PARÁBOLA KUIKURO

O ar está tão quente ao final do inverno no Xingu e o vento sopra forte todos os dias lambendo a grande aldeia com sua língua de poeira, terra vermelha levantada aos ares no centro da aldeia Ipatsé, do povo Kuikuro. Não fosse o barulho do vento e a visão da vida farta nas águas da lagoa próxima, local encantado em que me banho todas as manhãs, cercada por antigos buritis e campos de cerrado e pequenos nichos de floresta, meu sentimento seria de tristeza, pois a aldeia está em luto e grande silêncio se faz nesses dias na comunidade.

O luto é um período de vigília e evidente reclusão das atividades diárias de cada um, guardando toda comunidade da aldeia grande respeito pela família do ente e observando regras de conduta durante cinco dias, pela morte de um dos seus, aqui uma senhora, liderança entre os Kuikuro. A morte, as águas e o vento trazem mansidão  numa melodia de choro intenso e pontual durante tardes e noites, pois a morte é levada a suas últimas consequências e vivida como uma intensa performance de aflição em alguns momentos, e ao longo dos dias descreve um ritual complexo e paradoxal beleza, expurgando a tristeza das perdas envolta no falecimento inesperado. 

Em bela coincidência o vento se acalma ao fim do luto, quando se banham ao centro da aldeia todos os amigos do morto, já em paz em seu lugar.  A lua cheia segue brilhando durante as noites e a vida volta à normal diurna rotina dos trabalhos nas roças e afazeres nos lares . A alegria da criançada retorna intensamente e a criatividade entre burburinhos dos clãs vai ocupando as grandes casas da aldeia.

O real e a fantasia se mostram inseparáveis na vida indígena desses dias de intenso trabalho em equipe que integro para pesquisa-ação entre as comunidades Kuikuro. Amigos médicos e profissionais da saúde de programa de extensão universitária da Escola Paulista de Medicina/UNIFESP http://www.projetoxingu.unifesp.br/ trazem estudos, análises, diagnósticos e encaminhamentos aos pacientes da Unidade Básica de Saúde local.

Sem notícias do Brasil, o país se mostra plano aqui como nação interior, nossas vísceras, presente sobre a Terra Indígena do Xingu, avessa aos males que no país de esquizofrênicas notícias na política deixamos em breve fuga e imersão preventiva. Aqui a determinação e lua iluminam intensa rotina de atividades, pois os Kuikuro, além de nossa equipe, recebem também a Residência Artística http://www.peoplespalaceprojects.org.uk/pt/, projeto pioneiro desenvolvido por Takumã Kuikuro, brilhante e premiado cineasta da comunidade. A aldeia Ipatsé e sua etnia de vivas tradições culturais vai descobrindo e inovando caminhos para se lançar no Brasil e resiste ao abraço envolvente desse mundo de negócios e esgotamento na ocupação das terras de Mato Grosso pelo voraz agronegócio e novos hábitos de consumo e comportamento, agregando desafios à cultura e à saúde de múltiplas etnias locais.

 

Surpreendente tantos povos se imporem a tantas dificuldades e privações impostas pelas insanas agressões aos povos indígenas do Brasil; chega-nos a notícia, ao fim da viagem, da morte de dezenas de índios isolados no Amazonas.

Luto permanente vejo, vivem os povos indígenas no Brasil, persistente lamento. Mas resistem e renovam incompreendidos, acolhendo e ensinando a muitos, mostrando algo de limpo no país das malas de dinheiro desse momento. Morte vela sentinela é, tal uma letra de Milton Nascimento em suíte amazônica que grita na hora de unir os caminhos. Tudo inspira cuidados.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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