O bolsonarismo consiste em um grupo social e, de modo indireto, em um movimento identitário. Alguns de seus aspectos mais marcantes são exatamente aqueles atribuídos por Freud, em 1921, a certas massas desorganizadas. Quase um século atrás, o autor escreveu sua obra intitulada Psicologia das Massas e Análise do Eu. Nesta obra, considerou uma massa como resultante de seus vínculos afetivos, isto é, das identificações entre seus membros comuns e da idealização do líder pelos mencionados membros. Deste modo, o bolsonarismo seria concebível não como a massa constituída pelos eleitores de Bolsonaro, indistintamente; mas, sim, menos amplamente, como a massa constituída pelos seus apoiadores irrestritos, os quais o idealizaram e se comportam como seus liderados, membros comuns de sua massa.
Freud concluiu que as duas modalidades de vínculo afetivo resultantes na massa – a idealização e a identificação – ocasionariam coordenadamente aos membros comuns da massa a redução de suas iniciativas próprias. A idealização do líder por estes últimos, sozinha, resultaria na inibição de suas disposições críticas àquele. Neste contexto, o membro comum aguardaria ansiosamente pelo discurso do líder, o qual orientaria seus pensamentos, ocasionaria seus sentimentos e o mobilizaria em certos sentidos. Declarada a Pandemia do COVID-19, ansiosos pelas orientações do Presidente em um momento de angústia coletiva, seus seguidores acríticos se acalentaram enormemente ao escutarem algumas de suas mentiras, tais como a sua consideração da COVID-19 como uma “gripezinha” e a sua consideração dos posicionamentos oficiais de sérias instituições internacionais de saúde como uma “histeria”. Alguns destes seguidores, consequentemente, despreocupados pelo Presidente, aumentaram o seu risco de infecção pelo vírus – e, assim, também o risco dos demais.
De outro lado, Freud considerou que o discurso do líder, enquanto a massa existisse, seria necessariamente concebido como verdadeiro pelos seus membros. Até mesmo suas contradições internas seriam relativizadas por estes últimos. Inclusive, muito comumente, estes se empenhariam no intuito de explicar tais contradições aos seus opositores, utilizando-se de artifícios teóricos os quais eles mesmos considerariam como ridículos em um outro momento, anterior ao de sua integração à massa. Contudo, em massas tais como a bolsonarista, embora o líder comumente mantenha inalterados certos aspectos de seu enredo conspiracionista e os maiores alvos de suas ofensivas, altera conteúdos expressivos de seu discurso em acordo com mudanças situacionais, no intuito da viabilização de seus interesses. E os membros, então, são compelidos à elaboração de novos artifícios – elaboração esta, motivada pela explicação das alterações discursivas.
Além disso, nesse contexto de idealização, a qual consiste em uma modalidade de apaixonamento, muitos agem de modo masoquista em sua relação com o líder. Muito comumente, nesse sentido, se submetem euforicamente a situações às quais não se submeteriam prazerosamente em outros momentos. Movidos pelos ideais da massa corporificados no líder, assumiriam riscos acriticamente caso seu líder os relativizasse.
Por outro lado, apesar deste masoquismo e embora concebam o discurso do líder como necessariamente verdadeiro, até mesmo a sua idealização poderia encontrar limites, cessando sob certas condições. Os vínculos afetivos estão sujeitos à dissolução, mesmo esta tendendo a ser evitada inconscientemente. Freud considerou que, em cada massa, independentemente de seu nível de organização, os membros comuns manteriam, ainda que de modo inconsciente, a convicção – ilusória – de que são igualmente e justamente amados pelo seu líder. Caso esta convicção cessasse, cessaria também a idealização e a massa se desagregaria.
