Por Jana Sá e Rafael Duarte
“Eu não consigo respirar” foi a última frase dita pelo ex-segurança George Floyde, nos EUA, antes de ser assassinado, asfixiado por um policial branco norte-americano. A execução de Floyde foi filmada e desencadeou uma série de protestos nos Estados Unidos e pelo mundo contra o racismo.
Já “vidas negras importam” é uma frase já bastante difundida pelo povo negro para mostrar que uma vida negra tem o mesmo valor e importância que a vida de qualquer pessoa, seja qual for a cor da pele dela.
Para falar sobre racismo estrutural na nossa sociedade, nós convidamos a estudante de Filosofia, gerente de comunidade e pesquisadora Laura Cavalcante que, essa semana, foi vítima de racismo e violência quando participava de um debate exatamente sobre racismo estrutural promovido pela empresa júnior de publicidade e propaganda do departamento de comunicação da UFRN.
O DECOM suspendeu a série de debates virtuais sobre diversidade e encaminhou a denúncia para o Ministério Público.
Você também pode ouvir essa entrevista no Saiba Mais Podcast ou acompanhar um bate-papo com a própria pesquisadora assistindo ao programa Contrafluxo que foi ao ar na sexta-feira (5).
Agência Saiba Mais: Laura, para a gente entender o racismo estrutural, as manifestações que vem acontecendo nos EUA e em diversos outros países após a morte do ex-segurança George Floyd, queria que você falasse sobre representatividade. Explica o que significa e como é ser mulher negra num dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, como o Brasil?
Laura Cavalcante: Ser negro no Brasil é ser marcado por uma diferença e é uma diferença caracterizada principalmente pela negligência. Então é olhar para a história da nossa própria pátria e perceber que nós somos largados, perceber que nós não fomos incluídos no processo de desenvolvimento do país, que a gente ficou para trás e que muitas vezes a gente precisa recorrer a diversos outros meios para poder ser incluído, para poder ser visto, e um desses meios é dá de cara com sistema, é bater de frente com sistema, para tentar fazer com que nos olhem, nos reconheçam e nos tirem dos troncos que outra hora a gente teve. Que pare de nos chicotear, que parem de nos criminalizar. Mas essa é a parte ruim.
Tem toda uma parte bonita que a gente poderia dizer, que eu posso falar aqui o que é ser negro. É saber que a gente possui uma ancestralidade muito bonita, que a gente carrega no nosso sangue, carrega na nossa cor, carrega nas nossas vivências uma possibilidade de mudar o mundo como ele é, traz uma possibilidade de sermos mais amorosos, de nós sermos mais inclusivos e nós sermos mais colaborativos. Então tem toda uma poesia por trás da pele negra, sabe?! E esse talvez seja o medo da branquitude aqui no nosso país. De perder o seu posto de ditador, de fascista, de mandão, ou até de negligente mesmo, de conformado, para ceder a um novo mundo, para ceder a novas ideias, para ceder a novas práticas. Então é assim que eu enxergo ser negro no Brasil.
É difícil, mas também revela um mundo de possibilidades, e talvez seja disso que as pessoas têm medo. Tem medo dessa mudança.
“Tem toda uma poesia por trás da pele negra”
Inclusive, Laura, na semana em que o mundo debate o racismo após o assassinato do George Floyd, aqui no Rio Grande do Norte um grupo de racistas tentou silenciar sua voz num debate viabilizado pela empresa júnior de Publicidade & Propaganda do Decom, da UFRN, a @59mil. Você contar pra gente o que aconteceu?
O movimento empresa júnior, as pessoas que o compõem, e eles mesmos reconhecem isso, conseguem ser privilegiados em alguns aspectos. E aí, a ideia da @59mil, que é uma empresa júnior de Publicidade & Propaganda, era trazer o diálogo para essas pessoas, dado também todo o contexto do George Floyd. A ideia era eu levar visões sobre o racismo estrutural, sobre necropolítica e como a gente a partir dali poderia pensar um novo futuro. Então era uma fala super interessante, para indicar e ajudar as pessoas a tentar reduzir as desigualdades.
