NAS ENTRELINHAS DA CARTA BOMBA

ARTIGO

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, com charge de Luscar

 

 

 

17 de maio de 2019. O presidente Jair Bolsonaro sacode a Internet ao publicar um texto enigmático que define o Brasil como um país “ingovernável”. Muitos interpretaram a publicação como indício renúncia.

Afinal, se o presidente diz que é impossível governar, por que ele continuará sendo presidente?

Bolsonaro ainda não renunciou, pelo menos até o momento em que escrevo este artigo. Ao longo da noite, ficamos sabendo que o texto publicado foi escrito por Paulo Portinho, professor carioca filiado ao Partido Novo.

Em entrevista à “Folha de São Paulo”, Portinho disse que não tem nenhum vínculo ideológico com o governo para além da pauta liberal comandada por Paulo Guedes e que ficou surpreso ao ver seu texto nas mídias sociais de Bolsonaro.

Neste momento, pouco importam os objetivos do autor do texto. Interessa mesmo interpretar o gesto político da publicação, que diz muito sobre a situação política do presidente da República.

Bolsonaro foi eleito por uma frente ampla sustentada por três pilares: os militares, o mercado e os evangélicos, cada um dos grupos tendo interesses específicos.

Os militares viram na eleição de Bolsonaro a chance de retomar o protagonismo político perdido, além de melhorar a imagem das Forças Armadas, maculada pela memória da ditadura militar construída ao longo de 30 anos de governos civis.

Depois do completo fracasso da candidatura de Geraldo Alckmin, o mercado desejava um governo legitimado pelo voto que pudesse completar o desmonte do Estado brasileiro iniciado por Michel Temer.

Se alguém na história contemporânea do Brasil conseguiu fazer trabalho de base com eficiência, esse alguém foram os evangélicos. Não há bairro nesse país que não conte com uma igreja evangélica. Ao apoiar Bolsonaro, as principais lideranças evangélicas esperavam exercer hegemonia moral sobre o comportamento da sociedade.

Bolsonaro foi extremamente inábil em equilibrar os interesses dos grupos que deveriam sustentar seu governo. Enquanto um líder político experimentado tentaria adoçar a boca de seus aliados mais poderosos, Bolsonaro achou que pequenos mimos seriam suficientes.

Damares no Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos para agradar os evangélicos.

Generais na maioria dos cargos de primeiro escalão para agradar os militares.

Defesa retórica da reforma da previdência, sem maior envolvimento político na agenda.

Foi pouco. Ninguém ficou satisfeito. Os aliados não queriam apenas cargos. Queriam ver seus projetos de nação implementados pelo governo.

Enquanto isso, o presidente se deixava levar, e engolir, pela histeria ideológica olavista. Comprando a tese de Olavo de Carvalho de que o principal problema do Brasil é o “marxismo cultural” difundido pelas esquerdas em todos os setores da sociedade, o governo priorizou a guerra cultural, operacionalizada por Ernesto Araújo, pelos príncipes presidenciais (especialmente Carluxo e Eduardo, pois Flávio está ocupado tentando salvar sua própria pele) e por Ricardo Velez e Abraham Weintraub.

Percebam a inabilidade política: Bolsonaro priorizou o guru que mora nos EUA ao invés de estreitar laços com os milhões de evangélicos, com os generais e com os operadores do mercado.

Silas Malafaia reclamou, dizendo que se dependesse de Olavo de Carvalho, Bolsonaro não teria sequer 3% dos votos válidos.

Os militares reclamaram da ingerência dos príncipes na política externa. Reclamaram da insanidade de Ernesto Araújo. Reclamaram do decreto que flexibiliza acesso a armas que antes eram de uso exclusivo das Forças Armadas.

O mercado reclamou, usando a voz de Rodrigo Maia, que insistentemente pediu que o presidente se dedicasse com mais empenho à construção da Reforma da Previdência.

Bolsonaro ignorou todas as queixas, acreditando que sua jornada ideológica teria alguma sustentação sem uma base política sólida.

Os atos em defesa da educação que mobilizaram o país em 15 de maio mostraram que uma parcela relevante da sociedade está disposta a ir às ruas para se manifestar contra o governo. Se o presidente tivesse o apoio do Congresso Nacional, da mídia hegemônica e dos operadores do mercado, os protestos seriam silenciados pela imprensa e não teriam maior potencial desestabilizador.

Se nenhuma força política estabelecida tiver o interesse de ecoar o som das ruas nos corredores do Palácio, o grito, mesmo que seja entoado por milhões, não é tão alto assim. A política palaciana tem capacidade de auto-blindagem.

Como apoio institucional é tudo que o governo não tem, o cenário que se apresenta é o da tempestade perfeita: isolamento em Brasília, desconfiança do mercado, rejeição nas ruas e um vice-presidente que o tempo inteiro se apresenta como o contraponto de bom senso e moderação.

Só resta uma solução: apelar às bases do bolsonarismo orgânico, formada por frações da classe média que compartilham com o presidente a ideologia olavista. Homens e mulheres que realmente acreditam que a grande missão de Bolsonaro é combater a conspiração comunista em marcha no Brasil. Ao publicar a carta de Paulo Portinho, Bolsonaro está tentando mobilizar essa base social.

Ao que parece, atos de apoio a Bolsonaro foram convocados para o próximo dia 26. Teremos a chance de verificar na prática o tamanho da base bolsonarista. Uma coisa é votar, é fazer sinal de arminha com as mãos no almoço de família. Coisa bem diferente é ir pra rua defender o presidente.

Bolsonaro vai renunciar, tentando encenar o papel do herói cívico que tentou salvar o país e foi impedido por “forças ocultas”?

Será afastado por uma conspiração articulada pelo Congresso, pela mídia hegemônica e pelo Ministério Público? Não seria a primeira vez que algo semelhante aconteceria. Os negócios de Flávio Bolsonaro envolvendo funcionários fantasmas e lavagem de dinheiro no mercado imobiliário parecem ser nitroglicerina pura.

Bolsonaro será tomado pelo bom senso e enterrará de vez a guerra cultural olavista e começará, de fato, a governar? Talvez ainda dê tempo de reconstruir as alianças. Pra isso seria necessário um profundo exercício de reinvenção.

Os dados estão rolando. Por ora, dá pra saber que depois de quase cinco meses de governo, o presidente está agonizando em praça pública, pedindo socorro.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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