Por André Okuma | Jornalistas Livres
Ao mesmo tempo em que, neste contexto de pandemia, muitos projetos culturais e artísticos tenham sido paralisados, no circuito audiovisual diversas Mostras e Festivais de Cinema optaram por realizar suas edições de forma online, permitindo que filmes restritos a eventos locais pudessem ser vistos de qualquer parte do mundo.
Neste cenário atípico, e como nunca antes, é possível assistir muitos curtas-metragens (formato pouco comum em plataformas on demand) inéditos e recentes, que oferecem em geral uma maior ousadia e algum frescor em experimentações de linguagem e técnica, além de visibilizar produções independentes e marginais com outras narrativas além das até então difundidas pelo cinema hegemônico.
Atualmente, o cinema no Brasil vem também passando por processo de transformação no qual, o cinema negro, feminista, LGBTQIA+ e periférico vem ganhando (a partir de muita luta) cada vez mais espaço, e neste bojo, o cinema indígena contemporâneo.
Se este cinema de guerrilha, mais identitário e político é ainda uma vertente do cenário audiovisual brasileiro que orbita nas margens do “mainstream”, o cinema indígena está ainda mais à margem, ao mesmo tempo em que, desde o revolucionário projeto “Vídeo nas Aldeias” idealizado pelo indigenista Vincent Carelli lá em 1986, a produção cinematográfica de nossos povos originários cresceu de maneira exponencial, mas ainda que circulado apenas em espaços restritos a filmes etnográficos.
É sob esta perspectiva que está em cartaz a 1ª Mostra Cine Flecha, exibido na plataforma VideoCamp e que está disponível gratuitamente até o dia 15 e outubro. Nela é possível ver 25 filmes brasileiros e 1 boliviano. Dentre eles, a animação “Mãtãnãg, a encantada”.
O curta narra uma história tradicional do povo indígena Maxakali situado no município de Ladainha (MG) que, mesmo tendo contato com os brancos por séculos, tentam preservar sua cultura mantendo sua língua e sua cosmologia, e já há alguns anos, utilizam o cinema como ferramenta para tal.
Animação no Cinema Indígena
A animação, fruto de uma oficina, foi roteirizada e ilustrada pelos próprios indígenas, a direção é de Shawara Maxakali e Charles Bicalho, este último não é um Maxakali mas é um parceiro deles há décadas, e foi o mediador entre o projeto dos Maxakali e editais de fomento.
Outra característica importante sobre o curta é que ele é todo falado em Maxakali com legendas em português. O filme retrata a história da índia Mãtãnãg, que segue o espírito de seu marido, morto por uma picada de cobra, até a aldeia dos mortos. Nesta jornada eles superam os obstáculos que separam o mundo terreno do mundo dos Yãmiy (dos espíritos).
Entre cantos que evocam essa história e a mistura de desenhos de cada participante, a animação nos faz imergir em um universo onírico e novo, de outra temporalidade, outras noções de narrativa a partir de outras percepções de mundo.
Em uma negociação entre tradição e modernidade, os Maxakali se conectam com sua cultura, se afirmando e fortalecendo seus laços enquanto povo, corroborando com a afirmação de Krenak em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”:
“Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos (…) E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”.
(Ailton Krenak)
Adiando o fim do mundo, os Maxakali mostram uma animação naturalmente decolonial, difícil de descrever de maneira eficiente em palavras “coloniais”. Tem que assistir, assim como os outros filmes que compõem esta mostra imperdível. E ainda parafraseando e citando Krenak, Filmar, “Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial”.
Mais relevante politicamente do que isso, neste momento em que territórios indígenas e tribos estão sendo dizimados enquanto o Brasil arde em chamas, só a destituição deste governo.
Sobre o filme:
Mãtãnãg, a Encantada (2019)
Sinopse: Mãtãnãg, a Encantada acompanha a trajetória da índia Mãtãnãg, que segue o espírito de seu marido, morto por uma picada de cobra, até a aldeia dos mortos. Juntos eles superam os obstáculos que separam o mundo terreno do mundo espiritual.
Brasil (SP) | 14 min. | Animação | Livre
Direção: Shawara Maxakali e Charles Bicalho
Pesquisa e Roteiro: Pajé Totó Maxakali Charles Bicalho
Produção: Charles Bicalho, Cláudia Alves, Marcos Henrique Coelho
Tradução: Charles Bicalho, Isael Maxakali, Sueli Maxakali
Consultoria Cultural: Isael Maxakali, Sueli Maxakali
Direção de animação: Jackson Abacatu; Ilustração: Alexandre Maxakali, Ariston Maxakali, Cassiano Maxakali, Eliana Maxakali, Erismar Maxakali, Evaldo Maxakali, Gerente Maxakali, Mamei Maxakali, Marcinho Maxakali, Marco Maxakali, Paulinho Maxakali, Shawara Maxakali
Montagem: Charles Bicalho, Jackson Abacatu, Marcos Henrique Coelho
O filme pode ser visto no link: https://www.videocamp.com/pt/campaigns/539?playlist_id=88
disponível até o dia 15/10/2020.Mais informações sobre a mostra em https://www.videocamp.com/pt/playlists/mostra-cineflecha
André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-SP