E aí, esses ataques, pelo que andei pesquisando, já estão acontecendo há um tempo, mas aí, justamente pelo mês da visibilidade gay também, estavam acontecendo diversos ataques. Então essas pessoas já estavam se preparando para fazer esses ataques há um tempo na internet. Uma teoria minha, mas que ainda não está provada, a investigação ainda vai ser feita, mas que muito provavelmente tenha acontecido, é que estavam na internet pesquisando quais lives poderiam interromper, quais eram as menos seguras. E como nosso link era aberto, era uma chamada do Google Meets, então qualquer pessoa poderia entrar, inclusive tem uma das ferramentas do Meets que qualquer pessoa pode mutar (tirar o som do microfone) a outra. Como a gente estava entre os nossos, não havia necessidade de tirar essa opção, não havia necessidade de incluir nenhum tipo de ação de censura, nada disso. E aí, dado um certo momento, que eu passei a falar em privilégio, entrou uma enxurrada de pessoas, a maioria homens, e começaram a me mutar. Comecei a tentar resolver, achando que era uma ação involuntária. E eu comecei a argumentar: “gente, talvez sem querer vocês estão me mutando”. Poderia ser uma ação por quem não conhece a ferramenta, e eu tentei orientar. Agi com bem tranquilidade, fui super diplomática. De repente alguém começa a ler o texto que estava no slide. Achei estranho, olhei para minha colega Pietra, que estava me acompanhando, e falei: “oxe, por que esta pessoa está lendo se eu é quem estou apresentando?”. Mas agradeci ao Carlos – porque a pessoa estava identificada como professor Carlos: “ok, agora que você leu vamos dar continuidade”. Mas continuaram a me mutar quando tentava falar, a mim e todas as meninas da empresa @59mil. E aí foi quando começaram a colocar vídeos pornôs, áudios falando sobre macaco, e foi algo que realmente desmoralizou a gente. Na hora ficamos estáticas, até o momento de entendermos o que estava acontecendo, e cancelarmos a chamada.
Foi muito forte, talvez não nem para mim naquela hora, porque já passei por situações piores, mas para as pessoas que eram privilegiadas, passar por um momento como aquele foi chocante. Eu enxergo assim, foi um momento muito ruim, mas que estamos tirando muitos aprendizados. Talvez tenhamos que olhar para plataformas mais seguras, tomar medidas para que, algo que deveria ser público, deveria ser acessível a qualquer pessoa, precise ser mudado, com inscrição, senha. E já estamos vendo essas possibilidades para retomarmos com esse evento brevemente.
E só para fechar essa questão, até o dia, estava tudo bem, mas no outro dia, depois que eu consegui dormir, e eu nem consegui dormir direito, veio todo o sentimento do passado, tudo o que já escutei, sobre meu cabelo, sobre quem eu sou. Enfim, e eu fiquei acamada praticamente, deitada, chorando, sem conseguir falar direito com as pessoas. Mas num momento eu pensei: “eu e minha mãe lutamos tanto para eu estar aqui, para eu estar nesse espaço, falando sobre isso”. E é como se eu tivesse sido puxada para o meu passado, para um momento que não foi tão bom para mim. Mas aí vi que precisava criar forças, falar com as pessoas, chorar mesmo, e assim a gente vai recobrando as forças, vai tentando voltar ao normal.
Outro dia eu vi e ouvi na televisão o relato de uma jornalista negra que disse que aconselha o filho a não correr quando estiver na rua, com medo de que as pessoas ou até a polícia o confundam com um bandido. A população negra precisa ter um instinto de sobrevivência para andar na rua? Fala um pouco dessa sensação para a gente.
Dependendo de onde a gente é criado, a nossa própria família nos ensina esse instinto de sobrevivência. A gente vai crescendo e a nossa família, os nossos pais, nossos irmãos já vão tentando colocar a gente no “nosso lugar”, que é justamente esse lugar de subalternização, de obediência, de submissão. Então, se um branco chegar para mim e disser que eu não sou capaz de assumir um emprego, eu tenho que me conformar com isso, porque eu não posso questionar. Já é de grande feito eu estar naquele espaço, fazendo aquela entrevista, então não posso reclamar. E aí a culpa vem para mim, eu tenho que assumir que eu não fui boa, que eu não tenho conhecimento suficiente, e eu vou sair e volto para casa com o rabo entre as pernas.
Esse instinto de sobrevivência está na gente porque pessoas antes de nós já viveram isso e talvez de maneiras mais cruéis. Então isso é repassado para a gente. Quando a gente está na rua e a gente entende que se tem um carro da polícia não pode correr, porque podem pensar que a gente é criminoso, por exemplo. Esse é o entendimento e principalmente quando a gente olha, volta os olhos para as favelas, para as periferias. A polícia está lá toda hora. A polícia está lá invadindo as casas, tirando as pessoas dentro das suas casas, matando as pessoas, enfim, sem nem ver, com tiros para todo lado. E olhar para isso é entender que a gente não pode, a gente não consegue ter apoio da própria polícia.
