Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Duke
O ano de 2005 é chave para a compreensão da crise brasileira contemporânea. Foi aí, no chamado “mensalão”, que se desenhou pela primeira vez aquela que, na minha percepção, é a característica mais importante da crise: o ativismo político dos profissionais da lei.
Desde 2005 que juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores e procuradores são personagens recorrentes na crônica política. Depois de 2014, a Operação Lava Jato se tornou palco para a fama desses profissionais. Mais do que nunca, o Brasil é a República dos Bacharéis.
Os marqueteiros da Operação Lava Jato afirmam que pela primeira vez na história do Brasil os empresários milionários sentiram na pele o peso da lei. É uma meia verdade. Se é meia verdade, por consequência lógica, é meia mentira também.
Os empresários presos atuavam no ramo da construção civil e de obras de infraestrutura. Os agentes econômicos envolvidos com atividades financeiras e especulativas não foram incomodados. Somente os mais ingênuos são capazes de acreditar que Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro são mais corruptos que os executivos do Itaú ou do Santander, que também financiavam campanhas eleitorais, que também estabeleciam relações nada republicanas com a classe política.
Por que uns foram presos, enquanto os outros estão aí, lucrando bilhões todos os anos?
A seletividade da Operação Lava Jato é óbvia e salta aos olhos de qualquer um que queira enxergar a realidade. A narrativa do combate à corrupção está sendo utilizada como pretexto para o desmanche do Estado e dos investimentos públicos em infraestrutura, o que favorece os interesses ligados ao capital financeiro nacional e internacional. A comunidade jurídica brasileira colaborou com esse projeto, ajudou a desmontar parques industriais, levando empresas nacionais à falência, sempre com o pretexto do “combate à corrupção”.
Como bem disse Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, a Justiça brasileira “prometeu acabar com os cupins, mas acabou ateando fogo à casa”.
Porém, seria um erro dizer que a comunidade jurídica é um bloco homogêneo, que todos os seus integrantes se movem na mesma direção. Alguns momentos na cronologia da crise mostram que o cenário não é tão simples, que há bacharéis dispostos a confrontar a hegemonia daqueles que entregaram seus serviços aos interesses do capital financeiro internacional.
Destaco aqui três nomes: Rodrigo Janot, Rogério Favreto e Marco Aurélio de Mello.
Em algum momento da crise, os três contrariaram interesses hegemônicos. Meu objetivo aqui é relembrar esses episódios e sugerir que a resistência democrática não pode abrir mão da institucionalidade. Ir às ruas e disputar o imaginário das pessoas não significa deixar de operar por dentro das instituições burguesas, explorando suas contradições. Uma coisa não exclui a outra. Uma coisa complementa a outra.
Rodrigo Janot
Rodrigo Janot foi empossado pela presidenta Dilma Rousseff como procurador geral da República em 2013, sendo reconduzido ao cargo, também por Dilma, em 2015. Janot foi personagem protagonista em alguns dos momentos mais agudos da crise brasileira, no período que compreendeu a derrubada de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.
Sinceramente, não sou capaz de definir a identidade ideológica de Rodrigo Janot, de dizer se ele é de esquerda ou de direita. Talvez ele não pense a realidade nesses termos. Antes de se tornar procurador geral da República, Janot tinha atuação engajada na defesa dos direitos da população carcerária. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Janot se manifestou a favor da candidatura de Fernando Haddad.
26 de agosto de 2015. Sabatina de recondução de Janot à chefia da Procuradoria Geral da República. Senado Federal. A crise institucional se aprofundava e começava a se desenhar no horizonte o golpe parlamentar que meses depois derrubaria Dilma Rousseff.
A oposição, liderada por senadores do PSDB e do DEM, colocou Janot contra a parede. Ana Amélia, Aécio Neves, Aloísio Nunes, Antonio Anastasia exigiam que a PGR denunciasse a presidenta Dilma Rousseff. Foram quase 12 horas de uma sabatina tensa e atravessada pelo partidarismo político. Por inúmeras vezes, Janot disse que não havia indícios suficientes para fundamentar uma denúncia contra a presidenta da República.
Janot não denunciou Dilma enquanto ela estava no exercício do mandato.
