Conecte-se conosco

Política

O ódio político está a expulsar brasileiros do seu país

Publicadoo

em

Por João Ruela Ribeiro, para Publico.pt . Foto de capa de Andreia Gomes Carvalho / PUBLICO

Elisangela Rocha abre a porta de sua casa, na Ameixoeira, com um sorriso e ostenta orgulhosa uma camisola em que se pode ler “Mulheres contra o fascismo”. No hall de entrada está pendurada uma bandeira com as cores do arco-íris, símbolo do movimento LGBTI+. Mais tarde irá confidenciar que usa aquela camisola durante a entrevista com o PÚBLICO propositadamente, por ser algo que não poderia fazer no Brasil, país onde vivia até há três meses.

Há cada vez mais brasileiros a abandonarem o seu país indicando razões políticas. Denunciam a instalação de uma “ditadura” alicerçada num ambiente de medo e insegurança instigado abertamente pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro. Os alvos são activistas de defesa dos direitos humanos, feministas, negros, homossexuais, índios, ou simplesmente quem defenda posições políticas que contrariem o Governo e os seus apoiantes – e isso pode significar apenas sair à rua com uma Tshirt vermelha, a cor do Partido dos Trabalhadores (PT).

Este tipo de imigração combina as causas tradicionais – como o estado da economia ou o aumento da violência urbana – mas é o ambiente político no Brasil o factor determinante para a decisão de sair do país. Por outro lado, a militância dos brasileiros tem-se intensificado fora de portas. Há pouco mais de um mês, a Mídia Ninja abriu uma casa em Lisboa, onde organiza debates, conferências, concertos e exibições de filmes. Este fimde-semana, Berlim recebe um encontro de organizações políticas de brasileiros no estrangeiro, que conta com a participação de alguns dos primeiros exilados políticos do Brasil de
Bolsonaro, como o ex-deputado Jean Willys ou a filósofa Márcia Tiburi.

 

A camisola proibida de Elisangela [A camisa da Marcha Mundial das Mulheres em destaque na foto]

Elisangela e o marido, Renato, recebem o PÚBLICO na sala de estar, mas cedo nos apercebemos de que este é território da filha de quatro anos, Clarice, que tem montado um pequeno espaço de pintura. Não tem sido fácil a adaptação da criança, que só pode frequentar o infantário a partir de Setembro e, por isso, quase não fez amigos. Mas foi a pensar nela que os pais resolveram deixar a vida que tinham no Paraná por um país onde não conheciam ninguém.

O Brasil tornou-se um país violento, especialmente para mulheres negras e das classes mais baixas, diz Renato, recordando que esse é o perfil da filha. “A Clarice adulta em Portugal ou noutro país europeu e a Clarice adulta no Brasil são duas pessoas diferentes. Uma vai ter
oportunidades um pouco melhores, no sentido de poder ser a pessoa que quiser; no Brasil terá muitos mais obstáculos”, explica o pai.

A família não planeia regressar brevemente. Renato diz que há uma “normalização da violência” no Brasil, depois de anos de intensa polarização política que só parece aumentar com Bolsonaro no poder. “Esse nível de normalização da violência vai demorar mais de uma geração para melhorar. O Brasil ainda vai piorar muito antes de melhorar”, diz o engenheiro informáticode 40 anos.

O casal esteve bastante reticente quanto a mudar-se para Portugal. Renato recusou duas propostas para vir trabalhar para empresas portuguesas, e só à terceira aceitou fazer uma entrevista, há cerca de um ano, ainda antes da eleição de Bolsonaro. “Sentimos que não dava mais. Eu já sentia que muitas pessoas próximas de nós estavam a ir nesse caminho da intolerância.” Veio sozinho inicialmente, e Elisangela resistiu ao máximo até o acompanhar. No início deste ano preparava-se para iniciar um pós doutoramento na Universidade Estadual do Oeste do Paraná e continuar a sua carreira académica.

Mas deparou-se com um “clima de pessimismo assustador” entre os colegas da academia. As universidades federais têm sido um dos alvos do Governo de Bolsonaro, que anunciou um corte no início do ano, aludindo a recursos mal gastos em “actividades com viés ideológico”. Elisangela ouvia relatos de bolsas congeladas, projectos recusados por não respeitarem certos critérios ideológicos e um ambiente de perseguição. Conta a história de uma professora que viu uma aula interrompida pela polícia, que a questionou por que razão estava a falar de Marx aos alunos.

