O Hamas e o futuro da Palestina
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Por Sayid Marcos Tenório*, publicado originalmente no Portal Vermelho,
Muito tem se falado sobre Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas. O partido palestino é assunto constante em muitos noticiários em virtude de suas ações de resistência contra a ocupação israelense, principalmente em Gaza, onde se localiza a sua maior base social e o seu comando político e militar. EUA, Israel e outros países o declaram como organização terrorista que ameaça a existência de Israel. Países como a Rússia, África do Sul, Noruega, Irã e o Brasil não consideram o Hamas como organização terrorista, mas um legítimo movimento de resistência palestino.
Qualquer um de nós que der um “Google” buscando pela palavra “Hamas”, receberá uma infinidade de links dando conta de supostas ações terroristas, ataques com mísseis caseiros disparados de escolas contra cidades israelenses, homens e mulheres bombas, pipas incendiárias, crianças servindo de escudo humano e uma série de outras fantasias disseminadas principalmente por fontes israelenses e de organizações judaicas espalhadas pelo mundo afora.
Mas… o que é mesmo o Hamas? Diferentemente do que imaginamos no Ocidente, o Hamas não é um “grupo terrorista” cujo objetivo tem sido o de atacar Israel sem propósito, a dita “única democracia do Oriente Médio”. A verdade é que se trata de um partido político legalmente constituído e em franca ascensão nos territórios palestinos ocupados, um movimento nacional palestino, de orientação islâmica, de libertação e resistência, que representa uma das principais forças do nacionalismo islâmico na Palestina.
Fundado em 1987, no início da Primeira Intifada (revolta palestina), é hoje o maior dos vários grupos e partidos palestinos, com uma base social muito forte nos territórios palestinos de Gaza e da Cisjordânia. Sua meta é “libertar a Palestina e confrontar o projeto sionista”, conforme anunciado no recente “Documento de princípios gerais e políticas”, aprovado em maio de 2017.
O movimento é reconhecido por muitos como uma força popular e sociopolítica profundamente enraizada na sociedade palestina, que tem conseguido realizar um amplo trabalho, tanto em relação ao confronto militar contra a ocupação sionista, quanto aos trabalhos sociais voltados para as camadas mais desfavorecidas, através da assistência social, mobilização religiosa e ideológica e mantido relações com Estados, partidos e movimento em todo o mundo.
O Hamas surgiu com força perante o olhar do ocidente, após o resultado das eleições para o Conselho Legislativo Palestino, realizadas em 25 de janeiro 2006. O resultado foi surpreendente, tendo o Hamas eleito 76 dos 132 deputados, enquanto que o seu maior rival, o Fatah, conseguiu 43 cadeiras. A pergunta imediata foi: como o Hamas conseguiu vencer as eleições na Palestina, sedo um movimento quase proscrito? A vitória do Hamas foi resultante da sua oposição aos processos de Oslo, e as divisões internas no Fatah, conduziram à vitória eleitoral em 2006. Essa vitória eleitoral nunca foi reconhecida pelas potências ocidentais, tendo a Faixa de Gaza sido sitiada e transformada na maior prisão a céu aberto do mundo.
Durante o processo eleitoral palestino, o Movimento lançou uma “Plataforma eleitoral por mudanças e reforma”, onde a questão da resistência militar ficou relegada a um plano secundário, abordando a questão numa linguagem mais sutil do que a linguagem empregada nas plataformas anteriores. Assim, a formulação de “destruição de Israel” – slogan fartamente utilizado pela mídia ocidental para demonizar o Hamas – deu lugar a expressão “término da ocupação”, que dominou toda a Plataforma.
A Plataforma se baseava na ideia de um programa abrangente para a libertação da Palestina, o retorno do povo palestino às suas terras e o estabelecimento de um Estado palestino independente com Jerusalém como sua capital, numa clara rejeição aos Acordos, mesmo sabendo que este tema seria pouco convincente para muitos palestinos, uma vez que a existência do Conselho Legislativo é inseparável dos Acordos de Oslo.
Esse foi um tema que teve forte repercussão nos debates eleitorais e que provocou uma elevação do tom contra o al-Fatah, com o Hamas afirmando que sua participação no Conselho Legislativo seria parte do seu “programa de resistência” e que a realidades mostrava que Oslo era questão sem cumprimento por parte de Israel, letra morta num papel que era usada contra os palestinos.