Já com Temer, o comportamento de Rodrigo Janot foi completamente diferente. Foram duas denúncias, em pleno exercício do mandato. A primeira denúncia foi apresentada em junho de 2017. A segunda veio três meses depois, em setembro.
Michel Temer precisou acionar suas bases na Câmara dos Deputados para barrar as duas denúncias. Precisou liberar verbas para os deputados aliados. Precisou gastar capital político. Acabou lhe faltando fôlego político para aprovar a Reforma da Previdência, que era a grande agenda do seu governo. Capital político tem limite, igual a peça de queijo: diminui um pouco a cada fatia retirada.
Se Temer não conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, parte da derrota pode ser explicada pelas flechas disparadas por Rodrigo Janot, que acabou colaborando para defender os direitos previdenciários dos trabalhadores brasileiros do ataque do capital especulativo.
Qual era o seu objetivo? Comprometimento com uma agenda social-democrata? Um republicanismo genuíno que parte do princípio de que não pode existir seletividade na aplicação da lei? As duas coisas juntas?
Não dá pra saber. Fato mesmo é que ao desestabilizar Michel Temer, Janot contrariou os interesses do rentismo.
Rogério Favreto
Quem acompanha a trama da crise brasileira lembra bem do dia 8 de julho de 2018. Era manhã de domingo e o país foi sacudido pela notícia que dividiu a sociedade, deixando metade da população em estado de graça e a outra metade babando de ódio.
“Lula vai ser solto!”. Assim, estampado em letras garrafais em todos os veículos da imprensa.
Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região em diálogo direto com lideranças petistas, autorizou um habeas corpus de urgência, determinando a soltura imediata de Lula.
Todos os envolvidos sabiam que Lula não seria solto. Lula nem fez as malas. O objetivo ali era tático: levar as instituições burguesas a extrapolar os limites da própria legalidade.
Sérgio Moro despachou estando de férias e negou o habeas corpus, o que ele não poderia fazer. Moro contrariou a ordem de um superior, subvertendo a hierarquia do Poder Judiciário.
Thompson Flores, presidente do Tribunal da 4° Região, cassou a decisão de Favreto, o que somente poderia ser feito pelo colegiado dos desembargadores.
Em um ato de resistência, Rogério Favreto deixou claro para o mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.
Marco Aurélio Mello
Marco Aurélio Mello, tendo mais coragem que juízo, vem sendo a voz da resistência no Supremo Tribunal Federal. Eu poderia dar vários exemplos de ações de Marco Aurélio em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da soberania nacional. Fico apenas com dois.
1°) Em 19 de dezembro de 2018, na véspera do recesso do Judiciário, Marco Aurélio soltou um bomba: em decisão autocrática determinou que a Constituição fosse respeitada, ordenando a libertação de todos os presos condenados em segunda instância, o que beneficiaria o presidente Lula.
É que a Constituição é clara. Só pode prender depois do trânsito em julgado. Se está errado ou não é outra discussão. Constituição não se questiona, a não ser para fazer outra Constituição.
Liminar pra cá, liminar pra lá. Procuradores da Lava Jato convocando entrevista coletiva para dizer como STF deveria agir. Mais uma vez a sociedade dividida. Novamente, Lula nem fez as malas, pois experimentado que é, sabia muito bem que não seria solto.
Dias Toffoli, presidente do STF, derrubou a decisão de Marco Aurélio, contrariando o regimento interno da Casa, que diz que somente a plenária do colegiado é legítima para anular ato autocrático de um ministro.
Se Lula não estivesse preso, o regimento seria respeitado. Lula não é um preso comum.
2°) Na última semana, vimos outro embate entre Marco Aurélio e Dias Toffoli. Dessa vez, o motivo foi a venda dos ativos da Petrobras. Marco Aurélio, outra vez em decisão autocrática, proibiu a venda, num ato de defesa da soberania nacional. Dias Toffoli autorizou a venda, se alinhando aos interesses privados e internacionais.
Apresentei três exemplos, de três profissionais da lei que em algum momento da crise contrariaram os interesses que hoje ditam os rumos da política brasileira. Não existiu nenhuma articulação entre eles. Os exemplos mostram apenas que as instituições burguesas não são homogêneas, que existem contradições que devem ser exploradas.