A área de especialização de Elisangela é a Literatura Africana e também isso é problemático. “Trabalho com questões que foram escolhidas como foco de combate do Governo Bolsonaro, como a questão racial, ou a história e cultura afro-brasileira”, explica. É então que decide juntar-se ao marido em Portugal, sem saber se poderá continuar a sua carreira.

Apesar de concordar com Renato que muito dificilmente irá regressar ao seu país, a académica manifesta alguma esperança. “Gostaria muito de poder voltar a ser livre, ser uma professora que possa falar de preconceito, de feminismo, de me vestir nas aulas como quiser”,afirma.

 

O exílio repetido de Norma

Norma Marzola e o marido viram-se impedidos de dar aulas em universidades públicas pelo Governo e, por isso, foram obrigados a exilar-se em Portugal. Mas isto aconteceu nos anos 1970, quando o Brasil vivia sob uma ditadura militar que perseguia os seus adversários políticos. Mais de três décadas depois, Norma, hoje com 78 anos, voltou a Lisboa por razões muito idênticas.

Mora em Belém (Lisboa) com a prima, Lúcia Medeiros, de 66 anos, depois de há cerca de dois anos terem deixado Porto Alegre. Ambas são professoras universitárias reformadas e militantes do PT, e assim que começaram a estalar as investigações judiciais do Mensalão e da Lava-Jato, que tiveram o partido como alvo principal, pensaram em abandonar o país. Defendem que os casos de corrupção que levaram o ex Presidente Lula da Silva são apenas pretextos para tirar o PT do poder, a que juntam destituição (que qualificam como golpe) de Dilma Rousseff. E foi nesse momento que decidiram atravessar o Atlântico.

Para Norma, a situação era um déjà-vu. Entre 1974 e 1980 viveu em Lisboa, numa época em que centenas de exilados brasileiros convergiram em Portugal, que recentemente saíra de uma ditadura. Norma era militante do Partido Comunista Brasileiro, mas em Lisboa conheceu Leonel Brizola, um destacado líder da oposição à ditadura, e foi uma das subscritoras da “Carta de Lisboa”, o documento fundador do Partido Democrático Trabalhista (PDT), de cariz social-democrata, e apoiado por Mário Soares. Em 1980, Norma regressa ao Brasil e assiste à redemocratização do país, filia-se no PT e vê a esquerda no poder durante mais de uma década.

Desta vez, Norma e Lúcia não acreditam que venham a regressar. “O jeito de Bolsonaro deu aval para que as pessoas começassem a dizer o que antes não se permitiam dizer, voltar a pôr isso na caixa preta é muito difícil”, diz Lúcia. Deixaram de conseguir debater política, até mesmo com a família. Norma diz ter uma prima, uma irmã e um sobrinho com quem praticamente não consegue falar. “Eles são absolutamente intoleráveis, só me falam para dizer desaforos.

”As duas mantêm uma militância activa em Portugal. Participam nas acções do Coletivo Andorinha e do Núcleo do PT em Lisboa – depois de falarem com o PÚBLICO seguiram para uma manifestação na Praça Luís de Camões contra os cortes na educação no Brasil. Um dos objectivos é mostrar aos companheiros a milhares de quilómetros “que não estão sozinhos”, diz Lúcia. “Queremos chegar aos brasileiros no Brasil, e também aumentar o eco da ajuda internacional nesse momento de crise civilizacional”, explica.

Contam que já observaram reacções adversas da parte de brasileiros em Lisboa, e dão o exemplo de um homem que atirou cerveja sobre uma bandeira que levavam consigo durante uma manifestação. “É incrível o ódio e o fanatismo”, desabafa Norma.

Ambas dizem que o Brasil vive uma nova ditadura e não consideram abusivo comparar as duas épocas, embora notem “subtilezas”. “O dispositivo de repressão é fragmentado: os indígenas são destruídos como indígenas, os ‘sem terra’ são destruídos como ‘sem terra’. O Estado já não é aquela coisa monolítica que atravessa tudo”, afirma Lúcia.

Apesar da falta de esperança, garantem que nunca vão baixar os braços, mesmo tão longe. “Não cansa, mas fica-se triste, tu choras, deprimes”, diz Lúcia, sem esconder a emoção. “Há gente a morrer de fome, sem a menor necessidade, num país riquíssimo. Não dá para ter consciência disso e ficar a vaguear.”

