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Pesquisadora vítima de racismo na UFRN desabafa: “É como se eu tivesse sido puxada para o meu passado”

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Por Jana Sá e Rafael Duarte

“Eu não consigo respirar” foi a última frase dita pelo ex-segurança George Floyde, nos EUA, antes de ser assassinado, asfixiado por um policial branco norte-americano. A execução de Floyde foi filmada e desencadeou uma série de protestos nos Estados Unidos e pelo mundo contra o racismo.

Já “vidas negras importam” é uma frase já bastante difundida pelo povo negro para mostrar que uma vida negra tem o mesmo valor e importância que a vida de qualquer pessoa, seja qual for a cor da pele dela.

Para falar sobre racismo estrutural na nossa sociedade, nós convidamos a estudante de Filosofia, gerente de comunidade e pesquisadora Laura Cavalcante que, essa semana, foi vítima de racismo e violência quando participava de um debate exatamente sobre racismo estrutural promovido pela empresa júnior de publicidade e propaganda do departamento de comunicação da UFRN.

O DECOM suspendeu a série de debates virtuais sobre diversidade e encaminhou a denúncia para o Ministério Público.

Você também pode ouvir essa entrevista no Saiba Mais Podcast ou acompanhar um bate-papo com a própria pesquisadora assistindo ao programa Contrafluxo que foi ao ar na sexta-feira (5).

Agência Saiba Mais: Laura, para a gente entender o racismo estrutural, as manifestações que vem acontecendo nos EUA e em diversos outros países após a morte do ex-segurança George Floyd, queria que você falasse sobre representatividade. Explica o que significa e como é ser mulher negra num dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, como o Brasil?

Laura Cavalcante: Ser negro no Brasil é ser marcado por uma diferença e é uma diferença caracterizada principalmente pela negligência. Então é olhar para a história da nossa própria pátria e perceber que nós somos largados, perceber que nós não fomos incluídos no processo de desenvolvimento do país, que a gente ficou para trás e que muitas vezes a gente precisa recorrer a diversos outros meios para poder ser incluído, para poder ser visto, e um desses meios é dá de cara com sistema, é bater de frente com sistema, para tentar fazer com que nos olhem, nos reconheçam e nos tirem dos troncos que outra hora a gente teve. Que pare de nos chicotear, que parem de nos criminalizar. Mas essa é a parte ruim.

Tem toda uma parte bonita que a gente poderia dizer, que eu posso falar aqui o que é ser negro. É saber que a gente possui uma ancestralidade muito bonita, que a gente carrega no nosso sangue, carrega na nossa cor, carrega nas nossas vivências uma possibilidade de mudar o mundo como ele é, traz uma possibilidade de sermos mais amorosos, de nós sermos mais inclusivos e nós sermos mais colaborativos. Então tem toda uma poesia por trás da pele negra, sabe?! E esse talvez seja o medo da branquitude aqui no nosso país. De perder o seu posto de ditador, de fascista, de mandão, ou até de negligente mesmo, de conformado, para ceder a um novo mundo, para ceder a novas ideias, para ceder a novas práticas. Então é assim que eu enxergo ser negro no Brasil.

É difícil, mas também revela um mundo de possibilidades, e talvez seja disso que as pessoas têm medo. Tem medo dessa mudança.

“Tem toda uma poesia por trás da pele negra”

Inclusive, Laura, na semana em que o mundo debate o racismo após o assassinato do George Floyd, aqui no Rio Grande do Norte um grupo de racistas tentou silenciar sua voz num debate viabilizado pela empresa júnior de Publicidade & Propaganda do Decom, da UFRN, a @59mil. Você contar pra gente o que aconteceu?

O movimento empresa júnior, as pessoas que o compõem, e eles mesmos reconhecem isso, conseguem ser privilegiados em alguns aspectos. E aí, a ideia da @59mil, que é uma empresa júnior de Publicidade & Propaganda, era trazer o diálogo para essas pessoas, dado também todo o contexto do George Floyd. A ideia era eu levar visões sobre o racismo estrutural, sobre necropolítica e como a gente a partir dali poderia pensar um novo futuro. Então era uma fala super interessante, para indicar e ajudar as pessoas a tentar reduzir as desigualdades.

