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Política

“A lei é para todos”

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 Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na UFBA

“A lei é para todos”. É com esse mantra, repetido à exaustão, que a mídia hegemônica tenta justificar a prisão de Lula.

É assim que a fábrica de narrativas do golpe neoliberal tenta legitimar a prisão, em um processo para lá de controverso, da maior liderança popular que o Brasil já teve.

Mas a realidade é arisca e o povo de burro tem nada não.

Como justificar a prisão de Lula se Aécio Neves está livre, leve e solto?

Sim, Aécio Neves está solto, mesmo tendo recebido dinheiro de frigorífico, mesmo sendo flagrado em áudio planejando assassinato e aprontando todo tipo travessuras.

As pessoas perguntam em tudo quanto é canto: e o Aécio? Tá solto por quê? Como pode tá solto?

O departamento de jornalismo da rede globo, liderado por Ali Kamel, já identificou o problema e já inventou a sua narrativa.

É essa narrativa, os seus desdobramentos e a sua relação com o golpe neoliberal em curso no Brasil o abacaxi que tento descascar neste ensaio.

Vamos devagar, despacito, que o abacaxi é cascudo.

Acompanhado de seus cupinchas, Ali Kamel, em um primeiro momento, usou a não prisão de Aécio Neves para atacar o “foro privilegiado”.

Essa talvez tenha sido a última serventia de Aécio Neves ao golpe que ele ajudou a parir lá em 2014: simbolizar a dimensão nefasta do “foro privilegiado”.

Sei bem que em tempos de criminalização da política, essa discussão é muito difícil, muito difícil mesmo. Mas precisamos enfrentá-la, pois está aqui, exatamente aqui, o núcleo duro do projeto institucional do golpe neoliberal: fragilizar a democracia, colocando-a de joelhos diante de um sistema de justiça que já mostrou ser facilmente pautado pelo império da comunicação.

Não que o sistema de justiça seja uma mera marionete nas mãos da mídia hegemônica. Dizer isso significaria apresentar uma leitura míope da crise que desconsiderara os recentes conflitos travados entre os juízes e a imprensa, envolvendo o auxílio moradia e outros privilégios funcionais que o sistema de justiça serve numa bandeja de prata aos seus servidores.

O que estou querendo dizer é que o sistema de justiça tem seus interesses corporativos, que se manifestam na defesa de benefícios e gordas pensões que oneram as contas públicas e, por isso, contrariam o projeto neoliberal.

O neoliberalismo quer um Estado leve, enxuto, barato.

Deu curto-circuito na bolsa de valores? Chama o Estado pra limpar a sujeita!

O Estado precisa estar pronto, saudável, com contas equilibradas.

O objetivo central do golpe está aqui: adaptar o Estado brasileiro aos interesses do rentismo. Pra isso, é necessário esvaziar a função social do Estado, tal como foi prevista na Constituição de 1988.

O golpe não foi contra Dilma, não foi contra Lula, não foi contra o PT.

O golpe é contra o contrato social e político da Nova República, que instituiu o Estado como agente provedor de direitos sociais.

O neoliberal quer o Estado mínimo, mas só para os pobres.

Para o rentista, o Estado deve ser máximo. O rentista não gosta da insegurança do mercado. O rentista gosta mesmo é do capitalismo sem riscos. O rentismo reúne o pior de dois mundos: a rapina burguesa e o ócio aristocrata.

O rentismo, com seu desprezo pelos investimentos na cadeia produtiva, é o verdadeiro inimigo de todos nós, inclusive do sistema de justiça.

Mas mesmo assim, mesmo com esse conflito potencial, a aliança entre a mídia hegemônica e o sistema de justiça continua sendo a força motora do golpe. A mídia hegemônica tem grande capacidade de pautar o comportamento dos magistrados, como demonstram a atuação de personagens como Joaquim Barbosa, Sérgio Moro, Carmem Lúcia e Luís Roberto Barroso.

Todos eles, de alguma forma, trabalham com os dois olhos na “opinião pública”. O problema é que “opinião pública”, como bem lembrou Gilmar Mendes, nada mais é que “opinião publicada”, é aquilo que a imprensa hegemônica, dona do monopólio da informação, diz ser a opinião pública. Tempos estranhos esses em que Gilmar Mendes se transforma em referência.