A gente às vezes tem que se rebelar contra o sistema para poder sobreviver. Por eu estar num determinado lugar, numa certa hora, com determinada roupa. Uma mulher, por exemplo, ela vai se ela vai correr o risco de ser estuprada e se ela é negra tem mais chance ainda. E quando eu olho para o rapaz negro, coitado, deve estar lá para assaltar, deve estar lá para roubar o carro de alguém, e não necessariamente. As pessoas podem caminhar pela rua, as pessoas negras têm diversas histórias, e é disso que se trata aqui.
A história negra não gira em torno do crime, a história negra não gira em torno da luta e do sofrimento. Somos pessoas felizes, somos pessoas que temos orgulho de quem nós somos. Muitas vezes a gente se entristece com o que acontece, mas nós temos orgulho de quem nós somos. E é inevitável a gente ter esse instinto, o que a gente quer basicamente é viver, poder ser normal, é poder ser que nem qualquer outra pessoa no mundo.
Laura, a vida negada ao George Floyd representa a eliminação do povo negro. O policial branco norte-americano reafirma ali, quando ele pressiona com o próprio joelho o pescoço do ex-segurança contra o chão, que não há humanidade naquele corpo negro. É isso que significa aquele gesto. E ao não reconhecer o sofrimento, ele também não reconhece a dignidade da vida. A segurança pública é o símbolo mais forte do controle social direcionado ao povo negro? É assim que você vê?
Falando em violência policial, a polícia consegue ser o grande inimigo dos pretos, nas favelas, em qualquer lugar que seja, porque a polícia é o braço do Estado. A estrutura é racista desde muito tempo atrás. Exclui a gente, cria leis para nos tirar das ruas. A própria lei da vadiagem, que foi criada há um tempo atrás para expulsar os negros das ruas, porque os negros não tinham trabalho. Quando eles foram libertos eles não tinham onde trabalhar, eles foram simplesmente jogados nos cortiços e não tinham como voltar aos grandes centros para trabalhar por causa do racismo, enfim, e aí essa lei da vadiagem determinou justamente isso, que negros que estão na rua precisavam ser detidos, precisavam ser presos, precisavam ser tirados de lá, porque esses negros eles vão deixar a cidade mais feia, são pessoas miseráveis, com roupas horríveis, fedendo, morrendo de fome, pedindo esmola. Isso não é o que a gente quer ver todo dia. E realmente ninguém quer ver isso não, só que a maneira que a gente encontra para tirar essas pessoas é através da violência, através do cárcere. Não é à toa que no Brasil a maior população carcerária é negra. Nós não fomos incluídos da maneira adequada no processo de desenvolvimento do país. E por que? Por que nós não temos capacidade? Por que nós não buscamos nos formar? Pelo contrário, existem muitos negros que conseguiram se formar, que conseguiram montar empresas, que conseguiram montar instituições. Só que a gente não conhece. A própria história é racista. Ela não conta essa história. A gente não tem em quem se inspirar. A gente tem pouca informação sobre essas pessoas.
“Somos pessoas felizes, somos pessoas que temos orgulho de quem nós somos”
O que você está falando só reforça que a segurança pública é de fato esse símbolo, braço armado desse Estado racista.
A polícia é sim o maior inimigo dessas pessoas, porque justamente representa a violência escancarada ali. É as mãos do Estado. E o Estado insiste em limpar, acabar com o crime, acabar com a irreverência, acabar com tudo aquilo que, de algum modo, desestabiliza o controle do estado. E isso, para mim, é muito triste, porque há uma falta de diálogo entre as partes. Um diálogo consistente, um diálogo de qualidade. Eu acho que é o momento que a gente está hoje, das manifestações, é o ideal para a gente dialogar. Para a gente dizer qual é a melhor maneira que a polícia poderia chegar nesses lugares para fazer o trabalho que deve ser feito. A gente não está sendo a favor do crime, a gente não está dizendo: “deixem os negros roubarem”, “deixem os negros usarem fuzil na favela”. Eu, Laura, não estou dizendo isso. Eu estou dizendo que um diálogo precisa ser travado para que a gente mude toda essa situação, para que a situação seja tratada de um outro modo.
“A polícia consegue ser o grande inimigo dos pretos, nas favelas, em qualquer lugar que seja, porque a polícia é o braço do Estado”
O ódio ao negro existe e circula desde sempre entre nós, de diversas maneiras. Aqui, no Brasil, e em qualquer lugar do mundo. Mas trazendo para nossa realidade, de que formas o racismo no Brasil se mostra mais difícil de ser combatido?