O Hamas acusava a OLP de ter se transformado de um movimento para a libertação da Palestina, num garantidor indireto da segurança de Israel nos territórios ocupados, com a função de anular qualquer forma de resistência à ocupação. Um instrumento utilizado por Yasser Arafat e seus aliados para garantir sua permanência no poder da ANP como único representante dos palestinos. Por outro lado, reclamava de que as negociações de paz de Oslo tinham servido apenas aos interesses das lideranças da OLP, que deixaram o exílio para assumir o controle político da palestina.
Havia, naquele momento, uma inquietude e uma desconfiança em relação ao papel da ANP pós os Acordos de Oslo, onde o Hamas acusava a ANP de ser preposto de Israel na Palestina. E apontava como evidência o fato de a ANP estar concentrando seus esforços e os recursos financeiros nos programas de cooperação em segurança com Israel, enquanto que o bem-estar da população ficava em segundo plano. Dizia ainda, que a cooperação em segurança entre ANP e Israel, visava coibir e entrincheirar os movimentos palestinos e a atuação dos grupos de oposição que representassem ameaça a Israel.
Hoje em dia, passados 25 anos desde a assinatura dos Acordos de Oslo, o entendimento do Hamas é que aqueles Acordos puseram na mesa objetivos contraditórios e sabidos de difícil aplicação, uma vez que a OLP declarava a busca pelo fim do colonialismo israelense, enquanto que o Estado de Israel tinha como objetivo criar um sistema de controle indireto sobre os territórios ocupados em 1967.
Os objetivos dos Acordos jamais se concretizaram, deixando em aberto até hoje questões listadas na “Declaração de Princípios”, como o status de Jerusalém, a questão dos refugiados, os assentamentos judaicos em território palestino, a questão da segurança e das fronteiras, as relações e cooperação com os vizinhos e outras questões referentes a problemas de interesse comum.
O escritor Edward Said, em seu livro A Pena e a Espada (2012) narra sua decepção com os resultados daqueles acordos, dizendo ter “uma convicção muito forte, depois do acordo de Oslo, de que a discrepância entre aquele maldito pedaço de papel e a enorme história de expropriação, sofrimento e perda que constituem a verdadeira história palestina é tão grande, mas tão grande, que deve ser contada. Ela tem que ser narrada. Não pode simplesmente desaparecer. ”
O processo de paz que esperava-se existir após os Acordo de Oslo não representou os diversos setores políticos palestinos e nem israelenses. Eles foram combatidos pela esquerda palestina, sobretudo pela Frente Popular de Libertação Nacional (FPLN) e pela Frente Democrática de Libertação Nacional (FDLN). E também pelos movimentos de orientação islâmica, como Hamas e a Jihad Islâmica.
Embora fosse sabido os acordos não resultariam na criação de um estado palestino, mas apenas sobre a representação dos residentes nos territórios ocupados, setores da extrema direita israelense também demonstraram seu descontentamento e se opuseram fortemente aos acordos de paz com palestinos. Queriam (e continuam querendo) todo o território e nenhuma concessão a palestinos. O premiê sionista que negociou os acordos, Yitzhak Rabin, foi assassinado por um extremista em 04 de novembro de 1995.
Quando foram assinados os Acordos de Oslo, em 1993, havia 260.000 colonos judeus na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Hoje, esse número subiu para mais de 600.000, evidenciando o desprezo do Israel para com os Acordos e seu interesse pela Paz. Além da evidente violação do Artigo 49 da IV Convenção de Genebra, de 1949, que proíbe claramente os países de mover populações para territórios ocupados em guerra. Com isso, Israel demonstra mais uma vez o seu desrespeito pela lei internacional e os direitos humanos, através do descumprimento dos Acordos de Oslo.
Nas eleições de 2006, o Movimento declarou ser necessário e urgente a adoção de um compromisso mais abrangente da luta contra a ocupação, que se daria por meio de uma mudança e reforma que seriam empreendidas para que se construísse “uma sociedade civil palestina avançada, baseada no pluralismo político e na alternância do poder.” Declarou também que “o sistema político da sociedade palestina e sua agenda reformadora e política, seriam orientadas na direção do cumprimento dos direitos nacionais palestinos.”
Essa proposta era uma crítica dirigida ao monopólio do poder por parte da OLP, que havia negligenciado em promover a unidade e disciplina no cenário político palestino, já que se encontrava no poder desde a década 1960 e nunca havia incluído em sua pauta a possibilidade de que outras forças políticas palestinas e da resistência tomassem parte Autoridade Nacional Palestina.
