Com reportagem de Flávia Martinelli e Jéssica Ferreira, especial para o blog MULHERIAS
Todo quilombo é memória viva. Cada espaço de resistência criado por remanescentes de escravizados é mantenedor da cultura e da história afro-brasileira. Os 2.847 territórios reconhecidos, apenas entre os certificados no Brasil, carregam em seu cotidiano aquilo que os livros não contam. São, por si só, espaços educacionais preciosos. E ainda há centenas, talvez milhares, que sequer foram mapeados – algo que o Censo de 2020, atualmente adiado, iria quantificar e é fundamental para a discussão de políticas públicas. A negligência diante do risco de contágio pelo coronavírus nessas comunidades representa (mais um) risco de extermínio institucional.
Se no passado quilombos lutaram por liberdade no regime escravista, hoje é o descaso e até a inconstitucionalidade do Estado que comprometem vidas de remanescentes, além do acesso ou preservação de suas terras, natureza e ensinamentos ancestrais. Na última sexta-feira (27), por exemplo, em meio à pandemia do covid-19, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o general Augusto Heleno, assinou e anunciou que o Brasil irá remover as mais de 100 comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão.
Triste ironia, no século 19, bem à época da escravidão, as ricas famílias de fazendeiros de açúcar e algodão em decadência econômica abandonaram a cidade quando uma epidemia, provavelmente de febre amarela, se abateu no local. Apenas negros e indígenas permaneceram entre os casarões e a doença. Lá permaneceram desde então. São os donos das terras, portanto, por posse e direito adquirido, ainda que a luta por reconhecimento como terra quilombola nunca tenha chegado a um acordo.
A expulsão, que vai contra a recomendação de isolamento social, é motivada pelo convênio que o presidente Jair Bolsonaro fez com os Estados Unidos, para uso do local como mais uma base espacial norte americana. O ato viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais. Em repúdio, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) pressiona o Estado por políticas públicas adequadas, principalmente diante da pandemia.
A violência institucional se somou a outra na mesma semana, quando o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em pronunciamento público, afirmou que há presença de SUS em 100% dos quilombos de todo o país. Não é verdade. Ainda que o trabalho de visita de profissionais do programa Estratégia Saúde da Família (ESF) seja muito bem avaliado, houve impacto na saída dos médicos cubanos no Brasil nas áreas rurais e, por consequência, nos quilombos. A precariedade das dinâmicas de saúde, quando existem, ou das complicações do deslocamento para atendimento em municípios vizinhos, também continuam na pauta de reivindicações do movimento quilombola.
A política de morte que dá licença para matar
Em tempos de covid-19, todas essas dificuldades se intensificam e amedrontam quilombos que, culturalmente, reverenciam e exaltam seus sábios anciãos, os chamados griôs. “Eles são nossa memória e nossa história. Telefono aos mais velhos e explico que eles não podem mais, como de costume, ir na casa um do outro”, conta a cientista social Marta Quintiliano, do Quilombo Vó Rita em Goiás. Ali, o posto médico mais próximo fica a 35 minutos a pé da comunidade.
Marta cita o filósofo e professor camaronês Achile Mbembe para esclarecer que as negligências tem endereço. “Sim, existe uma necropolítica e um necropoder que, juntos, escolhem os sujeitos que vão morrer e que vão viver”, menciona. A teoria escancara a crueldade das práticas de morte de governantes que priorizam a criação de políticas públicas voltadas para populações que não são as que mais necessitam delas. O poder estatal ganha, assim, licença para matar e têm alvo certeiro: povos periféricos, indígenas, negros, quilombolas e vulneráveis.
Diante desse cenário, a autogestão dos riscos foi a saída dos moradores do Quilombo Ivaporunduva, que fica em Eldorado, município paulista da região do Vale do Ribeira, uma das mais pobres do país, e cidade natal do presidente Jair Bolsonaro. Ali, a própria comunidade fechou estradas, passou a controlar acessos ao território em três turnos, montou equipes para idas e vindas à cidade e visitas de casa em casa para saber das necessidades de todas as famílias. “Se por aqui alguém contrair o coronavírus, existe muita pouca chance de resistir”, desabafa a educadora e moradora Cristiana Monteiro.
Já a mineira Maria das Graças Epifânio, filha da histórica Dona Tiana do quilombo urbano Carrapatos da Tabatinga, localizado em Bom Despacho, a 156 quilômetros de Belo Horizonte, sabe que o racismo está enraizado na visão do que são as culturas, tradições e sabedorias afro-brasileiras e o quanto isso impossibilita a construção de políticas direcionadas. “Não tem aquele respeito, não tem uma cartilha ou protocolos que expliquem aos profissionais da saúde as características da nossa comunidade ou necessidades pontuais. É uma questão de olhar e entender, de maneira respeitosa, as nossas tradições”, detalha.