Quando eu olho para as manifestações, eu percebo que nos Estados Unidos os manifestos a favor de George Floyd, defendendo a vida dele, pedindo por justiça e paz, tem uma força maior, porque a gente percebe que os negros estão em mais número em cargos sistêmicos, em cargos importantes. E aí é essa diferença que eu vejo entre lá e aqui. Na prática é o mesmo racismo, por causa da memória cultural. E talvez essa seja a coisa mais difícil que a gente consiga mudar. A gente consegue incluir pessoas nas empresas, a gente consegue incluir pessoas na política, enfim, nos espaços decisórios, mas o mais difícil é mudar a memória das pessoas, é mudar o entendimento que elas têm quando veem uma pessoa negra. Uma pessoa negra não é uma pessoa para casar, é uma pessoa vista apenas sexualmente, como objeto sexual. A mulher negra, principalmente. Então, eu não me caso com pessoas negras, eu só contrato pessoas negras para cozinhar para mim e para limpar, eu não enxergo uma pessoa negra da minha empresa para gerenciar, por exemplo, eu não enxergo uma pessoa negra para assumir uma presidência de uma empresa e nem para assumir a presidência de um país. Isso precisa mudar. E aí os meios são vários, mas volta na reflexão da diferença entre o racismo lá nos Estados Unidos e o racismo aqui. O racismo é o mesmo, e a memória cultural é mesma. O que muda é que lá nos Estados Unidos os negros estão em maior número nesses cargos decisórios e aqui no Brasil não. Aqui no Brasil a gente está um processo mais lento de inclusão.
Como falei, a memória cultural é mais difícil de ser combatida, porque mesmo que a gente esteja nesses espaços, as pessoas vão olhar para a gente e dizer: “eu acho que esse espaço não é seu”, “eu acho que você não deveria estar aqui”. E a gente sente isso na pele. A gente sente como as nossas falas são entendidas, como as dúvidas que chegam até nós são dúvidas que talvez não contemple o nível de entendimento que a gente tem sobre a questão. A gente é colocado muitas vezes como: “você não sabe o que você está falando”, “é melhor você fazer outra coisa, porque você não entende isso”. Então é melhor você fazer qualquer outra coisa que não seja nesse espaço de decisão. Então o mais difícil de ser combatido é o emocional das pessoas, é o inconsciente das pessoas, é a memória das pessoas. Estruturalmente, praticamente, acho que a gente consegue mudar de maneira formal, de maneira simbólica, até, os espaços. Mas a memória das pessoas é que, realmente, a nível educacional, a nível teórico, vai ser algo bem mais lento.
A filhinha do George Floyd, de apenas 6 anos, disse que para ela o pai tinha mudado o mundo. Ela disse isso quando visitou o local onde o Floyd foi morto, e agora transformado em memorial. E pra você, Laura, o que essa frase diz? Qual o significado disso para você?
É uma mudança que não é impossível. Então, quando a filha do Floyd fala que o pai dela vai mudar o mundo, isso realmente é verdade, a gente realmente acredita nisso. Não só o Floyd, mas a própria Marielle. O que a memória da Marielle representa para a gente é justamente Isso. É uma possibilidade de mudança, uma possibilidade de um novo mundo. É exatamente o que quer dizer ser negro. É perceber que toda a história para a gente foi renegada, mas que a gente não tá pedindo vingança aqui. A população negra, o movimento negro não está pedindo vingança. E muita gente fala, a gente deveria pedir vingança. Mas a gente acredita num mundo melhor, a gente acredita num mundo mais amoroso. A gente acredita na evolução de toda essa discussão.
“O que muda é que lá nos Estados Unidos os negros estão em maior número nesses cargos decisórios e aqui no Brasil, não. Aqui no Brasil a gente está um processo mais lento de inclusão”.
Por que o debate sobre racismo tem sido ampliado? E de que forma essa discussão tem efeito no cotidiano da população negra? O que tem mudado em razão disso?
