por Luís Bravo *
Pluralidade de justiças e restauração
No texto publicado em 09 de agosto último, por este Observatório do Judiciário, Denise da Veiga Alves e Giselle Mathias iniciam sua reflexão com a seguinte constatação: “naturalizou-se nomear o Poder Judiciário de ‘Justiça’.” De início, durante a minha época de estagiário de Direito, eu ficava perplexo em ver nas capas dos diversos autos que eu manuseava a palavra “Justiça Pública” no campo “autor(a)”, isto é, a parte responsável por ajuizar a ação criminal. Como que aquele grandioso ideal, fim mesmo do Direito como ciência e corpo normativo, há milênios objeto da exploração obstinada de filósofos, pensadores, militantes, enfim juristas de todos os cantos do mundo, se apresenta processualmente personificado nos autos de quase todas as ações criminais, reduzido a uma prerrogativa institucional para o exercício da pretensão acusatória? Pensava eu.
Sob uma perspectiva mais pragmática, eu me via algo desmotivado na medida em que os réus defendidos por mim estavam colocados contra ninguém menos que a própria Justiça Pública. Isso me levava a ponderar como o apelo simbólico disso poderia se traduzir, como de fato se traduz, numa perniciosa desigualdade processual. É como se a mesma censura jurídica, resultante de uma decisão condenatória, já estivesse declarada desde o início, a despeito de qualquer devido processo.
No final das contas, eu acabei, também, naturalizando essa referência parcializada à Justiça Pública, não sem, entretanto, trazer comigo um grande desconforto pelo testemunho, como advogado criminalista, de que a fisiologia do sistema de justiça criminal vigente alimenta ciclos viciosos de trauma e humilhação que perpetuam mais injustiças.
Saber é uma atitude proativa (i)
Na minha busca por possibilidades menos destrutivas de como se lidar com conflitos sociais, juridicamente rotulados como criminalmente relevantes, deparei-me com o conceito de Justiça Restaurativa. Desacompanhado de qualquer predicado, o significado mais corrente de justiça já traz consigo um peso retributivo: nos esquecemos com muita facilidade que isso é fruto de uma construção humana.
A sacralidade mitológica a envolver o conceito retributivo de justiça, tão vivo na nossa cultura ocidentalizada, inibe olhares curiosos dedicados a uma exploração dos seus sustentáculos culturais.
Indispensável nos propormos a uma reflexão baseada no reconhecimento de que o conceito de justiça, como qualquer um outro na infinitude do repertório linguístico humano, é uma construção cultural, e, por isso mesmo, temporário, impermanente, circunstancial. Isto é, contingente a contextos históricos.
O ser humano produtor, ou perpetuador, de conhecimento está, sempre, inserido em um contexto cultural que o sustenta e o influencia. Por mais importante que seja a noção, ou noções, de justiça como (re)equilíbrio convivial, há de se atentar para tendências de imposições universais que, por se colocarem como conceitos absolutos, acabam justificando violências e autoritarismos. Acho importante ter-se consciência disso.
Em 1973, ao apresentar uma crítica às formas e verdades jurídicas como relações de poder, Michel Foucault (ii) afirmou: “o próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história.”
Diante da crise de legitimidade do sistema de justiça criminal, sinto uma urgência por se contextualizar historicamente o conceito de justiça retributiva para, desmistificando-a, abrir possibilidades para outras justiças, menos violentas e mais construtivas, benfazejas às necessidades humanas exteriorizadas em cada contexto conflitivo.
He oikoumene ge (iii)
Após a explosão de culturalidade do Paleolítico Superior, há uns 50 mil anos atrás, comunidades humanas passaram a se organizar em torno do poder do feminino. A fertilidade da terra, que provia vida, era representada por deidades femininas. A ordem social era matriarcal. Paz era resultante de constantes esforços para a manutenção de harmonia dos fluxos energéticos que regiam um ambiente ainda pouco compreendido. Nessa época, grande parte da orla oriental do Mar Mediterrâneo era composta por povoados matriarcais.
Há, aproximadamente, 3 mil anos, a ascensão da cultura Greco-helênica. Ao mesmo tempo em que disseminava tecnologias inovadoras, no âmbito da linguagem, da escrita, da matemática, da geometria e da filosofia, ela, em grande parte, se baseava em visões de mundo patriarcais que, para a expansão do poder, via o diferente, o outro, como inadequado, inferior. A tensão dessa fronteira entre a cultura Greco-helênica e outras culturas se fazia clara na forma como, então, se descrevia a ideia de civilização: “a parte habitada do mundo” (he oikoumene ge). Ou seja, o mundo além dos limites, geográficos e culturais, conhecidos pelos gregos era tido como não habitado.
