América Latina ainda tem um longo caminho à frente para garantir os direitos reprodutivos das mulheres, especialmente as de baixa renda. Mas pouco a pouco, cenário começa a mudar. Por: Gabriela Luz, especial para os Jornalistas Livres
Em 14 de junho deste ano, a Câmara dos Deputados da Argentina aprovou o projeto de lei que visa a legalização do aborto. Em votação acirrada, 129 deputados votaram a favor, 125 contra e houve uma abstenção. A medida, que propõe a autonomia de abortar até a 14ª semana de gestação, seguirá para votação no Senado. Atualmente, no país, uma lei de 1921 determina prisão de um a quatro anos para mulheres que interromperem a gravidez.
Assim como no Brasil e nos outros países da América do Sul, a prática é legalizada em casos de estupro, inviabilidade do feto ou que coloquem em risco a vida da mãe. No Chile, o aborto era absolutamente proibido até setembro de 2017. Na América Central, El Salvador proíbe a prática, qualquer que seja o motivo, e prevê 30 anos de prisão em caso de descumprimento. Há instituições que se autointitulam “pró-vida” que tentam aumentar a pena para 50 anos no país. Em Cuba, o aborto é permitido em qualquer situação desde 1968 e pode ser realizado no serviço público de saúde por solicitação da gestante.
Entre abril e maio, mais de 700 pessoas, como mulheres que já abortaram, médicos, artistas, cientistas, dentre outros, foram ao senado argentino com falas a favor e contra a medida. No dia da votação, milhares acompanharam um telão do lado de fora da Câmara dos Deputados. A efervescência do assunto é comemorada por Julieta Luque, argentina de 36 anos que está na organização do movimento Ni Una Menos. O movimento feminista surgiu e se popularizou há três anos denunciando os índices de feminicídio na Argentina e cobrando medidas sobre o caso de Santiago Maldonado, desaparecido político no país. Julieta afirma que a ocupação do lado de fora da câmara e pressão dos movimentos feministas foram decisivos para o resultado da votação e comemora cada vitória. “Para nós, [o direito ao corpo] já é lei no sentir, no partilhar. Passe o que passe no congresso, há uma cumplicidade entre nós de saber que o caminho está certo,” comenta, com serenidade.
A estudante Olivia*, de 33 anos, passou por um aborto em 2005, aos 20 anos, por meio de remédio que conseguiu ilegalmente. No Brasil, o medicamento mais usado para o aborto ilegal é que o Misotropol, ou Citotec, é prescrito para prevenção de úlceras no estômago em humanos e outros animais. Na farmácia, é vendido somente com receita por aproximadamente 50 reais a caixa. Ilegalmente, pode custar 150 reais por comprimido. Dependo do número de semanas de gravidez, costumam ser necessários quatro pílulas para o procedimento. A pessoa que vende o medicamento geralmente dá instruções de como utilizá-lo, como a quantidade de comprimidos e a forma de aplicação, que pode ser por via oral e/ou vaginal. Olivia conta que o namorado se mostrou compreensivo a seu desejo de aborto, mas que a abandonou no início dos procedimentos.
Como na época as informações eram pouco difundidas na internet, ela procurou pelos comprimidos em lugares hostis, mas só conseguiu mesmo com uma sacoleira que iria ao Paraguai. Conta que pagou 200 reais sem garantia de qualidade do medicamento ou de entrega. O tempo de 25 dias de espera foi marcado pelos sentimentos de dúvida, abandono e culpa. Quando chegaram as pílulas, combinou de dormir na casa de uma amiga e, ainda confusa pelas várias instruções que recebeu, ingeriu dois comprimidos e inseriu os outros dois na vagina. “Depois de algumas horas em sofrimento – com cólicas e ansiedade – começou a hemorragia. Iniciou como se fosse um fluxo intenso de menstruação até quando expeli um coágulo do tamanho de um isqueiro Bic grande. Esse era o feto de aproximadamente 10 semanas,” lembra. O sangramento continuou por mais alguns dias. Obedecendo às instruções que recebeu, Olívia compareceu ao pronto-socorro e disse que havia sofrido um aborto espontâneo, para receber a curetagem, uma limpeza do útero. Foi hostilizada e tratada com desconfiança pelos funcionários. No fim das contas, não precisou da curetagem, pois seu útero havia expelido todo o conteúdo.
Os principais argumentos para a legalização do aborto passam pelos pontos do direito ao corpo e da defesa à vida das mulheres, especialmente as mulheres negras, que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estão duas vezes e meia mais sujeitas a morrer no decorrer dos procedimentos devido ao racismo institucional. Além da universalização do direito ao aborto, os movimentos feministas também buscam a facilitação do acesso, que é burocraticamente dificultado mesmo nos casos previstos pela lei 12.845, que está em vigor desde 2013. Segundo a lei, a mulher que deseja abortar deve procurar atendimento hospitalar sem necessidade de boletim de ocorrência ou alvará judicial. No entanto, a falta de informações e desconfiança dos funcionários hospitalares dificultam o cumprimento da lei.
Para encurtar a burocracia e garantir que a lei seja seguida, há ONGs internacionais que prestam assessoria às mulheres à distância, acolhendo-as virtualmente, fornecendo informações, enviando medicação e acompanhando o processo. A professora de geografia Cíntia*, de 30 anos, descobriu uma gravidez indesejada em 2017, quando já tinha dois filhos, uma menina de treze e um menino de sete anos. Seu mestrado estava em curso e, por já ter dois filhos, não viu possibilidades de dar prosseguimento à gravidez. Com o apoio do companheiro, que não é pai dos seus filhos, mas assumiu as responsabilidades da criação, buscou os meios para interromper a gestação de oito semanas. Encontrou as pílulas que precisava por valores totais que variavam entre 800 e 1.200 reais. Pesquisando, descobriu a ONG Women Help Women, rede mundial de ativistas que fornecem informações e material para aborto seguro e métodos anticoncepcionais para países onde estes não são permitidos. Cíntia se cadastrou, fez uma espécie de triagem e teve retorno imediato em português. Conseguiu o envio dos comprimidos por aproximadamente 300 reais e todo seu processo foi acompanhado por email pela ativista da organização, que nunca se identificou.
O levantamento da pauta do aborto e a possibilidade de legalização reafirmam a Argentina como um país progressista, que legalizou o casamento gay em 2010 e aprovou a lei de estudo de identidade gênero nas escolas em 2012. Julieta reforça a importância dos movimentos secundaristas na Argentina para o avanço da pauta do aborto. No entanto, esta foi a sétima vez que o projeto de lei em favor da descriminalização da prática foi apresentado desde a volta da democracia na Argentina, em 1983. Julieta se alegra pelo avanço e aponta caminhos para o Brasil. Segundo ela, a unidade com os movimentos secundaristas e o diálogo com a lei de identidade de gênero ampliaram o alcance da discussão e aumentaram a adesão à pauta, inclusive por parte de pessoas que não tinham contato direto com o feminismo. “Penso que o movimento feminista vai entrando como água que corre e encontra uma greta e vai adentrando, trazendo à luz essa temática que antes ficava tão obscura. Praticamente todas as mulheres conhecem alguém que já fez uma aborto, já fez um ou acompanhou de perto,” reflete.
- nomes fictícios para preservar as identidades das fontes