Enfim. Retomando o fio.

O argumento de que Aécio Neves não foi preso por conta do “foro privilegiado” é falacioso em diversos aspectos e traduz o interesse do golpe neoliberal em tutelar a soberania popular.

Explico.

1°) O termo correto não é “foro privilegiado”, mas, sim, “prerrogativa de foro”. Não se trata de mera nomenclatura. No imaginário da população, o termo “foro privilegiado” está associado à impunidade, à blindagem a uma classe política corrupta.

Chamar a “prerrogativa de foro” de “foro privilegiado” é uma estratégia para jogar a população contra a classe política, para fazer o povo negar a sua própria soberania. Pois é isso que acontece quando negamos a política: abrimos mão de nossa soberania e assinamos um contrato de servidão voluntária.

O instituto da prerrogativa de foro não significa impunidade, mas, sim, uma garantia fundamental para a democracia moderna representativa, que é fundada na premissa de que a soberania pertence ao povo e é exercida pelo voto.

O político eleito, portanto, representa a soberania de uma parcela da sociedade relevante o suficiente para se fazer representar por um mandato público.

A prerrogativa de foro tem o objetivo de proteger esse mandado do arbítrio do sistema de justiça, que é constituído por servidores que não são eleitos, que não representam a soberania popular.

Essa proteção, entretanto, não se dá pela impunidade. O político eleito pode, e deve, ser processado e julgado, mas apenas pela corte que, ao menos em teoria, é a mais qualificada da justiça brasileira: o Supremo Tribunal Federal, cujos ministros são escolhidos pelo presidente da República, que é eleito, que representa a soberania popular.

É como se a escolha dos ministros do STF pela instituição Presidência da República significasse a transferência da soberania popular.

O povo escolhe o presidente. O presidente escolhe os ministros. Logo, o povo também escolhe os ministros.

Segundo a prerrogativa de foro, somente esses ministros, cuja autoridade também deriva da soberania popular, são legítimos para julgar os políticos eleitos.

O conceito “prerrogativa de foro” faz todo sentido.

Sem a prerrogativa de foro qualquer juiz de primeira instância teria poder para desestabilizar o mandato que a soberania popular emprestou ao político eleito.

Entendem o risco que isso significa?

Um exemplo pra ilustrar meu argumento, para que não saiam por aí dizendo que estou defendendo político corrupto:

Uma liderança de bairro, oposição às forças políticas dominantes naquela localidade, consegue vencer as eleições e ocupar um mandato como deputado (a) no Legislativo estadual.

Sem a prerrogativa de foro pra proteger o mandato dessa liderança, um juiz de primeira instância, na vara local, alinhado com os caciques derrotados, poderia constranger o representante da soberania popular.

Ou seja, bastaria apenas um juiz, um único juiz mal intencionado, para processar a liderança eleita pela coletividade. A democracia ficaria fragilizada e nas mãos de um poder sobre o qual a soberania popular não tem nenhuma interferência.

2°) É mentira dizer que o senador Aécio Neves não foi processado e condenado por causa do instituto da prerrogativa de foro.

O mesmo STF que lavou as mãos quando permitiu que o Senado desse a última palavra no processo contra Aécio Neves, autorizou a prisão do senador Delcídio do Amaral, do Partido dos Trabalhadores, em pleno exercício do mandato.

Entendem? Aécio e Delcídio, como senadores da República, tinham a mesma prerrogativa de foro, o mesmo direito de serem julgados pelo Supremo Tribunal Federal.

O Supremo Tribunal Federal julgou e condenou Delcídio do Amaral, que teve seu mandato cassado pelos seus colegas, no plenário do Senado da República.

O mesmo STF escolheu não processar Aécio Neves, que teve seu mandato preservado, também no Senado da República.

O próprio Aécio Neves votou pela cassação de Delcídio do Amaral. O cinismo no Brasil parece não ter limites.

Ou seja, o STF, por uma decisão política, escolheu não processar Aécio Neves.

O problema não está na prerrogativa de foro. O problema está no STF, que se tornou o principal avalista do golpe neoliberal, um golpe que tem o objetivo de perseguir todas as lideranças e partidos políticos que de alguma forma possam atrapalhar o desmonte do Estado brasileiro.

