“Por todas elas”: o florescer da Primavera Feminista

“Companheira me ajude, que eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor”. De mãos dadas e em uma só voz, centenas de mulheres se reuniram no vão livre do MASP, nesta quarta-feira (8), para dar início ao segundo ato “Por todas elas”, contra a cultura do estupro e o machismo que seguem latentes nas veias da sociedade brasileira. Uma legião de mulheres, das mais distintas idades e realidades sociais, saiu novamente às ruas para reforçar que a luta está apenas começando e que o silenciamento imposto pelo patriarcado não é mais uma opção.

Em meio a uma tarde fria na cidade de São Paulo, mulheres se conheciam e reconheciam suas cicatrizes com apenas uma troca de olhares. Durante a concentração, Maria Paula enxergava as coisas de um ponto de vista diferente. “Como cadeirante, sofro muito preconceito em questão de padrões de beleza machistas. Eu percebi que eu sou bonita da forma que sou, porque cada mulher é bonita da sua forma e o feminismo mostra muito isso, a quebra dos padrões que são impostos pra gente.” Para a jornalista de 23 anos, o machismo prejudica principalmente a questão de autonomia da mulher. “Você deixa de ir numa rua que às vezes é mais deserta, com medo de chegar um cara e abordar você de uma forma mais agressiva, você tem medo de pegar um transporte público. No meu caso, tenho medo de pegar táxi sozinha e como eu não ando, tenho medo dele parar em uma rua deserta e me estuprar. Eu tenho medo de viver de muitas formas”.

Há muito tempo o medo vem sendo um personagem onipresente na vida das mulheres, pautando quais roupas elas devem usar, que lugares devem frequentar e como devem se comportar. Por muitas vezes esse medo tem nome, rosto e divide o mesmo teto. Mas ele também pode vir através de um desconhecido que com apenas um comentário é capaz de despir, constranger e desassossegar. O feminismo traz consigo o antídoto: um frasco de coragem que consegue fazer ruir as estruturas da espiral do silêncio. Ele rompe o isolamento.

“Comecei a falar sobre isso há pouco tempo, o feminismo abriu portas pra eu me sentir pronta e liberta. Por quatro anos da minha vida fui violentada por uma pessoa da minha família. Antes do feminismo eu não teria coragem jamais de falar isso pra alguém. Hoje sei que não importa a roupa eu vista, nada justifica. Estou aqui para que outras meninas tenham essa liberdade. Pra que se algum dia eu tiver uma filha mulher ela não tenha que andar com medo”, confessa Letícia dos Santos, de 18 anos. A jovem conta que o feminismo mudou a sua vida pelo fato de fazê-la acreditar em sua capacidade e por lhe dar a certeza de que é dona de si e de seu próprio destino.

Sentada no chão, entre panelinhas de plástico e um cartaz escrito “Com mamãe feminista eu não cresço machista”, Ádila Kuahirú, 23, brincava com seu filho Adrian, de apenas três anos. A tocantinense descendente da tribo Javaé conta que foi a maternidade que abriu seus olhos para o feminismo. Se já é difícil para uma mulher ser respeitada, depois de se tornar mãe os desafios se intensificam ainda mais. Como mãe de menino, Ádila vive um processo diário de desconstrução. “Meu filho vê o pai e a mãe fazendo todos os afazeres da casa. Não limito ele com cores. Ele usa roupas rosa, tem copos rosa, tem bonecas e panelinhas. Não tento influenciar que meninos não choram ou que ele tem que ser forte só porque é menino. E não digo pra ele quando está com alguma garotinha que ele vai ser namoradinho dela ou que tem que ter algum interesse nela. Eles são só amigos”. Para ela, o feminismo é sinônimo de amor e acolhimento para todos os tipos de mulheres. “Só outra mãe feminista consegue entender a nossa luta e todo trabalho que a gente tem no dia a dia”.

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Apesar do movimento ter conquistado enorme repercussão com o advento das redes sociais, o feminismo ultrapassa gerações e transcende a teoria. Edva Aguilar, de 59 anos, nunca antes havia sentido a necessidade de se denominar feminista. Mas o momento atual a impulsionou a ir às ruas contra a cultura do estupro e pela vida das mulheres. “Eu enxergo o machismo em tudo. No rotina de uma família, por exemplo, a gente percebe que a menina tem mais obrigações que o menino dentro de casa, que a mulher é mais culpada por tudo, que ela é multitarefal. Tem que trabalhar fora, porque se ela não trabalha fora é vagabunda e quando chega em casa tem que trabalhar de novo.” A enfermeira lembra que na década de 60 houve um forte empoderamento de todas as minorias, mas que as coisas têm mudado. “Agora eu vejo muita coisa regredir, eu acho que à medida que sobem essas crenças pentecostais e esse excesso de religiosidade, a gente acaba perdendo muito em direitos.”

Ela se refere à forte influência da bancada religiosa em políticas públicas que afetam diretamente a liberdade das mulheres. A nova Secretária Nacional de Políticas para as Mulheres, Fátima Pelaes (PMDB), por exemplo, se pronunciou contra o aborto, mesmo em casos de estupro. A ex-deputada já foi a favor do aborto mas mudou radicalmente de opinião depois de, em suas próprias palavras, ter sido “curada” ao se converter. Para Edva, esse posicionamento é extremamente problemático principalmente para as mulheres pobres: “Quando a mulher tem dinheiro, ela vai lá no ginecologista e faz o procedimento de vácuo-aspiração e sai numa boa. Toma um sedativo como se tivesse feito uma endoscopia e se livra do problema. Agora, a mulher pobre não. Fazendo isso, eles só condenam as pobres.”

 Para Maria das Neves, diretora de jovens feministas da União da Juventude Socialista (UJS) e uma das organizadoras do ato desta quarta-feira, um governo ilegítimo não tem a menor condição de pautar os direitos das mulheres. “Nós não reconhecemos Fátima Pelaes como secretária das mulheres porque não reconhecemos o Temer como nosso presidente”, declara a militante. Maria acredita que esse é um momento de reação das mulheres, que se levantam em todo país contra a cultura do estupro, mas também em defesa da democracia e contra o golpe. “Quando o golpe avança, retrocedem os direitos das mulheres. Esse é um golpe machista, não apenas contra a presidenta Dilma, mas contra todos os direitos conquistados pelas mulheres brasileiras. Ele vem no sentido de voltar ao passado e colocar as mulheres de volta no tanque e não no lugar de empoderamento, na política e no mundo do trabalho com a igualdade salarial. Esse é o recado que as mulheres vêm dar nas ruas hoje: a primavera feminista seguirá florescendo”.

COMENTÁRIOS

3 respostas

  1. “Como cadeirante, sofro muito preconceito em questão de padrões de beleza machistas. Eu percebi que eu sou bonita da forma que sou, porque cada mulher é bonita da sua forma e o feminismo mostra muito isso, a quebra dos padrões que são impostos pra gente.” ”

    Na boa, vamos ser um pouco menos hipócritas. O fato de um homem não gostar de uma cadeirante (ou de uma gorda ou de uma magra ou de uma baixinha…) nem sempre tem nada a ver com o machismo.

    Como se as mulheres também não olhassem um cara sarado e preferissem a um magrelo, ou um cara alto em detrimento de um baixinho (ou vice versa).

    Cada vez mais algumas feministas falam asneiras e generalizam comportamentos como machistas.

    Quando você julga alguém você dá o direito de ser julgada. Acho a luta pela igualdade necessário e válida, mas o discurso feminista está cada vez mais vazio.

  2. Excelente artigo. Parabéns! Sucesso à Jornalistas livres.

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