Confia os depoimentos das três mulheres quilombolas que, diante da pandemia, lutam para proteger seus idosos e, portanto, parte de sua história e legado.
“O posto de saúde mais próximo fica a 35 minutos a pé do nosso quilombo”
“E se algo acontecer e nos contaminar? O que vamos fazer? A probabilidade do vírus se espalhar é enorme e a morte será em massa nos quilombos ou entre os indígenas”, preocupa-se Marta Quintiliano, de 37 anos, doutoranda em antropologia social na Universidade Federal de Goiás (UFG). Moradora do Quilombo Vó Rita, no município de Trindade, da região metropolitana de Goiânia (GO), ela conta que na comunidade existem de cerca de 200 pessoas; 50 são idosos. O posto de posto de saúde mais próximo, porém, fica a 35 minutos andando a pé e não há hospital para uma consulta ou atendimento especializado na região.
O local tinha características rurais, com roçado, até ser engolido pela urbanização. Na transição que a comunidade ainda vivencia, são os mais velhos que contam as histórias de Rita Felizarda de Jesus, que nasceu em 1909, neta de escravizados que deram origem ao quilombo. Vó Rita teria chegado a Goiás com a família vinda da Bahia a pé, depois de uma previsão, surgida à época, de que o mundo acabaria e que o primeiro local a ser atingido seria onde moravam antes.
No quilombo, Vó Rita teve 11 filhos que criou com o emprego em uma fábrica de farinha na cidade e lavando roupa pra fora. As filhas a ajudavam no trabalho doméstico e na fábrica, os filhos plantavam arroz, mandioca, milho e outros produtos que compartilhavam com a comunidade. Tradições como os bailes, cantigas e rezas são legados que os mais velhos ainda contam.
O avanço urbanístico na área do quilombo mudou essa rotina sem, no entanto, trazer a infraestrutura médica necessária à comunidade. “O que temos é uma agente de saúde que vem até a comunidade atender a todos. Mas, neste momento de pandemia, ela não está vindo visitar as casas, segundo ela, por questões de segurança”, explica Marta. “Quando acontece alguma coisa, se alguém está doente, a gente liga e pergunta o que é melhor fazer. Agora todo mundo está com medo.”
Marta conta que muitos na comunidade precisam se submeter a trabalhos com risco de contágio. São ofícios em jardinagem e empregos de motoristas e empregadas domésticas. “Temos um alto índice de serviços informais e desemprego. Não temos condições financeiras nem de comprar álcool gel”, pontua enquanto conta que não houve distribuição do produto no local e explica que a estratégia da comunidade é permanecer dentro de casa e fazer a lavagem adequada das mãos.
Política pública não é apenas avisar para não sair de casa
Aos mais velhos, ela explica os motivos para não mais ficarem, como de costume, indo um na casa do outro e reforça a importância de manter o isolamento. “Mas é difícil. Aqui em casa, por exemplo, tem um monte de idoso. Os que têm doenças não saem de jeito nenhum… E é isso: seguimos conversando com nossos mais velhos orientando por telefone, porque estão angustiados.”
Mas isso não é uma política pública, muito menos específica aos que, de maneira tão brasileira, marcaram a identidade do Brasil com seus benzimentos, a devoção a São Sebastião e a Santo Antônio e a manipulação de ervas na cura de enfermidades que até hoje a ciência está estudando. “Atenção à saúde com essa população precisa ir além de informação que vem da TV. Aqui, só o que dizem é pra não sair.”
“Os idosos são a nossa história, parte da nossa resistência”
A agricultora familiar e educadora Cristiana Marinho, de 35 anos, entende que o combate ao coronavírus no Brasil está vinculado ao enfrentamento da desigualdade e da negligência do Estado. Sabe também que essa combinação representa um risco enorme às comunidades periféricas e historicamente ignoradas ou mesmo vistas como inimigas por agentes do poder. Cristiana é moradora do Quilombo de Ivaporunduva, que fica em Eldorado, município paulista da região do Vale do Ribeira, uma das mais pobres do país, e cidade natal do presidente Jair Bolsonaro.
“É muito preocupante. Se a gente perde parte desses idosos, é nossa história que se perde. Queremos cuidar deles de todas as formas para que não sejam contaminados. Se por aqui alguém contrair o coronavírus, existe muita pouca chance de resistir”, desabafa. Ela cita a precariedade da estrutura de saúde pública da cidade da família do político que comanda o país. “O município não tem UTI e nem mesmo equipamentos de oxigênio e intubação.”
