Você sabia que o Código de Processo Penal (CPP) brasileiro é de 1941? Você sabe que ele regula os direitos e garantias dos cidadãos nos processos daqueles acusados de crime. Mas sabia que o CPP entrou em vigor por um decreto-lei imposto por Getúlio Vargas durante o Estado Novo?
Pois bem, aprendemos com o texto que se segue, de Aury Lopes e Alexandre Morais da Rosa, que o Código de Processo Penal do Brasil é de 1941 e que é, segundo eles, “autoritário e assumidamente fascista (basta ler a exposição de motivos)”.
Fomos ler a Exposição de Motivos do projeto do Código de Processo Penal do Brasil de Francisco Campos, em setembro de 1941, e encontramos o seguinte parágrafo:
“As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico‑penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código.”
Não precisamos continuar a leitura da exposição de motivos para concordar com os autores, não é mesmo?
Temos aqui no nosso país, portanto, uma penosa convivência entre um Código de Processo Penal de cunho autoritário e a democrática Constituição de 1988. Além dessa contraposição, não está efetivado, no país, o cumprimento completo dos preceitos da Convenção Americana de Direitos Humanos, nos ensinam os autores.
Bem, vamos ao ótimo texto de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa, para o Consultor Jurídico:
Agente público que faz o que não pode dá causa à impunidade
Recordando a clássica lição de James Goldschmidt[1], o processo penal de uma nação não é outra coisa que um termômetro dos elementos autoritários ou democráticos de sua Constituição, de modo que a uma Constituição autoritária teremos um processo penal inquisitório e autoritário; mas, por outro lado, diante de uma Constituição democrática, inexoravelmente teremos que democratizar o processo penal.
Esse é um dos desafios não totalmente superados pelo processo penal brasileiro, na medida em que temos um CPP [Código de Processo Penal] de 1941, autoritário e assumidamente fascista (basta ler a exposição de motivos), convivendo com uma Constituição democrática de 1988. Essa acoplagem e conformidade constitucional e convencional (CADH) não está de todo efetivada e cobra um preço altíssimo no dia a dia forense, especialmente pela baixa interiorização e efetivação de tais garantias fundamentais por parte dos tribunais.
A busca domiciliar é uma medida extremamente invasiva e violenta,
gerando grave restrição nos direitos fundamentais da dignidade e proteção do domicilio,
na medida em que “a casa deve(ria) ser um asilo inviolável do individuo”.
Um dos fatores de maior fragilização do direito fundamental é a possibilidade de entrada por parte de agentes do Estado em caso de “flagrante delito” ou ainda “com consentimento do morador” (pois tal consentimento deveria se dirigir apenas a outros particulares, não a agentes do Estado, por evidente constrangimento situacional). Contribui para o abuso a conjugação das hipóteses de crime permanente = flagrante permanente, dando margem a que a polícia ingresse no domicílio a qualquer hora do dia ou da noite, sem o consentimento do morador e sem autorização judicial.
Nessa perspectiva, temos insistido que, mesmo no caso de “crime permanente”, é imprescindível que exista “justa causa” prévia à entrada na casa, elementos robustos prévios ao ingresso e que permitam inferir a existência do crime permanente. Não pode a situação de flagrância ser imaginada. Essa linha argumentativa também foi acolhida pelo STF no REXT 603.616 e no STJ (importante ler o Recurso Especial 1.574.681-RS, rel. min. Schietti Cruz, j. 20/4/2017).
Na mesma perspectiva, Alexandre Morais da Rosa exemplifica que, “dito diretamente: deve ser posta e não pressuposta/imaginada. Não basta, por exemplo, que o agente estatal afirme ter recebido uma ligação anônima, sem que indique quem fez a denúncia, nem mesmo o número de telefone, dizendo que havia chegado droga, na casa ‘x’, bem como que ‘acharam’ que havia droga porque era um traficante conhecido, muito menos que pelo comportamento do agente ‘parecia’ que havia droga. É preciso que o flagrante esteja visualizado ex ante. Inexiste flagrante permanente imaginado. Assim é que a atuação policial será abusiva e inconstitucional, por violação do domicílio do agente, quando movida pelo imaginário, mesmo confirmado posteriormente. A materialidade estará contaminada pela árvore dos frutos envenenados”[2].