A resistência democrática, portanto, precisa se equilibrar sobre dois pés. Um nas ruas, agitando e apresentando soluções para o nosso povo, que já vai começar a sentir na pele as consequências de um governo ultraliberal, autoritário e entreguista. O outro pé deve estar bem fincado nos corredores palacianos, onde se desenrolam as tramas institucionais.
Precisamos, sim, de líderes populares, de líderes que saibam falar ao coração do povo, que entendam as angústias da nossa gente. Precisamos também de articuladores, de conhecedores da lei e dos regimentos, de lideranças versadas no jogo jogado nos bastidores. Resistência democrática é trabalho de equipe.
Ligia
27/01/17 at 20:00
É isso.
Colonizadores dão novas formas aos seus espelhinhos. Mas nunca deixam de usá-los.
Obrigada por isso.
C. S. Costa
27/01/17 at 20:21
Concordo com tudo o que está no texto! Mas acho que faltou falar sobre os pontos positivos do programa. Ele abordou feminismo negro, estatísticas de violência contra a mulher, não deixou os homens roubarem protagonismo das mulheres… Isso tudo é importante. Além disso, creio que ajudou a “descomplicar” o feminismo para pessoas leigas, especialmente mulheres que não estão familiarizadas com os debates sobre capitalismo, que não conhecem todas as vertentes feministas, que não têm acesso à informação. Eu sei que é difícil admitir isso, mas infelizmente o pensamento crítico a respeito do momento histórico do feminismo deixa muito a desejar na população em geral. A dona de casa, a trabalhadora assalariada… essas mulheres não têm a mesma bagagem de conhecimento sobre o tema que as mulheres (me incluo nesse grupo) que estão expondo uma opinião mais crítica sobre o programa. No mais, repito que concordo com o texto e enfatizo que foi um absurdo tratarem prostituição de maneira tão rasa (e conveniente para a manutenção do status quo). Uma amiga disse que não é a proposta do programa promover debates, o foco ali é entretenimento. Concordo. Mas é necessário fazer uma reflexão maior sobre a abordagem feita no programa – por que esse programa? Por que dessa forma? Por que não questionaram coisas realmente desafiadoras da ordem atual? As pessoas que questionam isso não estavam ali. E provavelmente nunca estarão. A gente precisa urgentemente tornar mais acessível esse conhecimento que tanta gente enche a boca pra chamar de elitista.
Carla Carolina Moraes
27/01/17 at 21:53
Oi Martha!
Gostei do seu texto, mas tenho um ponto de vista diferente.
Eu concordo com muito do que você expôs, senão tudo.
O que vejo além é a possibilidade de se tratar do feminismo em rede nacional, canal aberto e em horário nobre. É ver que esse tema entrou na casa de muita gente que não sabia nem o que é feminismo.
Foi o ideal ou o mais adequado? Pode ser que não. Só que foi. Chegou pra muita gente que não tem essa informação porque não pode ou não quer.
Deu importância, mesmo que falhando como você expôs, ao movimento.
Eu considero importante.
Tem que mudar muito, mas já é um começo.
Beijos
Nilda Costa
27/01/17 at 22:15
Muito boa a análise. Parabéns.
Carlos Mizael
27/01/17 at 22:20
Excelente!!!!
Geração Digital
27/01/17 at 22:21
Ratifico tudo! Quando se acha que a saída para o problema da prostituição é a sua legalização. Você esta confirmando que a mulher é tão incapaz que precisa vender seu corpo para sobreviver. O Brasil sempre mercantilizou e cosificou o corpo da mulher sem precisar usar a desculpa de estar em guerra civil.
Li Parolini
27/01/17 at 22:28
Marta, mt obrigada por partilhar sua opinião! Sinto que não estou só na minha percepção. Publiquei o seguinte post pela manhã: “N tenho TV, e não assisti Amor e Sexo ontem. Mas li mts posts falando sobre; da importância da representatividade das mulheres, etc. e a presença de Djamila Ribeiro, Karol Conka, a diva Elza Soares, entre outras personalidades.