Era um programa amplo, que além da resistência à ocupação israelense, tratava de assuntos internos e externos, como a reforma administrativa, o combate a corrupção, ao clientelismo e a troca de favores, se encarregava da reforma judicial e política, liberdade do povo e direitos civis, orientação religiosa, política social, política cultural e de mídia. Tratava também de questões como políticas para a juventude e mulheres, saúde, ambiental, habitacional, agrícola, política econômica, financeira e fiscal, questões trabalhistas, e questões de transporte, como a passagem entre Gaza e a Cisjordânia, já que a Declaração de Princípios previa no Art. 10º, cláusula 1, sub-cláusula, a existência de “uma passagem segura a ligar a Cisjordânia com a Faixa de Gaza para a deslocação de pessoas, veículos e bens”. Estas cláusulas eram violadas diariamente pelos soldados e polícias israelitas que não só não controlavam as passagens, como praticavam (e continuam praticando) atos violentos nos check-points, transformando as travessias em pesadelos e a Cisjordânia num espaço fragmentado, sem ligações entre si ou com a Faixa de Gaza.
Foi com esse programa e com a mobilização ampla, principalmente dos jovens palestinos cansados de esperar pelos seguidos acordos não cumpridos por Israel, que o Hamas conseguiu a maioria dos votos para o Conselho Legislativo Palestino.
Vitorioso, o Hamas apresentou a sua “Plataforma de governo”, baseada em sete pontos:
- Primeiro: resistir à ocupação e às investidas opressivas contra a terra palestina, seu povo, recursos e lugares sagrados;Segundo: garantir a segurança dos palestinos e acabar com o caos na segurança;
Terceiro: diminuir as dificuldades econômicas do povo palestino;Quarto: empreender reformas e lutar contra a corrupção financeira e administrativa;Quinto: reordenar os assuntos internos palestinos por intermédio da reorganização de suas instituições sobre uma base democrática que garantiria a participação política para todos;Sexto: fortalecer o status da questão palestina nos círculos árabes e muçulmanos e;
Sétimo: desenvolver as relações palestinas nos níveis regional e internacional para que sirvam posteriormente aos principais interesses do povo palestino.”
Essa Plataforma permitiu à liderança reclamar o respeito da comunidade internacional quanto a escolha do povo palestino ao eleger o Hamas. Quanto aos EUA e suas posições a respeito do governo do Hamas, o Movimento afirmou que exigia da administração norte-americana – que vive pregando a democracia e o respeito pelas escolhas das pessoas por todo o mundo – que apoiasse o desejo e escolha do povo palestino. “Em vez de ameaçar os palestinos com o boicote e o corte aos auxílios, ele deve cumprir as promessas que fez de ajudar no estabelecimento de um Estado palestino independente com Jerusalém como capital e o retorno dos refugiados”.
O futuro da Palestina na visão do Hamas
No recente “Documento Geral de Princípios e Políticas”, aprovado em maio de 2017, o Hamas apresenta uma plataforma política, onde aborda questões como a definição da territorialidade palestina, estabelece sua compreensão da causa palestina, os princípios de trabalho a serem usados para promover seus objetivos e os limites de flexibilidade usados para interpretá-lo.
Assim, na visão do Hamas, “a Palestina é o território que se estende do Rio Jordão no oriente ao Mediterrâneo no ocidente e de Ras Al-Naqurah no norte a Umm Al-Rashrash no sul, é uma unidade territorial integral. Esta é a terra e o lar do povo palestino. A expulsão e o banimento do povo palestino de sua terra e o estabelecimento da entidade sionista em seu lugar não anula o direito do povo palestino sobre sua inteira terra e não reconhece nenhum direito nela pela usurpadora entidade sionista. A Palestina é uma terra árabe islâmica. Ela é uma terra sagrada e abençoada que tem lugar especial no coração de todo árabe e de todo muçulmano.”
O Documento assegura que o povo palestino é constituído pelos árabes que viveram na Palestina até 1947, independente se eles foram expulsos ou permaneceram após a Nakba (tragédia). “Cada pessoa que nasceu de um pai árabe palestino após aquela data [1947, início da ocupação sionista], se dentro ou fora da Palestina, é um palestino. (…) O povo palestino é um, feito por todos os palestinos dentro e fora da Palestina, independentemente de sua religião, cultura ou afiliação política. ”
Para o Hamas, independente das catástrofes que recaíram sobre o povo palestino desde 1948, como consequência da partilha e da ocupação sionista e sua política de deslocamento e limpeza étnica, a identidade palestina não será apagada nem negada. Um palestino ou palestina jamais perderá a sua identidade nacional e os direitos, mesmo depois de adquirir uma segunda nacionalidade. A Palestina será sempre “a terra do povo que está determinado a defender a verdade – dentro de Jerusalém e suas redondezas – que não é desterrado ou se intimida por aqueles que se opõem a ele e por aqueles que os traem, e ele continuará sua missão até que a promessa de Deus se cumpra.”