 

Tales, um encrenqueiro do Whatsapp

Para Tales Duarte, morar fora do Brasil não é novidade. Já passou temporadas no México, de onde a mulher é natural, e em Itália. Mas nunca saiu do país com intenção de ficar tanto tempo como quando deixou Belo Horizonte em Setembro do ano passado. “O gatilho para sair foi a questão política”, diz o engenheiro informático, por telefone.

TFales está acostumado a viv oto er fora do Brasil, mas pela primeira vez está decidido a ficar mais tempo. Foto: Nuno Ferreira Santos

Saiu do país um pouco antes das eleições, quando já se desenhava a vantagem de Bolsonaro, mas disse a si próprio que se o candidato do PT, Fernando Haddad, vencesse, iria regressar. Não foi o que aconteceu, e desde então Tales vive em Lisboa, onde a mulher e o filho de quatro anos chegaram quatro meses depois.

O seu principal receio era vir a “sofrer alguma retaliação” por causa da sua actividade política nas redes sociais, onde partilha frequentemente publicações de esquerda e contra Bolsonaro. Para além disso, antecipou que o ambiente social se iria tornar ainda mais tóxico após as eleições.

Na sua nova vida, Tales está a começar a envolver-se com organizações com a Mídia Ninja e nota que Lisboa se está a tornar “num núcleo de resistência”. “Se as pessoas no Brasil virem que há um grupo questionando com uma visão mais limpa, tendo outras experiências, conhecendo outro país, e mostrando que o Brasil está a passar por um regime ditatorial, isso irá inspirar muita gente a tomar atitudes lá”, espera o informático de 42 anos.

Tales diz que é conhecido por “criar problemas” nos grupos de Whatsapp onde está inserido. O meio corporativo onde se move é composto maioritariamente por “coxinhas”, a classe alta e conservadora que sempre olhou com desconfiança para o PT. Na empresa onde trabalha, Tales diz que existem outros 15 brasileiros e praticamente todos são apoiantes de Bolsonaro. Acabou por ser excluído do grupo de Whatsapp que os reunia. O brasileiro admite que existe algum conflito entre os colegas de trabalho, mostrando que as ondas de choque da polarização que domina o Brasil se fazem sentir bem longe. “Se eu sei que ele apoia o Bolsonaro, não vou marcar uma cerveja à noite. Eu deixo bem claro para evitar que eles se confundam”, explica.

 

A angústia de Samara

Muitas vezes, os encontros entre brasileiros que partilham a mesma visão sobre a política são encarados como uma espécie de terapia. Ao stress do eterno confronto, por vezes violento, em que a política brasileira se transformou, juntase a angústia de estar num país diferente, muitas vezes sem conhecer mais ninguém. Foi o que aconteceu a Samara Azevedo, de 32 anos, que há dois anos ajudou a fundar o Coletivo Andorinha, um grupo que tem organizado várias acções de rua que marcam acontecimentos relevantes no Brasil.

Os primeiros actos serviram para defender o Governo de Dilma Rousseff, numa altura em que as movimentações para a sua destituição já estavam a todo o vapor. Samara não gostava da ideia generalizada de que Dilma estava sem apoio popular e, por isso, quis apresentar uma “contra narrativa”. “Surgiu a necessidade de dizer aos portugueses que os media não eram um desses apoios e, por isso, não contavam essa parte da história”.

A natureza do grupo foi evoluindo conforme os desenvolvimentos políticos no Brasil e se inicialmente era composto quase apenas por estudantes, hoje já tem um segmento importante de trabalhadores. Para além de marcar a agenda contestatária brasileira, como as grandes manifestações do “Ele Não” durante a campanha, o Coletivo Andorinha também começou a servir para que se discutam temas como as condições da imigração brasileira em Portugal e o discurso colonialista português, “que ainda é muito antiquado”, observa Samara, actualmente a tirar um doutoramento na Faculdade de Belas Artes.

Samara está a tirar um doutoramento na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa. Foto: Nuno Ferreira

Angústia é a palavra que escolhe para definir o sentimento que dominava os primeiros tempos do Coletivo Andorinha. “Depois de algum tempo, conseguimos trabalhar essa angústia e transformá-la em acção efectiva”, conta.

Uma forma mais tradicional de militância é feita pelo Núcleo do PT em Lisboa – a única representação de um partido brasileiro em Portugal – fundado em 1993. Actualmente tem 70 militantes inscritos, embora apenas entre 15 a 20 sejam activos, diz Evonês Santos.