E aí, esses ataques, pelo que andei pesquisando, já estão acontecendo há um tempo, mas aí, justamente pelo mês da visibilidade gay também, estavam acontecendo diversos ataques. Então essas pessoas já estavam se preparando para fazer esses ataques há um tempo na internet. Uma teoria minha, mas que ainda não está provada, a investigação ainda vai ser feita, mas que muito provavelmente tenha acontecido, é que estavam na internet pesquisando quais lives poderiam interromper, quais eram as menos seguras. E como nosso link era aberto, era uma chamada do Google Meets, então qualquer pessoa poderia entrar, inclusive tem uma das ferramentas do Meets que qualquer pessoa pode mutar (tirar o som do microfone) a outra. Como a gente estava entre os nossos, não havia necessidade de tirar essa opção, não havia necessidade de incluir nenhum tipo de ação de censura, nada disso. E aí, dado um certo momento, que eu passei a falar em privilégio, entrou uma enxurrada de pessoas, a maioria homens, e começaram a me mutar. Comecei a tentar resolver, achando que era uma ação involuntária. E eu comecei a argumentar: “gente, talvez sem querer vocês estão me mutando”. Poderia ser uma ação por quem não conhece a ferramenta, e eu tentei orientar. Agi com bem tranquilidade, fui super diplomática. De repente alguém começa a ler o texto que estava no slide. Achei estranho, olhei para minha colega Pietra, que estava me acompanhando, e falei: “oxe, por que esta pessoa está lendo se eu é quem estou apresentando?”. Mas agradeci ao Carlos – porque a pessoa estava identificada como professor Carlos: “ok, agora que você leu vamos dar continuidade”. Mas continuaram a me mutar quando tentava falar, a mim e todas as meninas da empresa @59mil. E aí foi quando começaram a colocar vídeos pornôs, áudios falando sobre macaco, e foi algo que realmente desmoralizou a gente. Na hora ficamos estáticas, até o momento de entendermos o que estava acontecendo, e cancelarmos a chamada.

Foi muito forte, talvez não nem para mim naquela hora, porque já passei por situações piores, mas para as pessoas que eram privilegiadas, passar por um momento como aquele foi chocante. Eu enxergo assim, foi um momento muito ruim, mas que estamos tirando muitos aprendizados. Talvez tenhamos que olhar para plataformas mais seguras, tomar medidas para que, algo que deveria ser público, deveria ser acessível a qualquer pessoa, precise ser mudado, com inscrição, senha. E já estamos vendo essas possibilidades para retomarmos com esse evento brevemente.

E só para fechar essa questão, até o dia, estava tudo bem, mas no outro dia, depois que eu consegui dormir, e eu nem consegui dormir direito, veio todo o sentimento do passado, tudo o que já escutei, sobre meu cabelo, sobre quem eu sou. Enfim, e eu fiquei acamada praticamente, deitada, chorando, sem conseguir falar direito com as pessoas. Mas num momento eu pensei: “eu e minha mãe lutamos tanto para eu estar aqui, para eu estar nesse espaço, falando sobre isso”. E é como se eu tivesse sido puxada para o meu passado, para um momento que não foi tão bom para mim. Mas aí vi que precisava criar forças, falar com as pessoas, chorar mesmo, e assim a gente vai recobrando as forças, vai tentando voltar ao normal.

Outro dia eu vi e ouvi na televisão o relato de uma jornalista negra que disse que aconselha o filho a não correr quando estiver na rua, com medo de que as pessoas ou até a polícia o confundam com um bandido. A população negra precisa ter um instinto de sobrevivência para andar na rua? Fala um pouco dessa sensação para a gente.

Dependendo de onde a gente é criado, a nossa própria família nos ensina esse instinto de sobrevivência. A gente vai crescendo e a nossa família, os nossos pais, nossos irmãos já vão tentando colocar a gente no “nosso lugar”, que é justamente esse lugar de subalternização, de obediência, de submissão. Então, se um branco chegar para mim e disser que eu não sou capaz de assumir um emprego, eu tenho que me conformar com isso, porque eu não posso questionar. Já é de grande feito eu estar naquele espaço, fazendo aquela entrevista, então não posso reclamar. E aí a culpa vem para mim, eu tenho que assumir que eu não fui boa, que eu não tenho conhecimento suficiente, e eu vou sair e volto para casa com o rabo entre as pernas.

Esse instinto de sobrevivência está na gente porque pessoas antes de nós já viveram isso e talvez de maneiras mais cruéis. Então isso é repassado para a gente. Quando a gente está na rua e a gente entende que se tem um carro da polícia não pode correr, porque podem pensar que a gente é criminoso, por exemplo. Esse é o entendimento e principalmente quando a gente olha, volta os olhos para as favelas, para as periferias. A polícia está lá toda hora. A polícia está lá invadindo as casas, tirando as pessoas dentro das suas casas, matando as pessoas, enfim, sem nem ver, com tiros para todo lado. E olhar para isso é entender que a gente não pode, a gente não consegue ter apoio da própria polícia.

