Por Larissa Gould e Sergio Silva (fotos) para Jornalistas Livres
O primeiro dia de uma ocupação vista por dentro
A saída para a ocupação foi tranquila. A equipe de reportagem partiu, por volta das 22h30, acompanhando Roberto, liderança da FLM incumbida de coordenar a ação no prédio da José Bonifácio, 380, na região central de São Paulo.
Fomos em um grupo de cerca de 30 pessoas, entre moradores, jornalistas e a chamada linha de frente — grupo encarregado de viabilizar a entrada no prédio — seguimos caminhando até a concentração, na José Bonifácio 137. As ações estavam programadas para acontecer ao mesmo tempo, à meia noite.
No interior da concentração — uma ocupação que resiste há mais de dois anos e que ainda não foi regularizada — homens, mulheres, jovens, idosos e crianças, aguardavam as coordenadas para ocupar o prédio na mesma rua.
O grupo é divididos entre base, os futuros moradores da nova ocupação, e apoio, moradores de outras ocupações já estabelecidas que ajudam na ação. Rosa, moradora do Hotel Cambridge, faz parte da equipe de apoio. Ela tem 25 anos e sofre de artrite reumática, entrou para o movimento em 2009, na época estava com a saúde muito debilitada e passava por dificuldades financeiras. “Depois que a gente conhece a luta não tem como sair”.
O alvo daquela noite foi um prédio da década de 70’, propriedade da Moinho Curitibano S/A , composto por 8 pavimentos e subsolo, divididos em 3 lojas e 7 salões. Penhorado pela Companhia Internacional de Seguros em 2008, por R$732.868,90, o edifício estava em estado de abandono. “Nós damos função social aos prédios” declarou Carmem diversas vezes durante a ação.
A presença de viaturas policiais no caminho atrasou a saída. Após ronda pelo local, cerca de 200 pessoas saíram por volta da meia noite e vinte e se encontraram com outras equipes, que aguardavam nas demais concentrações. Todos caminharam até o alvo. Quatro Policiais Militares se encontravam na esquina da José Bonifácio com a Rua do Ouvidor, na exata localização de um dos dois prédios que seriam ocupados naquela rua, como descobrimos posteriormente.
Tão logo a multidão passou, os policiais pediram reforços. Rapidamente chegaram três viaturas até o local. Nesse primeiro momento, somente observaram.
Observaram a equipe de linha de frente, um grupo de homens munidos de ferramentas abrirem o portão trancado.
Também nós observamos o trabalho daqueles homens. O trabalho e a coragem (ou necessidade, como mais tarde algum deles relataram), observamos quando dois seguranças privados saíram da janela do prédio armados ameaçando atirar em qualquer um que entrasse.
Eles entraram, e eram muitos. O suficiente para que os seguranças recuassem e saíssem pela porta dos fundos. Nesse momento se deu a primeira comemoração, entre 50 e 100 pessoas entraram, de acordo com o cálculo das lideranças e da equipe de linha de frente. Dois repórteres dos #JornalistasLivres conseguiram entrar. Passava da meia noite e meia.
Foi nesse momento que os policiais abandonaram seu papel de observador e interviram. Como a força repressora do Estado, interviram como são treinados para reagir a essas ações: jogaram bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral nos ocupantes. Nos homens, mulheres, jovens, idosos e crianças.
A correria foi geral. D. Sônia, uma senhora de 62 anos, foi atingida por estilhaços de bomba e caiu. Ela estava lá para ajudar o filho que seria um dos moradores do prédio. Outros ocupantes também foram feridos com estilhaços. Muitos, principalmente as crianças, passaram mal após terem inalado o gás.
Policiais no alto da ladeira, ocupantes no final. Restou aos dois esperarem. “Eles vão querer nos vencer pelo cansaço, mas nós não vamos sair até todos entrarem”, afirmaram Juliana, Denise e Josenira, moradoras da Rio Branco, 53. Já perderam a conta das ocupações que participaram. Vai fazer quatro anos que entraram para o movimento e fazem questão se estar na equipe de apoio.
Lá dentro, os ocupantes esticavam a bandeira da CMP — Central dos Movimentos Populares, e da FLM, Frente de Luta por Moradia. Concentrados no quarto andar, escutaram do lado de fora o barulho das bombas e sofreram os efeitos do gás lacrimogênio. Muitos passaram mal. Também a eles restou aguardar.
Há uma da manhã, o Samu chegou para prestar socorro à D. Sonia. “Tá sangrando muito moça? Me acertaram bem do lado do rosto que eu tenho problema da gengiva e ia operar”. Ela foi levada para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Jaciel faz parte da linha de frente. Explicou que quando abrem os portões, parte do grupo entra para hastear a bandeira e organizar a ocupação, e outra fica na porta para garantir que o maior número de pessoas possíveis entre. Ele integrou a segunda equipe e não conseguiu entrar. Um grupo de 100 pessoas também não.