Obviamente, enamorados pelo líder, os membros da massa tenderiam à manutenção imaginária desta ilusão. Entretanto, se a intensidade dos motivos inconscientes relacionados com esta idealização não se mantiver suficiente à manutenção da convicção no amor recíproco do líder pela massa, a dissolução desta última será iminente. Deste modo, se certos ideais estabelecidos socialmente e instrumentalizados pelo Presidente, tais como o antipetismo e o anticomunismo, não mais reverberassem como antes em certos bolsonaristas – vindo a ser menos intensos do que suas percepções de que o Presidente não amaria a sua massa –, adviria certo arrependimento destes de tê-lo apoiado irrestritamente.
Em dezembro de 2019, meses antes da declaração de Pandemia pela OMS (ocorrida em 11 de março deste ano), aproximadamente 29%[1] do eleitorado brasileiro ainda apoiava de algum modo Bolsonaro, considerando seu governo como “ótimo” ou “bom”. Contudo, naquele momento, era estimado em 12-14%[2] o percentil do eleitorado enamorado pelo Presidente, constitutivo do bolsonarismo propriamente dito, seus apoiadores irrestritos. Aproximadamente metade dos seus apoiadores o estariam idealizando. Não se divulgaram dados oficiais acerca do contingente de bolsonaristas após a declaração da Pandemia, mas, mais amplamente, se estimou em 15% o número dos eleitores de Bolsonaro os quais declararam arrependimento do seu voto nele em 2018. Além disso, considerando-se as muitas declarações virtuais recentes de arrependimento de ex-bolsonaristas, seria consistente a suposição de que o bolsonarismo está, em alguma medida, se deteriorando.
Certamente, não seria verdadeira a suposição de que o amor a Bolsonaro encontrou amplamente, agora, os seus limites. O bolsonarismo ainda existe e, inclusive, como um núcleo duro de apoiadores irrestritos do Presidente, ideologizados em conformidade com este último, concordantes com seus “valores” – mesmo alguns não o admitindo publicamente. Inclusive, neste sentido, muitos de seus membros novamente, em 25 de março, se acalentaram ao escutar uma vez mais as mesmas mentiras do Presidente, o qual sugeriu o retorno às atividades normais em rede nacional, ignorando recomendações das mais sérias instituições de saúde internacionais acerca da situação pandêmica. Porém, não somente entre alguns de seus seguidores “não apaixonados”, mas também entre alguns dos até então bolsonaristas, as declarações de Bolsonaro soaram indicativas de seu desprezo à massa. Neles, o desprazer ocasionado por estas declarações superou a intensidade dos motivos relacionados com a idealização daquele. A angústia atual destes ex-bolsonaristas indicaria o rompimento com seu líder.
Nos últimos dias, Bolsonaro, atentando abertamente contra a saúde pública, em troca da manutenção do apoio de certos setores do Capital (um de seus grupos de apoiadores mais importantes), estaria arriscando as vidas mesmo dos seus mais “apaixonados” seguidores – muitos dos quais incluídos em ao menos um grupo de risco, tal como o dos idosos.
A economia deteriorada seria, sim, complicadora da situação relacionada com a Pandemia. Contudo, neste caso, a amenização de uma crise econômica e o combate apropriado à Pandemia – o qual inclui o isolamento horizontal como meio de continência do colapso dos sistemas de saúde – não são mutuamente excludentes, conforme apontam economistas inclusive situados à direita do espectro político, nada comunistas. O enamoramento dos bolsonaristas pelo seu líder, a sua enorme sugestionabilidade pelo mesmo, caso não cesse, aumentará o número de óbitos expressivamente em meio a uma situação que inclui a disseminação de um novo vírus altamente contagioso, as conhecidas limitações do sistema público de saúde e a necessidade de uso deste sistema pela maioria dos brasileiros.
João Torrecillas Sartori é médico no SUS, psicanalista e doutorando em Ciência Política
[1] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/12/20/governo-bolsonaro-tem-aprovacao-de-29percent-e-reprovacao-de-38percent-diz-pesquisa-ibope.ghtml
[2] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/02/nas-crises-bolsonaro-se-orienta-pelas-redes-sociais-para-manter-sua-base-coesa.shtml
3 respostas
Obrigada, João . E parabéns pela iniciativa do artigo . Que venham muitos outros!!!