Pra concluir, adianto aquela que será a próxima narrativa mobilizada pela mídia hegemônica para tentar justificar a prisão do presidente Lula. O golpe neoliberal não fecha sem a total destruição política do presidente Lula.

Aécio Neves será preso!

Com isso, o golpe neoliberal agradará a todos.

Agradará aos justiceiros que sairão por aí gritando “A lei é pra todos!”.

Agradará também a esquerda, que se sentirá vingada ao ver o candidato derrotado nas eleições de 2014, o mesmo que ajudou a desestabilizar o país, sendo devorado pelo monstro que alimentou.

Uns e outros comemorarão como tolos, pois Aécio Neves já não serve pra nada. É um defunto político. É um boi magro que o vaqueiro experiente entrega às piranhas para conseguir atravessar o rio, são e salvo com o restante do rebanho.

Ao entregar Aécio Neves para ser comido, o golpe neoliberal estará protegendo a sua vaca sagrada, o único tucano que tem alguma viabilidade eleitoral: Geraldo Alckmin, o Santo!

Esse aí é privilegiado, com foro ou sem foro. Em Alckmin, nenhum juiz relará um dedo sequer.

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2 Comments

2 Comments

  1. Salvador César Costa

    16/04/18 at 11:01

    Quero na cadeia todos que nos roubam e são golpistas!!!! Além de devolverem tudo que nos roubaram….. assim sim a justiça valerá…. alguma coisa!!!

  2. Marcia Macedo

    16/04/18 at 11:49

    Uma análise muito lúcida! Apenas lembro que a frase sobre opinião pública/publicada, atribuída a Gilmar Mendes, é de Winston Churchill.

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Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

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Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

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#EleNão

EDITORIAL – HOJE É DIA DE LUTO! PERDEMOS O MENINO GABRIEL

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Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.

Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…

O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus

Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.

Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.

Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.

Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.

Obrigada, querido companheiro!

Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.

 

 

Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres

 

Grande personagem da nossa história: Gabriel, um brasileiro

 

 

 

 

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Golpe

Presidência cavalga para fora dos marcos do Estado de Direito

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Por Ruy Samuel Espíndola*

O Governo, num Estado de Direito, deve ser eleito, e, depois de empossado, deve ser exercido de acordo com regras pré-estabelecidas na Constituição. Essas são as regras do jogo, tanto para a tomada do poder, quanto para o seu exercício, como ensina Norberto Bobbio. Governo entendido aqui como o conjunto das instituições eletivas, representadas por seus agentes políticos eleitos pelo voto popular. Governo que, numa República Federativa e Presidencialista como a brasileira, é exercido no plano da União Federal, pela chefia do Executivo, pela Presidência da República e seus ministros, como protagonistas e pelo Congresso Nacional, com os deputados federais e senadores, como coadjuvantes.

Ao Governo, exercente máximo da política, devem ser feitas algumas perguntas, para saber de sua legitimidade segundo o direito vigente: quem pode exercê-lo e com quais procedimentos? Ao se responder a tais questões, desvela-se o mote que intitula este breve ensaio.

Assim, pode-se dizer “Governo constitucional” aquele eleito segundo as regras estabelecidas na Constituição: partido regularmente registrado, que, em convenção, escolheu candidato, que, por sua vez, submetido ao crivo do sufrágio popular, logrou êxito eleitoral. Sufrágio que culminou após livre processo eleitoral, no qual se assegurou, em igualdade de condições, propaganda eleitoral e manejo de recursos para a promoção da candidatura e de suas bandeiras, e que não sofreu, ao longo da disputa, nenhum impedimento ou sanção do órgão executor e fiscalizador do processo eleitoral: a justiça eleitoral. Justiça que, através do diploma, habilita, legalmente, o candidato escolhido nas urnas, a se investir de mandato e exercê-lo. Um governo constitucional, assim compreendido, merece tal adjetivação jurídico-politica, ainda que durante o período de campanha ou antes ou depois dele, o candidato e futuro governante questione o processo de escolha, coloque em dúvida sua idoneidade, ou mesmo diga que não estará disposto a aceitar outro resultado eleitoral que não o de sua vitória, ou, após conhecer o resultado da eleição, diga que o conjunto de seus adversários podem mudar para outros países, pois não terão vez em nossa Pátria e irão para a “ponta da praia” .