A coordenadora diz conhecer vários casos de “petistas” que chegam a Portugal por serem perseguidos no Brasil, mas acabam por não integrar de imediato o núcleo. “Penso que já vêm com um cansaço tão grande da perseguição, de não ter liberdade, que preferem ter um tempo de férias de militância”, observa.

Gabriela faz as malas

Gabriela Moreno, de 36 anos, está prestes a engrossar as fileiras destes auto exilados do Brasil contemporâneo. Deverá aterrar em Portugal no próximo mês de Setembro para frequentar o doutoramento em Políticas Públicas na Universidade de Aveiro. Foi a forma que encontrou para se manter próxima da sua área profissional, depois de ter trabalhado vários anos para a autarquia do Rio de Janeiro.

Recentemente viu as portas da sua área serem fechadas. Diz ter algumas “suspeitas” em relação ao processo do seu afastamento da Câmara Municipal do Rio, uma vez que nunca lhe deram explicações. Diz que até este ano continuou a receber propostas de
trabalho para órgãos públicos, incluindo em Brasília num dos ministérios do Governo de Michel Temer. Este ano ficou a saber de outro lugar num ministério para o qual o seu perfil era adequado, mas disseram-lhe que não valia a pena candidatar-se, já que “não passaria na peneira ideológica”, conta.

Sob pretexto de estar a acabar com o “aparelhamento” do Estado feito pelo PT, o Governo de Bolsonaro tem afastado quadros técnicos em vários organismos e ministérios, quase sem olhar a critérios como a competência ou a experiência. No caso de Gabriela, a sua militância no movimento negro e feminista terão prejudicado a continuação da sua carreira.

A consultora também refere a intensificação do clima de insegurança no Rio de Janeiro, que atribui à onda conservadora que pôs Bolsonaro em Brasília e Wilson Witzel, um juiz que defende execuções extrajudiciais para combater o crime, como governador do estado. “Existe um discurso de exaltação à violência e, principalmente, do uso de armas hoje no Brasil. Qualquer briga de trânsito hoje vem acompanhada da ameaça de que um dos envolvidos poderá estar armado”, explica Gabriela.

Continue Lendo
Click para comentar

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

Publicadoo

em

Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

Continue Lendo

#EleNão

EDITORIAL – HOJE É DIA DE LUTO! PERDEMOS O MENINO GABRIEL

Publicadoo

em

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.

Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…

O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus

Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.

Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.

Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.

Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.

Obrigada, querido companheiro!

Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.

 

 

Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres

 

Grande personagem da nossa história: Gabriel, um brasileiro

 

 

 

 

Continue Lendo

Golpe

Presidência cavalga para fora dos marcos do Estado de Direito

Publicadoo

em

Por Ruy Samuel Espíndola*

O Governo, num Estado de Direito, deve ser eleito, e, depois de empossado, deve ser exercido de acordo com regras pré-estabelecidas na Constituição. Essas são as regras do jogo, tanto para a tomada do poder, quanto para o seu exercício, como ensina Norberto Bobbio. Governo entendido aqui como o conjunto das instituições eletivas, representadas por seus agentes políticos eleitos pelo voto popular. Governo que, numa República Federativa e Presidencialista como a brasileira, é exercido no plano da União Federal, pela chefia do Executivo, pela Presidência da República e seus ministros, como protagonistas e pelo Congresso Nacional, com os deputados federais e senadores, como coadjuvantes.

Ao Governo, exercente máximo da política, devem ser feitas algumas perguntas, para saber de sua legitimidade segundo o direito vigente: quem pode exercê-lo e com quais procedimentos? Ao se responder a tais questões, desvela-se o mote que intitula este breve ensaio.

Assim, pode-se dizer “Governo constitucional” aquele eleito segundo as regras estabelecidas na Constituição: partido regularmente registrado, que, em convenção, escolheu candidato, que, por sua vez, submetido ao crivo do sufrágio popular, logrou êxito eleitoral. Sufrágio que culminou após livre processo eleitoral, no qual se assegurou, em igualdade de condições, propaganda eleitoral e manejo de recursos para a promoção da candidatura e de suas bandeiras, e que não sofreu, ao longo da disputa, nenhum impedimento ou sanção do órgão executor e fiscalizador do processo eleitoral: a justiça eleitoral. Justiça que, através do diploma, habilita, legalmente, o candidato escolhido nas urnas, a se investir de mandato e exercê-lo. Um governo constitucional, assim compreendido, merece tal adjetivação jurídico-politica, ainda que durante o período de campanha ou antes ou depois dele, o candidato e futuro governante questione o processo de escolha, coloque em dúvida sua idoneidade, ou mesmo diga que não estará disposto a aceitar outro resultado eleitoral que não o de sua vitória, ou, após conhecer o resultado da eleição, diga que o conjunto de seus adversários podem mudar para outros países, pois não terão vez em nossa Pátria e irão para a “ponta da praia” .