E porquê só agora essa discussão tomou essa amplitude, essa dimensão? Primeiro porque as pessoas estão isoladas, então elas estão tendo mais tempo para consumir informação. Muita gente está sem trabalhar, então está tendo tempo para ir para as manifestações, está tendo tempo para escrever textão, para fazer arte nas mídias. Está tendo tempo. As pessoas estão tendo tempo para refletir. A pandemia está dando oportunidade para a gente parar, olhar para o Brasil e dizer o covid ele vai matar, e a maioria dos mortos por covid vai ser preto. Porque a gente tem uma desigualdade no Brasil. E olhar para essa desigualdade e lutar, e tentar modificá-la. Então isso tem ganhado uma atitude justamente por isso. E aí a Grada kilomba ela traz uma evolução. Pessoas que têm privilégio estão começando a reconhecer o privilégio. Ela traz uns estágios desse privilégio, que é a negação. Algumas pessoas estão negando que não existe racismo, outras pessoas estão se culpando pelo que acontece e pelo o que aconteceu na história, então é uma outra fase. Depois eu sinto vergonha por isso ter acontecido. Eu me sinto envergonhado de falar sobre e me colocar. E aí depois eu reconheço, então finalmente eu aceito que eu sou branco, que eu tenho um privilégio, que não necessariamente ele deveria ser só meu. E aí eu parto para o último estágio, que é o da reparação. Eu me reconheço enquanto privilegiada, eu começo a agir quanto a isso. Se sou uma empresa, eu apoio causas pró diversidade, que é o próprio ID_BR, Educafro, Uniafro. Tem iniciativas que a gente consegue apoiar que vai fazer uma enorme diferença para a população preta. Eu começo a incluir pessoas nos meus processos seletivos, eu começo a dar bolsa de estudo para pessoas pretas nas universidades, bolsas de mestrado, bolsa de doutorado, para eu começar a ver professores pretos nas universidades. Eu começo a dar voz a escritores pretos, a músicos pretos. E aí eu começo a ver músicos pretos lá na TV Globo, por exemplo. E esse é um processo realmente que deve ser feito, mas primeiro eu preciso olhar para mim e reconhecer o meu privilégio. Porque não basta eu sair atropelando tudo, atropelando os estágios, atropelando o momento de reflexão, o momento da pessoa branca de reflexão, e já ir fazendo as coisas nas coxas. Precisa se ter uma inflexão. Precisa parar, precisa se ouvir papos que nem esse, precisa ouvir programas de rádio, lives, estar em espaços que se discutem sobre isso. E aí, sim, a gente vai conseguir fazer uma reparação adequada, uma reparação consciente. E fazer uma reparação consciente é muito importante, tanto para gente, quanto para quem está reavaliando os seus privilégios e ouvindo outras vozes.
“A população negra, o movimento negro não está pedindo vingança”
Que lição dá pra tirar desse momento todo, dessas manifestações, desses debates, enfim, de tudo isso?
Um momento como esse é para a gente parar, aproveitar a repercussão da discussão sobre racismo e refletir sobre o próprio privilégio. Buscar na história entender que tudo que foi construído não só quem quis. Quem quis é bem-sucedido, quem quis conseguiu posições posições de sucesso. Não é bem assim. O que a população negra pede é que tenham as mesmas oportunidades que as pessoas brancas. O que nós pedimos é estar nos mesmos cargos, é estar decidindo as mesmas coisas. Enquanto a gente está no dia a dia decidido o que comer, se quem vai comer sou eu ou a pessoa que está do meu lado, se é meu irmão, se é meu meu pai, minha mãe, eu quero está decidindo o futuro do país. Eu quero estar construindo leis, eu quero está decidindo o futuro de uma multinacional, por exemplo. Eu quero está decidindo outras coisas, e não se quem vai comer sou eu ou se é meu irmão, que eu não tenho o suficiente para comer. Esse é o momento para buscar lives, buscar livros, buscar teóricos e principalmente buscar iniciativas para que essas pessoas sejam incluídas nesses espaços.E aí, passar pelos estágios que a Grada Kilomba fala e finalmente a gente chegar na reparação. E falando em reparação, eu falo da importância da lei de cotas. A lei de cotas é uma ferramenta de reparação muito importante. E a gente já vê isso repercutindo na nossa sociedade. Eu tenho mais pessoas pretas formadas. Eu tenho mais pessoas pretas com possibilidade de se tornarem professores universitários. Eu tenho mais pessoas pretas especializadas dentro das empresas. Mas porque existiram oportunidades para as pessoas. A gente precisa dar cada vez mais oportunidades para incluir o máximo de pessoas. O objetivo no final das contas é acabar com o crime, que todo mundo tenha tanta oportunidade que não exista o crime. Não vale dizer: “é impossível que todo mundo tenha uma vida boa”. Não é impossível a gente conseguir incluir essas pessoas num processo mínimo, onde elas possam comer, onde elas possam estudar, onde elas possam ter uma dignidade. Aproveita esse movimento para buscar teóricos, buscar pessoas que conseguem ajudar você a refletir sobre esse privilégio e ajudar a população preta a entrarem nesses espaços.
Uma resposta