O outro, para ser reconhecido humano, devia se submeter às leituras de mundo impostas pela expansão civilizatória Greco-helênica. Uma das formas mais sutis e, ao mesmo tempo, violentas de sustentar esse tipo de expansão dominadora era pela apropriação e distorção dos símbolos e mitos das culturas tidas como não civilizadas. Deidades femininas de povos matriarcais do mediterrâneo, que representavam paz pela fertilidade, luxúria, e a sazonalidade da mãe-natureza, sofreram dessa apropriação. Um grande exemplo disso são as horae, que em sua essência serviam a uma necessidade de organizar visões de mundo com base em representações dos ciclos naturais, mais especificamente das estações climáticas. Nomeadas, a partir de então, como horae, se tornaram filhas de Zeus e Themis, em número de três nas versões mais correntes: Eunomia (ordem); Eirene (paz); Diké (justiça).
Iustitia: Diké de olhos vendados
Constituído sobre o etos da guerra, que passou a predominar em quase toda região do Mediterrâneo, o Império Romano ascende apoiado no referencial cultural Greco-helênico. Ocorre, então, uma série de outras usurpações culturais. Dentre elas, Diké, de olhar altaneiro, espada e balança em riste, torna-se Iustitia, doravante com venda nos olhos, símbolo de uma institucionalização inédita: a da apropriação, pela autoridade imperial, das divergências e conflitos sociais para a prescrição de uma fórmula resolutiva com o intuito de se impor a violenta Pax Romana. Um modelo de perpetuação de dominação a serviço da preservação de privilégios por relações de poder. Um sistema de controle baseado em regras criadas, compiladas e aplicadas por um poder centralizado em homens, patriarcas, que se assumiam detentores de uma capacidade quase que sobre-humana para pronunciar o bom do mau, o certo do errado.
A raiz etimológica ius significa depurar. (iv) A partir disso, Iustitia pode ser traduzida como o rito de tornar puro. Uma visão de mundo a reforçar o distanciamento do diferente tido como desviante, impuro, que facilita a desumanização para a inflição de violências supostamente expiatórias.
Essa essência mitológica se faz presente na nossa atual realidade jurídica. Com 3,30 metros de altura a Iustitia zela pelo nosso Supremo Tribunal Federal, com a espada no colo e livre de qualquer balança: escultura em granito de Alfredo Ceschiatti.
Para além de, não menos potentes, simbolismos, a seletividade e nocividade do sistema de justiça criminal vigente são escancaradas pelos altos índices de encarceramento, de letalidade policial, de mortandade policial, e por todos os efeitos colaterais decorrentes disso, como o problema do crime organizado e a própria criminalidade urbana. Kenarik Boujikian, desembargadora de uma câmara criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma com todas as letras: “A seletividade é um marco da justiça brasileira.”
Justiças e Pazes
O sistema de justiça criminal funciona como um monopólio de resolução prescritiva de conflitos. Desse modo, ele desconsidera a necessidade de as pessoas avaliarem as próprias dores e frustrações, conceberem as formas mais apropriadas para amainarem-nas e, então, vislumbrarem um sentido de paz verdadeiramente tangível e significativo.
Com base em dado texto legal desrespeitado por uma conduta tida como criminosa, é colocado foco na pessoa do infrator para, declarando-o culpado, impor-lhe a punição prevista em lei. Geralmente assoladas por sensações de injustiça, insegurança, incerteza, as vítimas são postas de lado, meros anteparos para a deflagração de um portentoso aparato baseado numa mecânica aparentemente asséptica que objetiva a desumanização pela privação da liberdade e a estigmatização humilhante.
Em virtude da nossa realidade relacional, o conflito é um elemento inerente à experiência humana. Subjacente a qualquer episódio conflitivo um complexo feixe de almejos e aflições que gritam por atenção. Queiramos ou não, toda essa complexidade precisa ser atendida e reelaborada. Nenhuma medida punitiva, por si só, dá conta disso. Ao contrário, seu caráter opressivo e não relacional contribui para a perpetuação de ciclos viciosos de (re)vitimização e de (re)traumatização.
Cada situação conflitiva pede por um delicado e dinâmico equilíbrio entre justiça, segurança, verdade, harmonia, dentre outros almejos, a comporem uma paz possível a dado contexto e a dado momento. (v) O reconhecimento da pluralidade de justiças e pazes, para além de respostas institucionais preconcebidas, convoca o cuidado às necessidades humanas expostas e abre espaço a possibilidades de restauração.
