NEVE NO SERTÃO: A fome é negra, mas o pó é branco

Trabalhador submetido a condições degradantes de trabalho no sertão do Araripe (PE). Foto: Vitor Shimomura
Empresário não forneciam Equipamentos de Proteção Individual (EPI) aos trabalhadores

Grande parte deles são adolescentes de 15, 16, 17 anos. Trabalham em temperatura escaldante ou carregando pesos hercúleos que os envergam cedo para o chão. Mas há também homens de meia idade que não encontram outra alternativa de sobrevivência. A maioria tem a pele negra ou parda, mas a paisagem do Araripe, no Sertão de Pernambuco, e o pulmão dos homens e mulheres que vivem na região estão brancos. Meio ambiente, pessoas, plantas e bichos estão doentes. Adultos e crianças cedo desenvolvem asma, bronquite, problemas respiratórios e pulmonares graves. Sertão Branco, documentário produzido pela ONG Papel Social, denuncia as condições de vida do povo de trabalhadores semi escravizados e adoecidos pela extração e produção de gesso.

Para compor o quadro desse Nordeste embranquecido pelo pó da quase escravidão, uma equipe de repórteres entrevistou empregados do gesso adultos e púberes, agentes de fiscalização, de vigilância sanitária, assistentes sociais e médicos. Eles trazem o testemunho da infração a todas as leis e convenções sobre a dignidade, saúde e respeito no trabalho. Lesões e mutilações encurtam a vida laboral desses lúmpen-proletários, grande parte autônomos, sem vínculo empregatício ou com vínculo precário. Jornada excessiva e não-regulamentada; amputação de braços, mãos e dedos, devido à falta de máscaras e equipamentos de proteção fazem parte dessa vida severina. Afastados da escola, os adolescentes do gesso chegam em casa só para dormir e retornar à rotina esfalfante na manha seguinte.

Além da violações de direitos trabalhistas, as calcinadoras poluem a atmosfera e causam doenças respiratórias

A atmosfera, as árvores, plantas, ruas, casas e pessoas cobertas de pó branco compõem o cenário descolorido e sombrio da região do Araripe, no Estado de Pernambuco. Os municípios de Araripina, Ipubi, Trindade, Bodocó e Ouricuri integram o principal polo de produção de gesso do Brasil, produzido a partir do beneficiamento de um mineral chamado gipsita.

Em 2018, a Papel Social recebeu a tarefa de conduzir, sob a coordenação do jornalista Marques Casara, uma análise situacional sobre as condições de trabalho na cadeia produtiva do gesso, como parte do Projeto “Promoção e Implementação dos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho no Brasil”. Implementado pela Organização Internacional do Trabalho, em parceria com o Ministério Público do Trabalho, o projeto apurou trabalho escravo, semi-escravo, infantil e irregular ou sem condições de segurança em várias regiões do país, com recursos de multas e indenizações pelo lesionamento de empregados. Sertão Branco é fruto desse investimento na promoção de trabalho decente.

Em 2019, o projeto “Neve no sertão: a experiência do MPT na (re)configuração do ambiente do trabalho do maior polo gesseiro do mundo” conquistou o segundo lugar na categoria “Transformação Social” do Prêmio CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). Sertão Branco é fruto da colaboração entre a Agência de Pesquisa Papel Social, o Ministério Público do Trabalho  e a Organização Internacional do Trabalho para a construção de um diagnóstico e planos de ação para a promoção de condições dignas laborais.

 

EXPECTATIVA DE VIDA: 50  ANOS

No dia 15 de outubro, terça-feira, na sala Machado de Assis, o Curso de Pós Graduação em Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (PGET/UFSC), promove uma discussão sobre o resultado dessa investigação dolorosa no evento “Traduzindo o Sertão”, aberto ao público. Após a exibição do documentário Sertão branco, haverá um debate com parte da equipe de jornalistas diretores e produtores, composta por André Picolotto, Luara Loth e Vitor Shimomura. Daniel Grajew assina a trilha sonora. Como jornalista e professora, integrante da rede de mídia independente Jornalistas Livres, farei a mediação do debate.

O documentário perfaz o sentido do clássico texto “Fome negra”, publicado na obra A alma encantadora das ruas de crônicas-reportagem que inventariam os povos surgidos no início da industrialização, nos primeiros anos do século XX. Nele, o jornalista, dramaturgo e escritor João do Rio traz uma lancinante denúncia das condições desumanas dos imigrantes negros empregados nas atividades de extração e transporte do carvão das ilhas do Rio de Janeiro para o exterior. Um século depois de “Fome negra”, Sertão branco mostra que o Brasil continua um país escravocrata.

Longe dos olhos da cidade, o capitalismo feudal continua a se alimentar de povos que trabalham em condições degradantes apenas para sobreviver, mesmo cientes de que esse tipo de ganha-pão significa a condenação à morte ou à invalidez precoces, como revela outro trabalhador entrevistado:

“Mais na frente o cabra tá lascado com esse pó de gesso. É o pó do bicho. Daqui a uns tempos o cabra tá morto, né?”

Sem expectativa de futuro, os maltratados operários do minério fino, que mal ganham o dia para comer, encontram subterfúgios para encarar a dura realidade, como na resposta irônica do jovem negro:

“Quando inteirar 50 anos já tá bom. Já vivi bastante…”

https://www.youtube.com/watch?v=shDTQpxNIHQ&t=5s

 

 

Trabalhadores narram sua rotina de horrores e pedem socorro usando as paredes de uma calcinadora. Foto: Vitor Shimomura

 

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