O movimento denuncia o projeto sionista como baseado na agressão racista, colonial e expansionista, hostil ao povo palestino e o seu direito à liberdade, libertação e autodeterminação
Jerusalém, para o Movimento, é a capital da Palestina. E afirma que o seu status religioso, histórico e civilizacional é fundamental ao mundo em geral, independentemente de ser cristão, muçulmano, druso, armênio ou judeu, árabes ou ocidentais. O mesmo ocorre para com os lugares sagrados. E declara que as medidas tomadas pelo ocupante sionista como a judaização de Jerusalém, através da construção de assentamentos como fato consumado da presença israelense na cidade sagrada, são ações nulas e vazias porque contrariam as regras e o Direito Internacional.
Alerta ao mundo que a ação dos sionistas não visa apenas a Palestina, mas a Nação Árabe e Islâmica, constituindo-se numa grande ameaça a segurança internacional, a paz e a estabilidade da região. Na mesma linha, o Hamas refuta a ideia de que o conflito que se estende por mais de 70 anos, não é uma guerra contra judeus por serem judeus, embora o sionismo se esforce para identificar o judaísmo e os judeus com o seu projeto apartheid colonial. Mas assevera que trava uma luta contra os sionistas que ocupam a Palestina.
Ao rejeitar o viés religioso ou sectário da luta contra a ocupação, o Hamas condena qualquer forma de perseguição a qualquer ser humano ou a negação dos seus direitos. Para o Movimento, “o problema judaico, o antissemitismo e a perseguição de judeus é um fenômeno fundamentalmente ligado à história europeia, não à história dos árabes e muçulmanos ou seus herdeiros. O movimento sionista, que foi capaz de ocupar a Palestina com apoio das potências do Ocidente, é a maior ameaça de ocupação por assentamentos que já desapareceu de grande parte do mundo e precisa desaparecer da Palestina.”
O Movimento de Resistência Islâmica aponta em seu “Documento Geral de Princípios e Políticas” um elenco de posições atualizadas para a luta de resistência e a busca de soluções para o problema da ocupação sionista na palestina. Entre elas está a rejeição e nulidade de documentos como a Declaração Balfour, o documento do Mandato Britânico, a resolução da ONU sobre a partilha da Palestina e os Acordos de Oslo, pois considera que eles geraram ações que violaram os direitos do povo palestino, usurpando suas terras e banindo-os de seus lares. Assim, a “resistência e luta para a libertação da Palestina continuará sendo um direito legítimo, um dever e uma honra para todos os filhos e filhas de nosso povo e nossa Nação”,
Segundo o Documento, o estabelecimento de chamado “Estado de Israel” com base naquelas decisões unilaterais, é completamente “ilegal e transgride o inalienável direito do povo palestino e vai contra sua vontade e a vontade da Nação; é também uma violação dos direitos humanos que são garantidos por convenções internacionais, o primeiro entre eles é o direito à autodeterminação.”
O Hamas também afirma que não reconhecerá “Israel” nem nada do que aconteceu na Palestina em termos de ocupação, construção de assentamentos, judaização de lugares históricos e sagrados ou mudança nas características ou falsificação de fatos, por entender que o direito dos palestinos sobre sua terra e lugares jamais caducarão.
Embora rejeite uma solução que não seja a libertação da Palestina, “do rio ao mar”, sem comprometer sua rejeição a “Israel” e sem abandonar qualquer direito dos palestinos, o Hamas considera o “estabelecimento de um totalmente soberano e independente Estado palestino, com Jerusalém como sua capital ao longo das fronteiras de 4 de junho de 1967, com o retorno dos refugiados e deslocados de seus lares dos quais eles foram expulsos, para ser uma fórmula de consenso nacional.” Rejeita qualquer tentativa de desarmar a resistência ou de inibir sua capacidade de desenvolver medidas e mecanismos de resistência, como as jornadas semanais da “Grande Marcha do Retorno”, que ocorrem em Gaza desde 30 de março e já custou a vida de centenas de mártires e deixou milhares de feridos.
Sua liderança tem declarado que acredita e se empenha pelo restabelecimento das relações e ações conjuntas das organizações palestinas, baseadas no pluralismo, democracia, parceria nacional, aceitação do outro e adoção do diálogo, como objetivo para reforçar a unidade para atender as aspirações do povo palestino. Reconhece a OLP como uma referência para o povo palestino que precisa ser preservada, desenvolvida e reconstruída em bases democráticas dentro e fora da palestina, de maneira a assegurar a participação de todas as forças que lutam para resguardar os direitos dos palestinos.
