Lula fala ao povo: quando o discurso funda a História

Lula fala ao povo reunido no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, no dia de sua prisão - Francisco Proner/ farpa fotocoletivo

Por Rosane Borges***, especial para os Jornalistas Livres

 

Dos discursos e seus ecos

Seja pela vocação que têm para suscitar outros/novos modos de existência, seja por instituírem novas configurações da política, seja por inventarem novas bússolas para a travessia de nossas vidas, alguns discursos se consagraram na História como prenúncio ou advento de um “novo tempo, apesar dos perigos”.

Num amplo arco, recordemos, entre tantas, algumas falas de repercussão sísmica, como o audacioso discurso “E eu não sou uma mulher”?, da estadunidense Sojourner Truth, ex-escravizada que demoliu a Women’s Rights Convention, em Ohio. Na ocasião, 1851, Truth questionou porque as mulheres brancas eram privilegiadas e as mulheres negras vistas como inferiores, intelectual e fisicamente, úteis somente para o trabalho braçal.

Menção obrigatória deve ser feita também ao discurso de posse de Nelson Mandela (“Nosso maior medo não é sermos inadequados. Nosso maior medo é que nós somos poderosos além do que podemos imaginar. É nossa luz, não nossa escuridão, que mais incomoda…”). No mesmo diapasão, está o discurso memorável de Martin Luther King (“Eu tenho um sonho”).

O celebrado “Saio da vida para entrar na História”, redigido na última linha da carta-testamento de Getúlio Varga endereçada ao povo brasileiro, é outro fragmento discursivo com desdobramentos importantes, especialmente para o próprio presidente, que escreveu o documento horas antes de se matar, em 24 de agosto de 1954.

Com a missiva, Getúlio refunda a História, opera um movimento no sentido anti-horário em sua biografia, tonifica a memória sobre ele, convertendo significantes negativos em signos que favoreceram a reprojeção da imagem, então ameaçada, de estadista.

Na atmosfera do golpe, compõe a galeria de exemplos a defesa da presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2016, no Senado Federal. Embora Dilma não tenha proferido necessariamente um discurso, mas elaborado argumentos e contra-argumentos para sua defesa, pode-se destacar da sabatina a sua coragem em cair de pé, num jogo que já estava jogado. A presidenta não foi convencer as “Suas Excelências” de que era inocente, mas dizer a eles e ao povo brasileiro que tinha dignidade para olhar frontalmente em quem não tinha estatura, nem elementos, para efetuar sua condenação. Com a defesa, Dilma preparou uma memória futura para uma história que se encerraria de maneira infausta para ela.

 

“A partir de agora minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês”

 

Eis que em mais uma volta do parafuso do golpe de 2016, Moro decreta, em velocidade inédita, a prisão do presidente Lula logo depois de o recurso do habeas corpus ter sido negado pelo STF, na última quinta-feira, 5.

Reafirmando que é dono do seu destino, Lula definiu, com altivez e serenidade, o momento de sua apresentação, deixando frustrada a turma de Curitiba, a mídia hegemônica (a Globo teve que engolir a única possibilidade de transmitir os acontecimentos pelas imagens da TVT) e os paulistanos agressores de panelas, no crepúsculo desta sexta-feira, 6. Em suma, colocou todos eles no bolso. Coisa de gênio!

Mas o ponto alto da mobilização no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, que recebeu um mar de gente nestes dois dias (foi tudo muito lindo, há que se dizer), foi o discurso antológico de Lula, que pode ser comparado a um rio com múltiplos afluentes, por ser indutor de esperanças várias. Lula provocou estímulos inabarcavelmente amplos. De sua fala surgiram vários rebentos de maternidade/paternidade coletiva: assim como Luther King ele também sonhou (e realizou), falou do que assusta os inimigos, como mencionou Mandela, e não se curvou na derradeira hora, seguindo a atitude exemplar de Dilma Rousseff.

O pronunciamento de Lula guarda semelhanças com a carta-testamento de Getúlio. Ambos nos ensinaram, a partir de ângulos diferentes, que é o discurso que funda a História e não o contrário. Tema espinhoso que habita os arredores da filosofia da linguagem, das teorias do discurso e da enunciação, o par discurso X história é próprio da luta política. Manejá-lo bem, é saber estabelecer parâmetros precedentes para o que se diz e, pela fala, restaurar a história e o movimento do mundo.

A psicanálise nos ensinou que a realidade é o discurso, que o seu habitat natural é a linguagem. Mas os discursos e, portanto, as realidades que fundam e definem, não são quaisquer coisas: são articulações (relações) determinadas, estruturam o mundo histórico-social e são por ele estruturadas. Além disso, são passíveis de transformações e têm funções.

Pode-se insistir, com razão, que ao contrário de Getúlio Vargas, Lula não opera um movimento anti-horário para dignificar o seu passado. Não. Ele não precisa disso. O seu pronunciamento exerce uma função indispensável num presente que prepara dias cada vez mais difíceis para todos nós: ele possibilita que voltemos a sonhar com um futuro em que prosperidade, justiça e igualdade sejam cimentos para a edificação de um outro país.

Num mundo e num país poliperspectivamente partido, quando Moro anuncia que “já era” para Lula, eis que ele inverte, com o pronunciamento, os elementos dessa equação e anuncia que na verdade tudo só está começando. “A partir de agora minhas ideias vão se misturar com as ideias de vocês.”

Vindo de onde veio, é um homem forte, audacioso que, na condição de prisioneiro político, coloca o judiciário brasileiro no subsolo da História, ao passo que o pé direito de sua edificação política ficou mais alto (mas as mãos que a construíram seguiram certamente à esquerda). Lula mitou again!

 

veia neste link a transcrição, na íntegra, do discurso de Lula

#LulaLivre

 

***Rosane Borges, 42 anos, é jornalista, professora universitária e autora de diversos livros, entre eles “Esboços de um tempo presente” (2016), “Mídia e racismo” (2012) e “Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro” (2004).

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

Natal ontem e hoje, lá e cá

Por Frei Gilvander Moreira¹ Coragem! “Não tenham medo! Eu vos anuncio uma notícia libertadora, que será grande alegria para os povos: hoje, na cidade de