Policiais e ocupantes estavam receosos, repórter do #JornalistasLivres tentou entrevistar os agentes do estado que se recusaram. Mas relatou ouvi-los conversar “Se esse pessoal resolve subir, estamos perdidos”. Também ouviu uma importante informação, as bombas haviam acabado.
Nessa madrugada, dezenas de alvos foram ocupados. Não sabemos se os reforços não chegaram, ou se sequer foram pedidos. Mas, por volta da 1h30, os policiais foram embora. Nesse momento o grupo que estava de fora entrou. Subiram as escadas correndo e foram ocupando os andares. A legislação defere que, se a reintegração não for feita nas primeiras 48h, somente poderá acontecer por meio de ação judicial.
Por isso, a regra é clara: quem entrou não saí. Os primeiros dois dias são os mais tensos paras as famílias que ocupam as moradias.
Elcivaldo Moraes, 44, era empresário bem de vida, após sofrer um golpe, perdeu tudo. Em 2003 passou a morar em albergues e a trabalhar de “chapa”, carregando e descarregando caminhões. Entrou para o movimento há oito meses, foi apresentado à FLM por um amigo morador de uma das ocupações. Desde então, mora de favor na casa dele e frequenta todas as reuniões da equipe de base. Estava na linha de frente na hora que ocuparam o prédio. Sentiu medo? “Não senti, a necessidade e principalmente a vontade superam o medo”. Para ele, é muito importante respeitar os policiais: “são trabalhadores como nós e temos que traze-los para o nosso lado. Se conseguirmos uma boa ação, sem enfrentamento, quem sabe eles não criam um sentimento por nós?”.
E qual a importância dessa moradia para você? “Nesse momento é tudo. Se fosse diferente, se fossa descartável, para que correr esse risco? Para que todo esse perigo?”
Lindomar Geremias, 33, mora há 5 anos em albergues e casas de acolhimento. Foi trazido ao movimento por Moraes, quem conheceu nas escadarias da Sé. “Uma história engraçada” lembra Moraes, “estava esperando um amigo, quando ele sentou do meu lado e começou a dividir o salgadinho que ele comia comigo”.
Nasceu em Carapicuíba, após participar de um roubo, foi para a Febem. Quando saiu, morou em Campinas, na casa da irmã, voltou para Carapicuíba na casa do pai, mas a difícil relação com a família o levou à primeira casa de acolhimento, nas proximidades da Av. Cruzeiro do Sul, Zona Norte de São Paulo. Passou por 5 no total, umas melhores e outras piores. Lindomar trabalha como pedreiro e ficou muito feliz com o movimento por “ter me deixado fazer parte e ter me deixado participar da ocupação”. Não teve medo, a felicidade e a perspectiva de melhora eram maiores. Agora quer constituir família: “já está na hora, não dá mais para ficar solteiro”, brinca.
Os andares já estavam quase todos ocupados. O casal Marcia, 37, e Antônio Pedro, 32, estavam sentados no saguão de entrada. Já haviam se instalado e observavam o movimento. Os dois estão juntos há um ano. Eles estavam em situação de rua e trabalham entregando panfletos. Se conheceram nas ruas do centro, costumavam dormir na região da Sé. Ela potiguar, ele maranhense. Ela há dois anos na rua, ele há quatro. Em comum: o sonho de melhores condições de vida e trabalho na capital paulista.
Conheceram o movimento por meio de uma amiga de Marcia, participaram de uma reunião logo antes da ação e passaram a integrar o movimento. Sentiram medo no momento da ocupação, mas se quer pensaram e hesitar. “Estamos muito felizes, é uma nova oportunidade. Já sofremos muito nas ruas, é muito frio lá”.
Por volta das duas e meia começaram a lacrar o prédio. A situação era calma. Na rua, uma equipe de retaguarda ficou para garantir alimentos e água durante as 48h de resistência.
Os policiais voltaram, mas somente observavam. Era o momento dos repórteres da grande mídia interviram: Globo, Record e SBT passaram pelo local.
Portas lacradas, ação terminada. Prédios ocupados. Ou não.
Na manhã dessa segunda-feira (13), de acordo com relatos do morador Diego, um motorista chamado Galego, um homem de terno, um mecânico e mais 11 motoristas sem nenhuma identificação, se apresentaram como funcionários do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TER). O grupo alegou que o prédio está alugado pelo TRE, e que já estava sendo usado para estacionamento de 11 veículos. De acordo com relato, entraram na ocupação um motorista e o mecânico, avaliaram os motores e saíram sem dizer para onde levariam. Dos 11 veículos, três carros estavam em condições normais de uso, porém, o restante estava completamente coberto de pó, aparentemente abandonados, como o restante do prédio.
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Veja:
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