No que diz respeito a Autoridade Nacional Palestina, o Movimento considera que ela precisa servir ao povo palestino e salvaguardar a sua segurança, seus direitos e o interesse nacional, em bases democráticas e baseada na parceria nacional, incluindo o direito de resistência e eleições livres e justas. Um movimento que será enriquecido por suas personalidades proeminentes, instituições da sociedade palestina, grupos de juventude, estudantes, sindicalistas e mulheres, cujo papel é definido como fundamental no processo de construção da história palestina e no propósito de resistência e conquista da liberdade.
Referindo-se ao que chama de Nação Árabe e Islâmica, o Hamas acredita que a questão palestina é a causa central e acredita na cooperação de Estados, sem entrar em disputas que ocorram nos diversos países. E que tem se esforçado para estabelecer relações equilibradas na base de uma combinação dos objetivos da causa palestina e do interesse do povo palestino em uma mão, com interesses da Nação, seu renascimento e sua segurança em outra mão.
No que diz respeito ao aspecto humanitário e internacional, o Hamas entende que apoiar e sustentar essa causa é uma tarefa humanitária e civilizacional, já que a questão palestina é uma das que tem maior dimensão e pré-requisitos para a verdade, justiça e valores humanitários. E a resistência como uma atividade legítima, isto é, um ato de autodefesa e uma expressão do direito natural de todos os povos à autodeterminação.
Finalizando, o Documento faz um chamamento ao internacionalismo, pregando a rejeição às tentativas de imposição de hegemonias sobre nações e povos do mundo, condenando todas as formas de colonialismo, ocupação, discriminação, opressão e agressão no mundo.
Cabe aqui uma pergunta: a atualização do seu programa e a redefinição de tarefas de resistência e libertação da Palestina, tornará o Hamas mais fraco ou mais forte num futuro próximo?
O que podemos concluir é que, desde a sua fundação em 1987, o Hamas vem numa trajetória de crescimento. É certo que sofreu derrotas, contratempos e momentos difíceis, mas, em termos gerais e baseado no olhar das circunstâncias da sua história de lutas, é impossível prever se o Hamas se tornará mais forte ou mais fraco. O que podemos afirmar é que o seu crescimento será proporcional à continua brutalidade e humilhação da ocupação sionista contra os palestinos, associada ao fracasso das organizações palestinas seculares rivais do Hamas em promover soluções negociadas com Israel.
Os esforços de Israel, da mídia ocidental e da Autoridade Palestina em desacreditar e impedir o crescimento do papel do Hamas e a sua popularidade na sociedade palestina, não se concretizarão enquanto Israel exercer o controle sobre a Palestina histórica, impedindo a criação de um Estado palestino. Enquanto Israel mantiver sua ocupação e o apartheid que domina, segrega e restringe a liberdade de movimentação dos palestinos com muros e checkpoints.
Enquanto Israel limitar os cuidados com saúde, educação e impedir o acesso à terra e o desenvolvimento e o crescimento econômico dos palestinos, a resistência existirá e se tornará mais atuante.
A solução de acordos, não cumpridos por parte do ocupante, é um dos motores do crescimento do Hamas. Os palestinos sedentos de justiça e frustrados com o colapso das negociações, continuarão a acreditar que a resistência é o único caminho e se aproximarão cada vez mais do Movimento de Resistência Islâmica, que é uma consequência natural da ocupação brutal, e aquela força que sustenta a bandeira dos direitos, da liberdade e da autodeterminação palestinos.
* Sayid Marcos Tenório é historiador e secretário geral do Instituto Brasil-Palestina (IBRASPAL) – Email: hajjsayid@gmail.com – Twitter: @hajjsayid

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
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07/11/20O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac
Por Dirce Waltrick do Amarante*
Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.
Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.
Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.
Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.
Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.
*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina
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A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista
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06/11/20por
Aloisio MoraisNos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.
Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG
A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.
Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.
A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.
São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.
Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário.
Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.
Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.
O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.
O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.
Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].
Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.
Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.
A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.
Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.
Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm
[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).
[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm
[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml
[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html
[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters
Feminismo
Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?
Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros
Publicadoo
5 anos atrásem
05/11/20A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.
Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.
Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”
O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.
É só ler o título indigitado de novo:
JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.
Uma pena.
Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.
Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.
Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.
E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.
Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.
A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.
Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.
Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?
Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?
Não, não é razoável.
Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.
A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!
Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.
Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!
É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…
Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.
Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.
É preciso atuar sobre esse front.
Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!
Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!
Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.
A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.
Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?
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