O Governo constitucional, sob o prisma de seu exercício, após empossado, é aquele que respeita a mínimas formas constitucionais, enceta suas políticas mediante os instrumentos estabelecidos na Constituição: sanciona e publica leis que antes foram deliberadas congressualmente; dá posse a altas autoridades que foram sabatinadas pelas casas do congresso; não usa de sua força, de suas armas, a não ser de modo legítimo, respeitando a oposição, as minorias e os direitos fundamentais das pessoas e de entes coletivos; administra os bens públicos e arrecada recursos públicos de acordo com a lei pré-estabelecida, sem confisco e de modo impessoal; acata as prerrogativas do Judiciário e do Legislativo, ainda que discorde ou se desconforte com suas decisões; prestigia as competências federativas, tanto legislativas, quanto administrativas, etc, etc. Promove a unidade nacional, em atitudes, declarações públicas e políticas concretamente voltadas a tal fim.

O “Governo constitucionalista”, por sua vez, além de ascender ao poder e exercê-lo, tendo em conta regras constitucionais, como faz um governo constitucional, defende o projeto constitucional de Estado e Sociedade, através do respeito amplo, dialógico e progressivo do projeto constituinte assentado na Constituição. Respeita a história política que culminou no processo reconstituinte e procura realizá-lo de acordo com as forças políticas e morais de seu tempo, unindo-as, ainda que no dissenso, através da busca de consensos mínimos no que toca ao projeto democrático e civilizatório em constante construção sempre inacabada. E governo constitucionalista, no Brasil, hoje, para merecer esse elevado grau de significação político-democrática e civilizatória, precisa respeitar a gama de tarefas e missões constitucionais descritas em inúmeras normas constitucionais que tutelam, entre outros grupos sociais, os índios, os negros, os LGBT, os ateus, os de inclinação política ideológica à esquerda, ou a à direita, ou ao centro, sem criminalização ou marginalização no discurso público de quaisquer tendências ideológicas. É preciso o respeito ao pluralismo político e aos princípios de uma democracia com níveis de democraticidade que não se restringem ao campo majoritário das escolhas políticas, mas, antes, se espraiam para as suas dimensões culturais, sociais, econômicas, sanitárias, antropológicas e sexuais etc, etc.

Governos que ascenderam sem respeito a normas constitucionais, como foi o de Getúlio Vargas em 1930 e o que depôs João Goulart em 1964, são inconstitucionais. E governo que se exerce fechando o congresso e demitindo ministros do STF, como se fez em 1969, com a aposentação compulsória dos ministros da Corte Suprema Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, são governos inconstitucionais, arbitrários, autocráticos, fora do projeto civilizatório e democrático de 1988.

O ponto crítico de nosso ensaio é que um governo pode ascender de modo constitucional, mas passar a ser exercido de modo inconstitucional e/ou de modo inconstitucionalista. O governo do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, é um exemplo deste último e exótico tipo: consegue ser inconstitucional e inconstitucionalista no seu exercício, embora investido de maneira constitucional.

E o conjunto de declarações da reunião ministerial de 22/4, dadas a conhecer em 22/5, é um exemplo recente a elucidar nossa asserção: na fala presidencial, a violação ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CF) ressoa quando afirma que deseja agir para que familiares seus e amigos não sejam prejudicados pela ação investigativa de órgãos de segurança (polícia federal). Na fala do ministro da Educação, quando afirma “que odeia” a expressão “povos indígenas” e os “privilégios” garantidos a esses no texto constitucional, o que indica contrariar o constitucionalismo positivado nos signos linguístico-normativos “população”, “terras”, “direitos”, “língua”, “grupos” e “comunidades indígenas”, constantes nos artigos 22, XIV, 49, XVI, 109, XI, 129, V, 176, § 1º, 215, § 1º, 231, 232 da CF e 67 do ADCT. Essa fala ministerial, aliás, ressoa discurso de campanha de 2018, quando o então candidato disse, no clube israelita de São Paulo: “No meu governo, não demarcarei nenhum milímetro de terras para indígenas. Também há inconstitucionalismo evidente na fala do Ministro do Meio Ambiente quando defendeu que se fizessem “reformas infralegais” “de baciada”, “para passar a boiada”, “de porteira aberta”, no momento em que o País passa pela pandemia de covid-19, pois o foco de vigília crítica da imprensa não seria o tema ambiental, mas o sanitário e pandêmico, o que facilitaria os intentos inconstitucionalistas contra a matéria positivada nos arts. 23, VI, 24, VI e VII, 170, VI, 174, § 3º, 186, II, 200, VII, 225 e §§ da CF.