Ceticismo à alternativa restaurativa e o receio pelo novo, geralmente, está atrelado a um automático apego ao sistema vigente, frequentemente pelo desconhecimento de outras possibilidades de como se lidar com conflitos juridicamente rotulados como crime. Contudo, a resposta punitiva não é o único, muito menos o melhor, caminho para se lidar com conflitos.
Ana Messuti, (vi) jusfilósofa argentina, exemplifica essa resistência por alternativas ao penal ao dizer que “precisamente porque a prisão restou como única modalidade da pena, pretende-se justificar a pena justificando a prisão.”
Justiça restaurativa: convite para transformação
Howard Zehr, (vii) acadêmico norte-americano, um dos pioneiros no movimento contemporâneo de Justiça Restaurativa, gosta de afirmar que “crime é uma violação de pessoas e de relacionamentos interpessoais”. Uma mudança de foco, da lei desrespeitada para os seres humanos afetados pelos efeitos destrutivos do conflito.
Efeitos esses que, frequentemente, originam ou reforçam traumas que precisam ser cuidados para aplacar sensações, por exemplo, de insegurança, de medo, de vergonha, de ódio, de pesar. Tais necessidades são incomensuráveis: o critério de retribuição pelo sofrimento no qual se sustenta o Direito Penal é insuficiente, quando não contraproducente, para a efetivação de esforços transformativos.
A partir da vítima, passando pelos círculos familiares próximos, pela comunidade mais expandida, e pela pessoa do ofensor, leva-se em consideração as necessidades de todos os envolvidos, incentivando a (co)responsabilização para a tomada de providências para tornar as coisas melhores.
Ao lidar com o incomensurável, o esforço restaurativo se propõe à (re)construção dos significados afetados, um empenho imprescindível para o resgate de sentidos de vida abalados pelas consequências contundentes de dado conflito.
Não se trata de uma inércia diante de condutas juridicamente classificadas como crime, mas de se honrar o dever de mobilização e de ação inspirado por uma ética de cuidado baseada no respeito às relações.
De maneira abrangente, as práticas restaurativas dependem do provimento de espaços incondicionais para o acolhimento, a escuta e, possivelmente, o encontro entre as pessoas envolvidas em dado conflito para que protagonizem suas próprias transformações.
Já são significativas as iniciativas no Poder Judiciário brasileiro que promovem metodologias de Justiça Restaurativa, especialmente no âmbito da Justiça da Infância e Juventude e dos juizados especiais criminais, como a mediação vítima-ofensor e os círculos de construção de paz, por exemplo.
A meu ver, uma das maneiras mais profundas e empoderadoras de justiça restaurativa é a implementação de práticas comunitárias que, independentemente do sistema de justiça criminal, colocam esforços transformativos em prática, de maneira não-violenta, concretizando a preservação e o fortalecimento do tecido coletivo.
Nesse sentido, o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo, um polo, na Zona Sul da cidade de São Paulo, de formação de facilitadores, de disseminação e de concretização de projetos de práticas restaurativas, promoverá o Fórum de Justiça Restaurativa Comunitária no Brasil entre 28 e 30 de novembro.
- Luis Bravo é professor e facilitador. Atualmente integra a linha de Justiça Restaurativa do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo – CDHEP.
Notas
i Para essa reflexão, me inspirei, especialmente, nos pensamentos dos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, e dos filósofos Michel Foucault e Gianni Vattimo.
ii Palestra proferida por Michel Foucault na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1973. Foucault, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução: Eduardo Jardim e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2002. P 08.
iii Para essa reflexão, me inspirei, especialmente, nos pensamentos do historiador Arnold Toynbee, da historiadora Barbara G. Walker, e de Florencia Benitez-Schaefer e Wolfgang Dietrich, de quem tive a honra de ser aluno no programa de mestrado em Estudos de Paz e Conflitos da Cátedra de Estudos de Paz da UNESCO, na Universidade de Innsbruck, na Áustria, em 2014 e 2015.
iv Conclusão baseada no trabalho etimológico de P.G.W. Glare, de Douglas Harper, e de Santiago Segura Munguiá.
v Uma paz que Wolfgang Dietrich descreve como transracional (Dietrich, Wolfgang. Interpretations of Peace in History and Culture. Houndmills, Basingtoke and Hampshire: Palgrave Macmillan, 2012).
vi Messuti, Ana. O tempo como pena. Tradução: Tadeu Antonio Dix Silva, Maria Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: RT, 2003. P. 46.
vii Zehr, Howard. Justiça Restaurativa. Tradução: Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012. P. 31.
1 Essa matéria recebeu o selo 040-2018 do Observatório do Judiciário.
2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
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