O Governo constitucional, sob o prisma de seu exercício, após empossado, é aquele que respeita a mínimas formas constitucionais, enceta suas políticas mediante os instrumentos estabelecidos na Constituição: sanciona e publica leis que antes foram deliberadas congressualmente; dá posse a altas autoridades que foram sabatinadas pelas casas do congresso; não usa de sua força, de suas armas, a não ser de modo legítimo, respeitando a oposição, as minorias e os direitos fundamentais das pessoas e de entes coletivos; administra os bens públicos e arrecada recursos públicos de acordo com a lei pré-estabelecida, sem confisco e de modo impessoal; acata as prerrogativas do Judiciário e do Legislativo, ainda que discorde ou se desconforte com suas decisões; prestigia as competências federativas, tanto legislativas, quanto administrativas, etc, etc. Promove a unidade nacional, em atitudes, declarações públicas e políticas concretamente voltadas a tal fim.

O “Governo constitucionalista”, por sua vez, além de ascender ao poder e exercê-lo, tendo em conta regras constitucionais, como faz um governo constitucional, defende o projeto constitucional de Estado e Sociedade, através do respeito amplo, dialógico e progressivo do projeto constituinte assentado na Constituição. Respeita a história política que culminou no processo reconstituinte e procura realizá-lo de acordo com as forças políticas e morais de seu tempo, unindo-as, ainda que no dissenso, através da busca de consensos mínimos no que toca ao projeto democrático e civilizatório em constante construção sempre inacabada. E governo constitucionalista, no Brasil, hoje, para merecer esse elevado grau de significação político-democrática e civilizatória, precisa respeitar a gama de tarefas e missões constitucionais descritas em inúmeras normas constitucionais que tutelam, entre outros grupos sociais, os índios, os negros, os LGBT, os ateus, os de inclinação política ideológica à esquerda, ou a à direita, ou ao centro, sem criminalização ou marginalização no discurso público de quaisquer tendências ideológicas. É preciso o respeito ao pluralismo político e aos princípios de uma democracia com níveis de democraticidade que não se restringem ao campo majoritário das escolhas políticas, mas, antes, se espraiam para as suas dimensões culturais, sociais, econômicas, sanitárias, antropológicas e sexuais etc, etc.

Governos que ascenderam sem respeito a normas constitucionais, como foi o de Getúlio Vargas em 1930 e o que depôs João Goulart em 1964, são inconstitucionais. E governo que se exerce fechando o congresso e demitindo ministros do STF, como se fez em 1969, com a aposentação compulsória dos ministros da Corte Suprema Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, são governos inconstitucionais, arbitrários, autocráticos, fora do projeto civilizatório e democrático de 1988.

O ponto crítico de nosso ensaio é que um governo pode ascender de modo constitucional, mas passar a ser exercido de modo inconstitucional e/ou de modo inconstitucionalista. O governo do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, é um exemplo deste último e exótico tipo: consegue ser inconstitucional e inconstitucionalista no seu exercício, embora investido de maneira constitucional.

E o conjunto de declarações da reunião ministerial de 22/4, dadas a conhecer em 22/5, é um exemplo recente a elucidar nossa asserção: na fala presidencial, a violação ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CF) ressoa quando afirma que deseja agir para que familiares seus e amigos não sejam prejudicados pela ação investigativa de órgãos de segurança (polícia federal). Na fala do ministro da Educação, quando afirma “que odeia” a expressão “povos indígenas” e os “privilégios” garantidos a esses no texto constitucional, o que indica contrariar o constitucionalismo positivado nos signos linguístico-normativos “população”, “terras”, “direitos”, “língua”, “grupos” e “comunidades indígenas”, constantes nos artigos 22, XIV, 49, XVI, 109, XI, 129, V, 176, § 1º, 215, § 1º, 231, 232 da CF e 67 do ADCT. Essa fala ministerial, aliás, ressoa discurso de campanha de 2018, quando o então candidato disse, no clube israelita de São Paulo: “No meu governo, não demarcarei nenhum milímetro de terras para indígenas. Também há inconstitucionalismo evidente na fala do Ministro do Meio Ambiente quando defendeu que se fizessem “reformas infralegais” “de baciada”, “para passar a boiada”, “de porteira aberta”, no momento em que o País passa pela pandemia de covid-19, pois o foco de vigília crítica da imprensa não seria o tema ambiental, mas o sanitário e pandêmico, o que facilitaria os intentos inconstitucionalistas contra a matéria positivada nos arts. 23, VI, 24, VI e VII, 170, VI, 174, § 3º, 186, II, 200, VII, 225 e §§ da CF.