Também é preciso repensar a questão do “consentimento” dado pelo morador à autoridade policial.
Duas situações[3]:
a. Quando alguém está cautelarmente preso (prisão preventiva ou temporária) ou em flagrante e é conduzido pela autoridade policial até sua residência, “consentindo” que os policiais ingressem no seu interior e façam a busca e apreensão, entendemos que há uma inequívoca ilegalidade, pois estamos diante de um consentimento viciado, inválido portanto. É insuficiente o consentimento dado nessa situação, por força da intimidação ambiental ou situacional a que está submetido o agente. Deve-se considerar viciado o consentimento dado nessas situações e, portanto, ilegal a busca domiciliar, pois há um inegável constrangimento situacional. Analisando um caso desses, o Tribunal Supremo da Espanha (STS, 13 de junho de 1992)[4] entendeu na mesma linha, ou seja, de que o detido não está em condições de expressar livremente sua vontade e existe uma “intimidação ambiental” que macula o ato:
O problema radica em saber se um detido ou preso está em condições de expressar sua vontade favoravelmente a busca e apreensão, em razão precisamente da privação de liberdade a que está submetido, o que conduziria a afirmar que se trata de uma vontade viciada por uma intimidação sui generis… e dizemos sui generis porque o temor racional e fundado de sofrer um mal iminente e grave em sua pessoa e bens, ou pessoa e bens de seu cônjuge, descendentes ou ascendentes, não nasce de um comportamento de quem formula o convite ou pedido de autorização para realizar a busca com o consentimento do agente, senão da situação mesma de preso, isto é, de uma intimidação ambiental (grifo e tradução nossa).
Nessa perspectiva, a busca e apreensão em domicílio de imputado cautelarmente preso somente pode ser realizada com mandado judicial.
Há uma presunção de vício de consentimento em decorrência da situação em que se encontra.
b. Insuficiência de consentimento em se tratando de agentes públicos. Outra linha de argumentação, apontando para a ilegalidade da busca domiciliar feita por autoridades públicas com base no consentimento do morador (mesmo estando em liberdade), vai no sentido de que “inexiste previsão legal de busca domiciliar mediante o mero e suposto consentimento do proprietário, já que a anuência, quando de fato há, é evidentemente dada sob constrangimento. Ingresso não autorizado judicialmente, quando as investigações poderiam facilmente ter conduzido à representação por mandado de busca e apreensão. Pela clara violação ao art. 5º, IX, da Constituição Federal, deverá ser decretada nula a apreensão dos objetos na residência do réu, remanescendo apenas a apreensão decorrente da busca pessoal e as provas dela derivadas”.
Esse é o entendimento da 3ª Câmara Criminal do TJ-RS (rel. des. Diógenes V. Hassan Ribeiro, Processo 70058172628)[5], que parte da premissa de que quando a Constituição fala em “consentimento” isso não se dirige aos agentes do Estado, quaisquer que sejam, pois esses devem, previamente, obter o mandado judicial. Portanto, quanto ao consentimento, essa autorização constitucional refere-se a particulares cujo ingresso e permanência é autorizado pelo proprietário para afastar o crime de invasão de domicílio do artigo 150 do CP.
Em que pese o tema continuar sendo controvertido, gradativamente os tribunais começam a decidir de forma mais criteriosa e conforme o texto constitucional, a exemplo das decisões do STF e STJ citadas anteriormente.
Agora surge mais uma interessante decisão no âmbito do TJ-SP (Apelação Criminal 0011532-88.2017.8.26.0320, 2ª Câmara Criminal, rel. des. Sergio Manzina Martins). Tratava-se, em síntese, de um caso no qual guardas-municipais receberam “denúncia anônima” e fizeram uma busca domiciliar, sem mandado judicial, sob o pretexto de “consentimento do morador”. Encontrando drogas no interior, foi efetivada a apreensão e prisão em flagrante do morador.
O acusado foi abordado em frente à sua casa
e realizada a apreensão no interior do domicílio onde a droga estava ocultada.
