Em Março de 2015, já em resposta às manifestações contra seu governo, Dilma Rousseff apresentou um pacote de medidas de combate à corrupção que incluíam criminalização do caixa 2 e do enriquecimento ilícito, exigência de ficha limpa para todos os servidores públicos e confisco e alienação de bens oriundos de corrupção. O pacote teve pouca atenção da mídia e uma das primeiras atitudes do governo Temer foi retirá-lo do regime de urgência na tramitação, o que garantiria que ele seria votado no congresso, em favor das famigeradas 10 medidas protocoladas pelo Ministério Público Federal um ano depois, em Março de 2016.
Nesta semana tivemos no congresso nacional a apreciação e votação da proposta do MPF. O pacote que será encaminhado ao Senado contém, entre outros pontos, a criminalização do caixa 2, da compra e venda de votos e a transformação da corrupção em crime hediondo (algo que também foi proposto por Dilma Rousseff em 2013). Entre as medidas que foram rejeitadas pela câmara e não serão encaminhadas ao senado estão as que previam restrições ao habeas corpus, responsabilização de partidos e dirigentes por atos de filiados, a prática de simulações para testar a honestidade de servidores, a recompensa para delações, a previsão da realização de acordos de leniência pelo ministério público, a criminalização do enriquecimento não justificado e a facilitação na utilização de provas obtidas ilegalmente (mediante tortura, chantagem ou grave ameaça, por exemplo).
Não obstante a grande importância desses temas, o objeto de maior polêmica foi o acréscimo por parte da câmara de uma medida que previa responsabilidade a juízes e promotores em caso de abuso de autoridade. Tanto que o Senado Federal abriu uma sessão de debates que contou com a presença do juiz Sérgio Moro e do ministro do STF Gilmar Mendes. A fraca argumentação de Moro falhou em estabelecer que magistrados estariam acima da possibilidade de fiscalização ou que a Lava Jato carecia de autorizações especiais, leia-se passar por cima da constituição. O juiz chegou ao absurdo de fazer uma ameaça velada aos senadores, sugerindo que a população reprovaria a medida.
A proporção que a discussão desse ponto tomou chama atenção para o que está de fato em jogo: a disputa de força entre os poderes legislativo e o judiciário. Temos a instituição da presidência golpeada pelo impeachment, resultando num poder executivo enfraquecido cujo chefe de estado, o golpista Michel Temer, se fia no apoio do congresso, já que não tem nenhuma legitimidade popular. Some-se a isto a crescente judicialização da política e do processo legislativo que vivemos nos últimos anos – tivemos o caso recente da decisão do STF sobre o aborto, que o presidente da câmara Rodrigo Maia questionou, também em nome do cabo de força e não exatamente pelo mérito da questão -, com boa parte da imprensa alçando juízes à posição de heróis da nação, como se fez com Joaquim Barbosa e se faz agora com Sérgio Moro.
Com tudo isso, o que está em cheque é a ideia da separação dos poderes. A separação entre o executivo, legislativo e judiciário é fundamental para a manutenção de equilíbrio no Estado de Direito, com cada um atuando de forma autônoma e independente, mas com fiscalização mútua entre eles, evitando a concentração de poder. É o tripé que sustenta a democracia.
O judiciário aqui atua sequestrando o sentimento de rejeição à corrupção da população para reduzir suas legítimas restrições e tomar de assalto os outros poderes. Portanto, o pacote de medidas é perigoso, autoritário, e sua revisão pela câmara, por incrível que pareça, foi positiva. O combate à corrupção é sem dúvida importante e um dos grandes desafios da política brasileira e mundial, mas não se pode em seu nome subjugar os direitos humanos e a constituição, muito menos conferir poderes totalitários ao aparato repressivo do Estado, incluindo polícias, juízes e promotores. Isso já foi feito em regimes de força e nunca resultou melhoria da Democracia, senão em seu contrário.