Os moradores de Eldorado dependem do hospital regional, de Pariquera que segundo Cristina, tem apenas 39 leitos de UTI. “Estão sendo instaladas mais dez, mas ainda é muito pouco para um número muito grande de gente. Sabemos que é perda mesmo, caso não haja cuidado”. O Vale do Ribeira abriga uma população de quase 500 mil habitantes e inclui em sua área de 31 municípios; nove paranaenses e 22 paulistas.
A resistência, como sempre, é construída no “nós por nós”
As comunidades quilombolas da região avaliam o turismo e a ida à cidades como fatores de alto risco de transmissão do vírus. Os próprios moradores de Ivaporunduva, então, bloquearam estradas locais e, por si, vigiam os acessos durante os três turnos. Ninguém entra e ninguém sai. Dentro da comunidade, de cada território, há coordenadores para lidar com a crise.
Há equipes que cuidam da divulgação de informações, outras cuidam de compras de remédios ou mantimentos na cidade. Parte da alimentação vem das roças orgânicas, mas há alimentos que ainda precisam aguardar a colheita. “Tem também um grupo que vai de casa em casa para saber o que está faltando para cada família. Estamos fazendo de tudo para que ninguém precise sair do isolamento social”, explica Cristiana. “Fiz também um apelo ao posto emergencial de saúde por causa da falta de materiais de prevenção, como álcool em gel, máscaras, luva. Isso deveria ser fornecido, mas que nem os profissionais da saúde têm.”
Mecanismos de resistência, como sempre, estão sendo construídos por e para eles. “A comunidade está unida, mais do que nunca, para vencer essa luta. Se aos que estão nas cidades já é difícil, nos territórios quilombolas é ainda mais por questões de logística, de transporte, de cuidado e de um olhar diferenciado que não existe nessa questão da saúde para o nosso povo.”
“Falta aos profissionais de saúde um protocolo de respeito às características da nossa comunidade. É uma questão de olhar, de entender as nossas tradições”
Diferente de muitas realidades, há dois anos, toda a dinâmica da saúde pública mudou para melhor no quilombo urbano Carrapatos da Tabatinga, localizado em Bom Despacho, em Minas Gerais, a 156 quilômetros de Belo Horizonte. “A chegada do programa Estratégia Saúde da Família (ESF), foi muito boa pra comunidade toda; tanto pra nós, quilombolas, quanto para quem não é. E é um conforto que a gente tem; não precisar correr léguas para ter atendimento”, conta a moradora da comunidade e técnica de saúde bucal Maria das Graças Epifânio, de 48 anos.
Graça elogia a facilidade de acesso à equipe médica que vai até a comunidade para intervir nos fatores que colocam a saúde em risco. De fato, pesquisas apontam que a política pública promove maior adesão a tratamentos e evita intervenções de média e alta complexidade. Esse nível de atenção resolve 80% dos problemas de saúde da população. Ainda, assim, ela pontua que a população quilombola tem especificidades culturais que devem ser respeitadas pelos agentes da saúde. “Em geral, colocam tudo no mesmo balaio e vão levando. Não precisava ser assim”.
Filha da matriarca do quilombo, Dona Tiana, falecida no ano passado aos 87 anos, Graça segue a militância pelos direitos quilombolas e é coordenadora de Igualdade Racial da Secretaria de Cultura da prefeitura de Bom Despacho. Ela sabe que o racismo está enraizado na visão do que são as culturas, tradições e sabedorias afro-brasileiras e o quanto isso impossibilita a construção de políticas direcionadas. “Não tem aquele respeito, não tem uma cartilha ou protocolos que expliquem aos profissionais as características da nossa comunidade ou necessidades pontuais. É uma questão de olhar e entender, de maneira respeitosa, as nossas tradições”, detalha Graça.
Dona Tiana, sua mãe, lutou pelo reconhecimento e certificado da comunidade como quilombo urbano da comunidade que, justamente, é referência na valorização da identidade e legado da cultura afro-brasileira. A líder incentivou e criou de grupos de dança afro, afoxé, teatro, capoeira, congado e até uma escola de samba. Detentora de saberes tradicionais, foi “zeladora de Santo”, filha de São Sebastião e benzedeira, reconhecida por toda comunidade de Bom Despacho, pelo poder público e entidades locais enquanto Dandara, sinônimo da resistência quilombola. Veja, abaixo, o documentário sobre sua vida e legado.