Outras falas e atitudes presidenciais ainda mais recentes, e de membros do governo, contrastam com as normas definidoras da separação de poderes, da federação e da democracia, princípios fundamentais estruturantes de nossa comunidade política naciona. A nota do general Augusto Heleno, chefe do GSI, ao dizer que eventual requisição judicial do celular presidencial pelo STF, levaria à instabilidade institucional, traz desarmonia e agride ao artigo 2º, caput, da Constituição Federal. “Chega, não teremos mais um dia como hoje” e “Decisões judiciais absurdas não se cumprem”. Essas falas presidenciais, após o cumprimento de mandados judiciais no âmbito do inquérito judicial do STF, ordenados pelo Ministro Alexandre Moraes, agridem o mesmo dispositivo constitucional, com o agravante do artigo 85, II e VIII, da CF, que positiva ser crime de responsabilidade do presidente atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário. E o atentado contra a democracia poderia ser também destacado na fala do filho do Presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro, que declarou estarmos próximos de uma ruptura e que seu pai seria chamado, com razão, de ditador, a depender das atividades investigativas do judiciário, tomadas como agressões ao governo de seu genitor. E o atentado contra a federação se evidencia nas falas presidenciais contra os governadores e prefeitos que estão a tomar medidas sanitárias no combate a covid-19, em que o presidente objetiva desacreditá-los e incitar suas populações contra esses chefes dos executivos estaduais e municipais, para que rompam o isolamento social, com agressão patente aos artigos 1º e 85, II, da Constituição. Os ataques diários aos órgãos de imprensa e a jornalistas, assim como sua atitude contra indagações de repórteres, também afrontam o texto da constituição da República: 5º, IX e XIV, 220 §§ 1º e 2º, protegidos pelo art. 85, III, da CF.

Em nossa análise temporalmente situada e teoricamente atenta, o conjunto de declarações públicas conhecidas do então deputado federal Jair Bolsonaro, desde seu primeiro mandato parlamentar, alcançado em 1990, portanto após o marco constitucional de 1988, embora constituam falas inconstitucionais e inconstitucionalistas, não servem para descaracterizar a “constitucionalidade” de sua eleição em 2018. Embora ainda reste, junto ao TSE, o julgamento de ação de investigação judicial eleitoral por abuso dos meios de comunicação social, que poderão ganhar novos elementos de instrução resultantes da CPI no Congresso sobre fake news e do inquérito judicial do STF com objeto semelhante. Sua eleição presidencial se mantém válida, assim como sua posse, enquanto essa ação eleitoral não for julgada definitivamente  pela Suprema Corte eleitoral brasileira.

Algumas de suas falas públicas inconstitucionalistas e inconstitucionais pré-presidenciais devem ser lembradas: “Erro da ditadura foi torturar e não matar”; “O Brasil só vai mudar quando tivermos uma guerra civil, quando matarmos uns trinta mil, não importa se morrerem alguns inocentes”; “Os tanques e o exército devem voltar às ruas e fechar o congresso nacional”, etc. E durante o processo eleitoral de 2018, falas inconstitucionalistas também foram proferidas: “No meu governo, não demarcarei um milímetro de terras para indígenas”. “O Brasil não tem qualquer dívida com os descendentes de escravos. Nossa geração não tem culpa disso, mesmo porque os próprios negros, na África, escravizavam a si mesmos”, entre outras.

A resposta a nossa indagação: embora tenhamos um governo eleito de modo constitucional – até decisão final do TSE -, ele está sendo exercido de modo inconstitucional e de modo inconstitucionalista. A Presidência da República atual, caminha, inconstitucionalmente para fora do marco do Estado de Direito. E o passado pré-presidencial do presidente da República demonstra que o seu inconstitucionalismo governamental não é episódico e sim coerente com toda a sua linha de pensamento e ação desde seu primeiro mandato parlamentar federal.

  • Advogado – mestre em Direito UFSC Professor de Direito Constitucional – Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Membro Consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. 

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