” .

O Governo constitucional, sob o prisma de seu exercício, após empossado, é aquele que respeita a mínimas formas constitucionais, enceta suas políticas mediante os instrumentos estabelecidos na Constituição: sanciona e publica leis que antes foram deliberadas congressualmente; dá posse a altas autoridades que foram sabatinadas pelas casas do congresso; não usa de sua força, de suas armas, a não ser de modo legítimo, respeitando a oposição, as minorias e os direitos fundamentais das pessoas e de entes coletivos; administra os bens públicos e arrecada recursos públicos de acordo com a lei pré-estabelecida, sem confisco e de modo impessoal; acata as prerrogativas do Judiciário e do Legislativo, ainda que discorde ou se desconforte com suas decisões; prestigia as competências federativas, tanto legislativas, quanto administrativas, etc, etc. Promove a unidade nacional, em atitudes, declarações públicas e políticas concretamente voltadas a tal fim.

O “Governo constitucionalista”, por sua vez, além de ascender ao poder e exercê-lo, tendo em conta regras constitucionais, como faz um governo constitucional, defende o projeto constitucional de Estado e Sociedade, através do respeito amplo, dialógico e progressivo do projeto constituinte assentado na Constituição. Respeita a história política que culminou no processo reconstituinte e procura realizá-lo de acordo com as forças políticas e morais de seu tempo, unindo-as, ainda que no dissenso, através da busca de consensos mínimos no que toca ao projeto democrático e civilizatório em constante construção sempre inacabada. E governo constitucionalista, no Brasil, hoje, para merecer esse elevado grau de significação político-democrática e civilizatória, precisa respeitar a gama de tarefas e missões constitucionais descritas em inúmeras normas constitucionais que tutelam, entre outros grupos sociais, os índios, os negros, os LGBT, os ateus, os de inclinação política ideológica à esquerda, ou a à direita, ou ao centro, sem criminalização ou marginalização no discurso público de quaisquer tendências ideológicas. É preciso o respeito ao pluralismo político e aos princípios de uma democracia com níveis de democraticidade que não se restringem ao campo majoritário das escolhas políticas, mas, antes, se espraiam para as suas dimensões culturais, sociais, econômicas, sanitárias, antropológicas e sexuais etc, etc.

Governos que ascenderam sem respeito a normas constitucionais, como foi o de Getúlio Vargas em 1930 e o que depôs João Goulart em 1964, são inconstitucionais. E governo que se exerce fechando o congresso e demitindo ministros do STF, como se fez em 1969, com a aposentação compulsória dos ministros da Corte Suprema Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, são governos inconstitucionais, arbitrários, autocráticos, fora do projeto civilizatório e democrático de 1988.

O ponto crítico de nosso ensaio é que um governo pode ascender de modo constitucional, mas passar a ser exercido de modo inconstitucional e/ou de modo inconstitucionalista. O governo do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, é um exemplo deste último e exótico tipo: consegue ser inconstitucional e inconstitucionalista no seu exercício, embora investido de maneira constitucional.

E o conjunto de declarações da reunião ministerial de 22/4, dadas a conhecer em 22/5, é um exemplo recente a elucidar nossa asserção: na fala presidencial, a violação ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CF) ressoa quando afirma que deseja agir para que familiares seus e amigos não sejam prejudicados pela ação investigativa de órgãos de segurança (polícia federal). Na fala do ministro da Educação, quando afirma “que odeia” a expressão “povos indígenas” e os “privilégios” garantidos a esses no texto constitucional, o que indica contrariar o constitucionalismo positivado nos signos linguístico-normativos “população”, “terras”, “direitos”, “língua”, “grupos” e “comunidades indígenas”, constantes nos artigos 22, XIV, 49, XVI, 109, XI, 129, V, 176, § 1º, 215, § 1º, 231, 232 da CF e 67 do ADCT. Essa fala ministerial, aliás, ressoa discurso de campanha de 2018, quando o então candidato disse, no clube israelita de São Paulo: “No meu governo, não demarcarei nenhum milímetro de terras para indígenas. Também há inconstitucionalismo evidente na fala do Ministro do Meio Ambiente quando defendeu que se fizessem “reformas infralegais” “de baciada”, “para passar a boiada”, “de porteira aberta”, no momento em que o País passa pela pandemia de covid-19, pois o foco de vigília crítica da imprensa não seria o tema ambiental, mas o sanitário e pandêmico, o que facilitaria os intentos inconstitucionalistas contra a matéria positivada nos arts. 23, VI, 24, VI e VII, 170, VI, 174, § 3º, 186, II, 200, VII, 225 e §§ da CF.