A gente às vezes tem que se rebelar contra o sistema para poder sobreviver. Por eu estar num determinado lugar, numa certa hora, com determinada roupa. Uma mulher, por exemplo, ela vai se ela vai correr o risco de ser estuprada e se ela é negra tem mais chance ainda. E quando eu olho para o rapaz negro, coitado, deve estar lá para assaltar, deve estar lá para roubar o carro de alguém, e não necessariamente. As pessoas podem caminhar pela rua, as pessoas negras têm diversas histórias, e é disso que se trata aqui.

A história negra não gira em torno do crime, a história negra não gira em torno da luta e do sofrimento. Somos pessoas felizes, somos pessoas que temos orgulho de quem nós somos. Muitas vezes a gente se entristece com o que acontece, mas nós temos orgulho de quem nós somos. E é inevitável a gente ter esse instinto, o que a gente quer basicamente é viver, poder ser normal, é poder ser que nem qualquer outra pessoa no mundo.

Laura, a vida negada ao George Floyd representa a eliminação do povo negro. O policial branco norte-americano reafirma ali, quando ele pressiona com o próprio joelho o pescoço do ex-segurança contra o chão, que não há humanidade naquele corpo negro. É isso que significa aquele gesto. E ao não reconhecer o sofrimento, ele também não reconhece a dignidade da vida. A segurança pública é o símbolo mais forte do controle social direcionado ao povo negro? É assim que você vê?

Falando em violência policial, a polícia consegue ser o grande inimigo dos pretos, nas favelas, em qualquer lugar que seja, porque a polícia é o braço do Estado. A estrutura é racista desde muito tempo atrás. Exclui a gente, cria leis para nos tirar das ruas. A própria lei da vadiagem, que foi criada há um tempo atrás para expulsar os negros das ruas, porque os negros não tinham trabalho. Quando eles foram libertos eles não tinham onde trabalhar, eles foram simplesmente jogados nos cortiços e não tinham como voltar aos grandes centros para trabalhar por causa do racismo, enfim, e aí essa lei da vadiagem determinou justamente isso, que negros que estão na rua precisavam ser detidos, precisavam ser presos, precisavam ser tirados de lá, porque esses negros eles vão deixar a cidade mais feia, são pessoas miseráveis, com roupas horríveis, fedendo, morrendo de fome, pedindo esmola. Isso não é o que a gente quer ver todo dia. E realmente ninguém quer ver isso não, só que a maneira que a gente encontra para tirar essas pessoas é através da violência, através do cárcere. Não é à toa que no Brasil a maior população carcerária é negra. Nós não fomos incluídos da maneira adequada no processo de desenvolvimento do país. E por que? Por que nós não temos capacidade? Por que nós não buscamos nos formar? Pelo contrário, existem muitos negros que conseguiram se formar, que conseguiram montar empresas, que conseguiram montar instituições. Só que a gente não conhece. A própria história é racista. Ela não conta essa história. A gente não tem em quem se inspirar.  A gente tem pouca informação sobre essas pessoas.

“Somos pessoas felizes, somos pessoas que temos orgulho de quem nós somos”

O que você está falando só reforça que a segurança pública é de fato esse símbolo, braço armado desse Estado racista.

A polícia é sim o maior inimigo dessas pessoas, porque justamente representa a violência escancarada ali. É as mãos do Estado. E o Estado insiste em limpar, acabar com o crime, acabar com a irreverência, acabar com tudo aquilo que, de algum modo, desestabiliza o controle do estado. E isso, para mim, é muito triste, porque há uma falta de diálogo entre as partes. Um diálogo consistente, um diálogo de qualidade. Eu acho que é o momento que a gente está hoje, das manifestações, é o ideal para a gente dialogar. Para a gente dizer qual é a melhor maneira que a polícia poderia chegar nesses lugares para fazer o trabalho que deve ser feito. A gente não está sendo a favor do crime, a gente não está dizendo: “deixem os negros roubarem”, “deixem os negros usarem fuzil na favela”. Eu, Laura, não estou dizendo isso. Eu estou dizendo que um diálogo precisa ser travado para que a gente mude toda essa situação, para que a situação seja tratada de um outro modo.

“A polícia consegue ser o grande inimigo dos pretos, nas favelas, em qualquer lugar que seja, porque a polícia é o braço do Estado”

O ódio ao negro existe e circula desde sempre entre nós, de diversas maneiras. Aqui, no Brasil, e em qualquer lugar do mundo. Mas trazendo para nossa realidade, de que formas o racismo no Brasil se mostra mais difícil de ser combatido?