O primeiro problema analisado pelo TJ-SP foi: pode a Guarda Municipal exercer atividade investigatória dessa forma? Não. Inicialmente, explica o relator, os guardas realizaram autêntica atividade policial em inequívoca investigação de fato criminoso (quando deveria ter levado ao conhecimento da autoridade policial competente). “Não estavam visualizando, naquele momento, nenhuma situação imediata de flagrância, senão, munidos de uma simples noticia de crime, passaram pretensiosamente a investigá-la como se policiais fossem. Ocorre que guardas civis não são — porque não devem mesmo ser — policiais”, explica o relator, que segue analisando o alcance do artigo 144 da CF e do artigo 241 do CPP.
Segundo ponto: o fato de haver um crime permanente legitimaria o ingresso e posterior busca e prisão? Tampouco se pode invocar, explica o relator, o argumento de que “qualquer um do povo” poderia realizar a prisão em flagrante, na medida em que não seria qualquer um do povo que poderia ingressar na casa do réu e realizar a devassa. “Enfim, prender alguém em sequência direta de flagrante visual é uma coisa; investigar crime para encontrá-lo bem quieto, lá onde ele acontecia atrás de um pneu, é outra. Se nós, homens do direito, não soubermos a diferença, então ninguém mais saberá. O tema aqui, não é se o crime existia ou não. Muito menos se era permanente ou não. O tema, no caso, é como esse crime veio à luz.” O tema é a licitude ou ilicitude da prova, que, no caso, é ilícita. Diante disso, como a prova foi considerada ilícita e também a dela derivada, o acusado foi absolvido nos termos do artigo 386, II do CPP.
No fundo, agentes públicos que exercem funções que não são as suas absolvem potenciais culpados.
Como sempre dissemos, é preciso respeitar as regras do jogo sem que isso signifique impunidade, todo o oposto. Situações assim comprovam nossa tese de que não é o respeito ao devido processo o responsável por eventual “impunidade”, senão o atropelo dessas regras, patrocinados pelo próprio Estado e seus agentes.
[1] No capolavoro Problemas Juridicos y Politicos del Proceso Penal, Bosch, Barcelona, 1935.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. O mantra do crime permanente entoado para legitimar ilegalidades nos flagrantes criminais. Publicado na coluna “Limite Penal”, no site www.conjur.com.br. Acesso em: 31/7/2014).
[3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 15ª edição. Editora Saraiva, 2018, p. 514 e ss.
[4] Citada por HINOJOSA SEGOVIA, op. cit., p. 75-76.
[5] APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. BUSCA DOMICILIAR ILEGAL. NULIDADE DA APREENSÃO. PROVA REMANESCENTE. INSUFICIÊNCIA.
I. Nulidade por violação de direito constitucional. Inexiste previsão legal de busca domiciliar mediante o mero e suposto consentimento do proprietário, já que a anuência, quando de fato há, é evidentemente dada sob constrangimento. Ingresso não autorizado judicialmente, quando as investigações poderiam facilmente ter conduzido à representação por mandado de busca e apreensão. Pela clara violação ao artigo 5º, IX, da Constituição Federal, deverá ser decretada nula a apreensão dos objetos na residência do réu, remanescendo apenas a apreensão decorrente da busca pessoal e as provas dela derivadas.
II. Tráfico de Entorpecentes. Não há provas da atividade de traficância. A investigação procedida pela Polícia Civil conta apenas com fotografias em nada comprometedoras, pessoas não identificadas e imputações pouco detalhadas. Em juízo, nada consta além do depoimento dos policiais e da negativa do réu. Impositiva a absolvição (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 3ª CCrim, Rel. Des. Diógenes V. Hassan Ribeiro. Ap. n. 70058172628. Porto Alegre, 15 de maio de 2014).
Aury Lopes Jr. é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).
Notas
1 A matéria de Aury Lopes e Alexandre Morais da Rosa foi originalmente publica em: https://www.conjur.com.br/2018-ago-10/limite-penal-agente-publico-faz-nao-causa-impunidade
2 Esse texto tem o selo 005-2018 do Observatório do Judiciário.
3 O convite para participar e a apresentação do Observatório do Judiciário está em: https://jornalistaslivres.org/observatorio-do-judiciario-convidamos-voce-para-participar/