Outras falas e atitudes presidenciais ainda mais recentes, e de membros do governo, contrastam com as normas definidoras da separação de poderes, da federação e da democracia, princípios fundamentais estruturantes de nossa comunidade política naciona. A nota do general Augusto Heleno, chefe do GSI, ao dizer que eventual requisição judicial do celular presidencial pelo STF, levaria à instabilidade institucional, traz desarmonia e agride ao artigo 2º, caput, da Constituição Federal. “Chega, não teremos mais um dia como hoje” e “Decisões judiciais absurdas não se cumprem”. Essas falas presidenciais, após o cumprimento de mandados judiciais no âmbito do inquérito judicial do STF, ordenados pelo Ministro Alexandre Moraes, agridem o mesmo dispositivo constitucional, com o agravante do artigo 85, II e VIII, da CF, que positiva ser crime de responsabilidade do presidente atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário. E o atentado contra a democracia poderia ser também destacado na fala do filho do Presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro, que declarou estarmos próximos de uma ruptura e que seu pai seria chamado, com razão, de ditador, a depender das atividades investigativas do judiciário, tomadas como agressões ao governo de seu genitor. E o atentado contra a federação se evidencia nas falas presidenciais contra os governadores e prefeitos que estão a tomar medidas sanitárias no combate a covid-19, em que o presidente objetiva desacreditá-los e incitar suas populações contra esses chefes dos executivos estaduais e municipais, para que rompam o isolamento social, com agressão patente aos artigos 1º e 85, II, da Constituição. Os ataques diários aos órgãos de imprensa e a jornalistas, assim como sua atitude contra indagações de repórteres, também afrontam o texto da constituição da República: 5º, IX e XIV, 220 §§ 1º e 2º, protegidos pelo art. 85, III, da CF.

Em nossa análise temporalmente situada e teoricamente atenta, o conjunto de declarações públicas conhecidas do então deputado federal Jair Bolsonaro, desde seu primeiro mandato parlamentar, alcançado em 1990, portanto após o marco constitucional de 1988, embora constituam falas inconstitucionais e inconstitucionalistas, não servem para descaracterizar a “constitucionalidade” de sua eleição em 2018. Embora ainda reste, junto ao TSE, o julgamento de ação de investigação judicial eleitoral por abuso dos meios de comunicação social, que poderão ganhar novos elementos de instrução resultantes da CPI no Congresso sobre fake news e do inquérito judicial do STF com objeto semelhante. Sua eleição presidencial se mantém válida, assim como sua posse, enquanto essa ação eleitoral não for julgada definitivamente  pela Suprema Corte eleitoral brasileira.

Algumas de suas falas públicas inconstitucionalistas e inconstitucionais pré-presidenciais devem ser lembradas: “Erro da ditadura foi torturar e não matar”; “O Brasil só vai mudar quando tivermos uma guerra civil, quando matarmos uns trinta mil, não importa se morrerem alguns inocentes”; “Os tanques e o exército devem voltar às ruas e fechar o congresso nacional”, etc. E durante o processo eleitoral de 2018, falas inconstitucionalistas também foram proferidas: “No meu governo, não demarcarei um milímetro de terras para indígenas”. “O Brasil não tem qualquer dívida com os descendentes de escravos. Nossa geração não tem culpa disso, mesmo porque os próprios negros, na África, escravizavam a si mesmos”, entre outras.

A resposta a nossa indagação: embora tenhamos um governo eleito de modo constitucional – até decisão final do TSE -, ele está sendo exercido de modo inconstitucional e de modo inconstitucionalista. A Presidência da República atual, caminha, inconstitucionalmente para fora do marco do Estado de Direito. E o passado pré-presidencial do presidente da República demonstra que o seu inconstitucionalismo governamental não é episódico e sim coerente com toda a sua linha de pensamento e ação desde seu primeiro mandato parlamentar federal.

  • Advogado – mestre em Direito UFSC Professor de Direito Constitucional – Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Membro Consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. 

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