Quando eu olho para as manifestações, eu percebo que nos Estados Unidos os manifestos a favor de George Floyd, defendendo a vida dele, pedindo por justiça e paz, tem uma força maior, porque a gente percebe que os negros estão em mais número em cargos sistêmicos, em cargos importantes. E aí é essa diferença que eu vejo entre lá e aqui. Na prática é o mesmo racismo, por causa da memória cultural. E talvez essa seja a coisa mais difícil que a gente consiga mudar. A gente consegue incluir pessoas nas empresas, a gente consegue incluir pessoas na política, enfim, nos espaços decisórios, mas o mais difícil é mudar a memória das pessoas, é mudar o entendimento que elas têm quando veem uma pessoa negra. Uma pessoa negra não é uma pessoa para casar, é uma pessoa vista apenas sexualmente, como objeto sexual. A mulher negra, principalmente. Então, eu não me caso com pessoas negras, eu só contrato pessoas negras para cozinhar para mim e para limpar, eu não enxergo uma pessoa negra da minha empresa para gerenciar, por exemplo, eu não enxergo uma pessoa negra para assumir uma presidência de uma empresa e nem para assumir a presidência de um país. Isso precisa mudar. E aí os meios são vários, mas volta na reflexão da diferença entre o racismo lá nos Estados Unidos e o racismo aqui. O racismo é o mesmo, e a memória cultural é mesma. O que muda é que lá nos Estados Unidos os negros estão em maior número nesses cargos decisórios e aqui no Brasil não. Aqui no Brasil a gente está um processo mais lento de inclusão.

Como falei, a memória cultural é mais difícil de ser combatida, porque mesmo que a gente esteja nesses espaços, as pessoas vão olhar para a gente e dizer: “eu acho que esse espaço não é seu”, “eu acho que você não deveria estar aqui”. E a gente sente isso na pele. A gente sente como as nossas falas são entendidas, como as dúvidas que chegam até nós são dúvidas que talvez não contemple o nível de entendimento que a gente tem sobre a questão. A gente é colocado muitas vezes como: “você não sabe o que você está falando”, “é melhor você fazer outra coisa, porque você não entende isso”. Então é melhor você fazer qualquer outra coisa que não seja nesse espaço de decisão. Então o mais difícil de ser combatido é o emocional das pessoas, é o inconsciente das pessoas, é a memória das pessoas. Estruturalmente, praticamente, acho que a gente consegue mudar de maneira formal, de maneira simbólica, até, os espaços. Mas a memória das pessoas é que, realmente, a nível educacional, a nível teórico, vai ser algo bem mais lento.

A filhinha do George Floyd, de apenas 6 anos, disse que para ela o pai tinha mudado o mundo. Ela disse isso quando visitou o local onde o Floyd foi morto, e agora transformado em memorial. E pra você, Laura, o que essa frase diz? Qual o significado disso para você?

É uma mudança que não é impossível. Então, quando a filha do Floyd fala que o pai dela vai mudar o mundo, isso realmente é verdade, a gente realmente acredita nisso. Não só o Floyd, mas a própria Marielle. O que a memória da Marielle representa para a gente é justamente Isso. É uma possibilidade de mudança, uma possibilidade de um novo mundo. É exatamente o que quer dizer ser negro. É perceber que toda a história para a gente foi renegada, mas que a gente não tá pedindo vingança aqui. A população negra, o movimento negro não está pedindo vingança. E muita gente fala, a gente deveria pedir vingança. Mas a gente acredita num mundo melhor, a gente acredita num mundo mais amoroso. A gente acredita na evolução de toda essa discussão.

“O que muda é que lá nos Estados Unidos os negros estão em maior número nesses cargos decisórios e aqui no Brasil, não. Aqui no Brasil a gente está um processo mais lento de inclusão”.

Por que o debate sobre racismo tem sido ampliado? E de que forma essa discussão tem efeito no cotidiano da população negra? O que tem mudado em razão disso?