E daí que pensei: quando a Globo abraça a pauta, há algo errado. Falar de representatividade e ignorar que recentemente uma presidenta foi retirada do seu poder legitimo; não mencionar Maria da Penha, que deu a origem a lei, num país que insiste no feminicídio e violência doméstica; entre outras coisas, é apresentar o feminismo como um “tema leve”, mais um entretenimento.
Tal como querem, o discurso está sendo adequado ao sistema, ao consumo e prontinho pra ser assimilado, enquadrado e tb sujeito; enqto as causas fundamentais (das mulheres campesinas e indígenas por exemplo, ninguém lembra, né?) são completamente ignoradas.” Resultado: críticas e mais críticas. No entanto, penso que permaneço no lado atento da força ☺
Batok
27/01/17 at 23:22
algumas das observações citadas haviam sido discutidas num grupo com amigas hoje. não tenho tv em casa e pouco vi do programa, no entanto o conteúdo do mesmo remete ao seu título [amor e sexo] discutir o feminismo nessa esfera é complicado, pois sabemos que é um leque de “problemas” a qual, nós mulhres, passamos diariamente. Para o programa em questão, achei os tópicos bem válidos, embora não tenha contemplado a classe lgbt; é um programa sobre sexo, então falar de prostituição, sexualização da mulher negra e liberdade do corpo casam bem com a proposta do programa > não daria pra abranger todas as causas feministas num curto espaço de tempo em um programa de tema específico. Não estou defendendo a emissora, que evidentemente visa lucro e manipulação, nem estou satisfeita com o resultado pois notei o despreparo de algumas das celebridades [no nível aceitável, talvez por falta de informação, afinal estamos todos no processo de desconstrução, não é mesmo?] mas para um nível de entretenimento “barato” ao menos uma mensagem razoável foi emitida.
João
28/01/17 at 0:55
“A Globo se traveste de feminista e empurra pra debaixo do tapete os anos de exibição do corpo de uma mulher negra à venda, como carne”. Inegável, isso é um fato. Mas como vimos esse ano, eles mudaram totalmente a chamada do carnaval na TV. Não seria isso uma mudança de iniciativa? Não podemos ver isso como uma tentativa de reparar o que estava errado? Pior seria se mantivessem a chamada antiga.
“É impossível não se lembrar do programa “Cassino do Chacrinha” que, já nos anos 80, objetificava do corpo da mulher da forma mais machista possível” Mais um fato, mas tenho uma “explicação” pra isso: o movimento feminista na época não tinha atingido tanta gente como hoje. Hoje as atrocidades são percebidas e denunciadas. Não estou dizendo que naquela época não havia quem notasse isso, mas o movimento feminista não era tão contundente, e a TV continuava expondo as mulheres. Hoje eles sabem. Hoje, na minha opinião, estão tomando consciência. Estão iniciando o reparo do que estava errado. Talvez ainda não do modo que vocês queiram ver. Que haja mais debates e divulgação de opiniões pra que a TV tenha mais conhecimento da maneira como devem tratar o assunto, mas eles começaram a tratar do assunto.
Débora
28/01/17 at 2:08
Eu acho que é aos poucos que as coisas mudam, em muitas casas o tema feminismo nunca sequer foi debatido entre as pessoas. Aquilo é um programa de TV e não uma aula, não dá pra explicar feminismo assim, de uma vez, é completamente ilusório achar que isso aconteça, assim, de uma hora pra outra.
Eu gostei do programa, já havia pensado sobre muita coisa ali, mas e quem nunca teve a oportunidade? Pela primeira vez eu vi, dentro da minha casa, as pessoas assistindo, escutando e dando ATENÇÃO. Não é ali que eles vão aprender tudo, mas já é uma começo. Problematizar tanto assim não é válido ao meu ver, é claro que por trás de tudo aquilo que pudemos assistir existe algo muito maior, mas vamos tentar olhar para o lado bom da coisa para que caminhemos para programas em horário nobre que realmente sejam efetivos e tragam discussões mais profundas.
Gustavo
28/01/17 at 2:47
Esse programa é cheio de sexo-normatividade.
Elisangela Fermaio
28/01/17 at 7:25
Texto Sensacional!
Pingback: #ChegaDeAssédio e os padrões Globais – Singular