Outras falas e atitudes presidenciais ainda mais recentes, e de membros do governo, contrastam com as normas definidoras da separação de poderes, da federação e da democracia, princípios fundamentais estruturantes de nossa comunidade política naciona. A nota do general Augusto Heleno, chefe do GSI, ao dizer que eventual requisição judicial do celular presidencial pelo STF, levaria à instabilidade institucional, traz desarmonia e agride ao artigo 2º, caput, da Constituição Federal. “Chega, não teremos mais um dia como hoje” e “Decisões judiciais absurdas não se cumprem”. Essas falas presidenciais, após o cumprimento de mandados judiciais no âmbito do inquérito judicial do STF, ordenados pelo Ministro Alexandre Moraes, agridem o mesmo dispositivo constitucional, com o agravante do artigo 85, II e VIII, da CF, que positiva ser crime de responsabilidade do presidente atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário. E o atentado contra a democracia poderia ser também destacado na fala do filho do Presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro, que declarou estarmos próximos de uma ruptura e que seu pai seria chamado, com razão, de ditador, a depender das atividades investigativas do judiciário, tomadas como agressões ao governo de seu genitor. E o atentado contra a federação se evidencia nas falas presidenciais contra os governadores e prefeitos que estão a tomar medidas sanitárias no combate a covid-19, em que o presidente objetiva desacreditá-los e incitar suas populações contra esses chefes dos executivos estaduais e municipais, para que rompam o isolamento social, com agressão patente aos artigos 1º e 85, II, da Constituição. Os ataques diários aos órgãos de imprensa e a jornalistas, assim como sua atitude contra indagações de repórteres, também afrontam o texto da constituição da República: 5º, IX e XIV, 220 §§ 1º e 2º, protegidos pelo art. 85, III, da CF.

Em nossa análise temporalmente situada e teoricamente atenta, o conjunto de declarações públicas conhecidas do então deputado federal Jair Bolsonaro, desde seu primeiro mandato parlamentar, alcançado em 1990, portanto após o marco constitucional de 1988, embora constituam falas inconstitucionais e inconstitucionalistas, não servem para descaracterizar a “constitucionalidade” de sua eleição em 2018. Embora ainda reste, junto ao TSE, o julgamento de ação de investigação judicial eleitoral por abuso dos meios de comunicação social, que poderão ganhar novos elementos de instrução resultantes da CPI no Congresso sobre fake news e do inquérito judicial do STF com objeto semelhante. Sua eleição presidencial se mantém válida, assim como sua posse, enquanto essa ação eleitoral não for julgada definitivamente  pela Suprema Corte eleitoral brasileira.

Algumas de suas falas públicas inconstitucionalistas e inconstitucionais pré-presidenciais devem ser lembradas: “Erro da ditadura foi torturar e não matar”; “O Brasil só vai mudar quando tivermos uma guerra civil, quando matarmos uns trinta mil, não importa se morrerem alguns inocentes”; “Os tanques e o exército devem voltar às ruas e fechar o congresso nacional”, etc. E durante o processo eleitoral de 2018, falas inconstitucionalistas também foram proferidas: “No meu governo, não demarcarei um milímetro de terras para indígenas”. “O Brasil não tem qualquer dívida com os descendentes de escravos. Nossa geração não tem culpa disso, mesmo porque os próprios negros, na África, escravizavam a si mesmos”, entre outras.

A resposta a nossa indagação: embora tenhamos um governo eleito de modo constitucional – até decisão final do TSE -, ele está sendo exercido de modo inconstitucional e de modo inconstitucionalista. A Presidência da República atual, caminha, inconstitucionalmente para fora do marco do Estado de Direito. E o passado pré-presidencial do presidente da República demonstra que o seu inconstitucionalismo governamental não é episódico e sim coerente com toda a sua linha de pensamento e ação desde seu primeiro mandato parlamentar federal.

  • Advogado – mestre em Direito UFSC Professor de Direito Constitucional – Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Membro Consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. 

Continue Lendo

Trending