E porquê só agora essa discussão tomou essa amplitude, essa dimensão? Primeiro porque as pessoas estão isoladas, então elas estão tendo mais tempo para consumir informação. Muita gente está sem trabalhar, então está tendo tempo para ir para as manifestações, está tendo tempo para escrever textão, para fazer arte nas mídias. Está tendo tempo. As pessoas estão tendo tempo para refletir. A pandemia está dando oportunidade para a gente parar, olhar para o Brasil e dizer o covid ele vai matar, e a maioria dos mortos por covid vai ser preto. Porque a gente tem uma desigualdade no Brasil. E olhar para essa desigualdade e lutar, e tentar modificá-la. Então isso tem ganhado uma atitude justamente por isso. E aí a Grada kilomba ela traz uma evolução. Pessoas que têm privilégio estão começando a reconhecer o privilégio. Ela traz uns estágios desse privilégio, que é a negação. Algumas pessoas estão negando que não existe racismo, outras pessoas estão se culpando pelo que acontece e pelo o que aconteceu na história, então é uma outra fase. Depois eu sinto vergonha por isso ter acontecido. Eu me sinto envergonhado de falar sobre e me colocar. E aí depois eu reconheço, então finalmente eu aceito que eu sou branco, que eu tenho um privilégio, que não necessariamente ele deveria ser só meu. E aí eu parto para o último estágio, que é o da reparação. Eu me reconheço enquanto privilegiada, eu começo a agir quanto a isso. Se sou uma empresa, eu apoio causas pró diversidade, que é o próprio ID_BR, Educafro, Uniafro.  Tem iniciativas que a gente consegue apoiar que vai fazer uma enorme diferença para a população preta. Eu começo a incluir pessoas nos meus processos seletivos, eu começo a dar bolsa de estudo para pessoas pretas nas universidades, bolsas de mestrado, bolsa de doutorado, para eu começar a ver professores pretos nas universidades. Eu começo a dar voz a escritores pretos, a músicos pretos. E aí eu começo a ver músicos pretos lá na TV Globo, por exemplo. E esse é um processo realmente que deve ser feito, mas primeiro eu preciso olhar para mim e reconhecer o meu privilégio. Porque não basta eu sair atropelando tudo, atropelando os estágios, atropelando o momento de reflexão, o momento da pessoa branca de reflexão, e já ir fazendo as coisas nas coxas. Precisa se ter uma inflexão. Precisa parar, precisa se ouvir papos que nem esse, precisa ouvir programas de rádio, lives, estar em espaços que se discutem sobre isso.  E aí, sim, a gente vai conseguir fazer uma reparação adequada, uma reparação consciente. E fazer uma reparação consciente é muito importante, tanto para gente, quanto para quem está reavaliando os seus privilégios e ouvindo outras vozes.

“A população negra, o movimento negro não está pedindo vingança”

Que lição dá pra tirar desse momento todo, dessas manifestações, desses debates, enfim, de tudo isso?

Um momento como esse é para a gente parar, aproveitar a repercussão da discussão sobre racismo e refletir sobre o próprio privilégio. Buscar na história entender que tudo que foi construído não só quem quis. Quem quis é bem-sucedido, quem quis conseguiu posições posições de sucesso. Não é bem assim. O que a população negra pede é que tenham as mesmas oportunidades que as pessoas brancas. O que nós pedimos é estar nos mesmos cargos, é estar decidindo as mesmas coisas. Enquanto a gente está no dia a dia decidido o que comer, se quem vai comer sou eu ou a pessoa que está do meu lado, se é meu irmão, se é meu meu pai, minha mãe, eu quero está decidindo o futuro do país. Eu quero estar construindo leis, eu quero está decidindo o futuro de uma multinacional, por exemplo. Eu quero está decidindo outras coisas, e não se quem vai comer sou eu ou se é meu irmão, que eu não tenho o suficiente para comer. Esse é o momento para buscar lives, buscar livros, buscar teóricos e principalmente buscar iniciativas para que essas pessoas sejam incluídas nesses espaços.E aí, passar pelos estágios que a Grada Kilomba fala e finalmente a gente chegar na reparação. E falando em reparação, eu falo da importância da lei de cotas. A lei de cotas é uma ferramenta de reparação muito importante. E a gente já vê isso repercutindo na nossa sociedade. Eu tenho mais pessoas pretas formadas. Eu tenho mais pessoas pretas com possibilidade de se tornarem professores universitários. Eu tenho mais pessoas pretas especializadas dentro das empresas. Mas porque existiram oportunidades para as pessoas. A gente precisa dar cada vez mais oportunidades para incluir o máximo de pessoas. O objetivo no final das contas é acabar com o crime, que todo mundo tenha tanta oportunidade que não exista o crime. Não vale dizer: “é impossível que todo mundo tenha uma vida boa”. Não é impossível a gente conseguir incluir essas pessoas num processo mínimo, onde elas possam comer, onde elas possam estudar, onde elas possam ter uma dignidade. Aproveita esse movimento para buscar teóricos, buscar pessoas que conseguem ajudar você a refletir sobre esse privilégio e ajudar a população preta a entrarem nesses espaços.

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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