Revista trata adolescentes como culpados e omite a participação do adulto, suposto mentor do crime
A tática é comum. Usa-se um caso de violência envolvendo adolescentes para estimular a comoção e, então, a partir de uma análise absolutamente limitada e parcial da violência no Brasil, concluir que a única solução é a redução da maioridade penal. É isso que acontece todos os dias nos programas policialescos dos canais abertos. Foi isso que a revista Veja fez em sua última edição. A publicação semanal da editora Abril usa o caso de tortura e estupro de quatro adolescentes no Piauí para praticar, mais uma vez, o populismo midiático em defesa da redução da maioridade penal.
Contra o mal jornalismo, cabe apontar a pobreza de abordagem e construir o jornalismo alternativo e combativo. Mas a revista Veja foi além e desrespeitou as leis do país ao condenar, antecipadamente, os quatro adolescentes acusados de, ao lado de um adulto, terem praticado aquelas violações, conforme aponta o Coletivo Intervozes em artigo na Carta Capital:
“Os jovens que participam do estupro coletivo no Piauí que terminou na morte de uma jovem ficarão, no máximo, três anos internados. Isso é justo?”, diz um trecho da matéria. Em outro, ela indica a pena que o adulto poderá obter caso seja condenado. No caso dos adolescentes, nem sequer essa ponderação é feita. O tiro é direto: “Os quatro adolescentes serão encaminhados a centros de correção, onde ficarão internados por um prazo máximo de três anos e de onde sairão como réus primários”.
A prática constitui clara violação de direito, pois o julgamento não é de responsabilidade da revista e sim do Poder Judiciário, que acompanha o caso com atenção no Piauí e em âmbito nacional. No entanto, ao longo de toda a publicação, os indivíduos envolvidos no caso que ocorreu no estado são tratados não como suspeitos, mas como culpados, inclusive com suposta fama de praticarem atos violentos, embora a fonte de tal acusação não seja citada.
A prática irregular de Veja vai além. Em total desrespeito à legislação brasileira, identifica os adolescentes que podem estar em conflito com a lei, prática proibida pelo Estatuto da Criança do Adolescente (ECA), mesmo que total ou parcialmente — como faz a revista, que usa fotos borradas e iniciais dos nomes dos acusados.
A identificação dos adolescentes também fere a Constituição Federal e pactos internacionais ratificados pelo Brasil, como o Pacto de São José da Costa Rica, segundo aponta o Coletivo Intervozes. Por estes motivos, o Intervozes entrou com representação junto à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo contra a Revista Veja.
No pedido, o coletivo requer que sejam tomadas as providências legais pertinentes à responsabilização da Editora Abril, que edita a revista Veja. A violação de direitos fundamentais — prática recorrente na imprensa brasileira — não pode ser naturalizada.
Além de constranger a revista e exigir um posicionamento da Justiça brasileira, o Intervozes entende que o caso deve ser um chamado para o debate público sobre a total ausência de regulação e controle social da mídia no Brasil.
Até o Papa Francisco já apontou que a mídia deve respeitar as leis e agir de acordo com o interesse público. Em carta à Associação Latino-americana de Direito Penal e Criminologia, o papa Francisco se posicionou contra o aumento dos castigos impostos a quem comete crimes e demonstrou preocupação com o papel dos meios ao afirmar:
“Deles [dos meios de comunicação] depende informar retamente e não contribuir para criar alarme e pânico social quando dão noticias de fatos delitivos. Está em jogo a vida e a dignidade das pessoas que não podem se converterem em casos publicitários, diariamente insulsos e mórbidos, “condenando aos possíveis culpados” ao descrédito social antes de serem julgados ou forçando as vítimas, com fins sensacionalistas, a reviver publicamente a dor sofrida”.
Mas no Brasil falar em controle social dos meios ainda é visto como tentativa de censura porque é assim que apregoam os meios de comunicação, que negam aos cidadãos a possibilidade de debater regulação de meios.
Sobre isso, vale ressaltar a opinião de Frank La Rue, advogado de direitos humanos e ex-relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Liberdade de Opinião e Expressão, quando defendeu a lei de classificação indicativa do Brasil:
“Então eu acredito que temos que ter cuidado naquilo que se configura como censura por que é uma interferência política digamos, absurda ou arbitrária, e com o que é uma regulação que tenha uma formulação correta sobre o uso dos meios para benefício de todos.”
Neste momento, a parcela da sociedade brasileira que defende os direitos humanos, a igualdade e a justiça enfrenta um duro embate para impedir a redução da maioridade penal. A consciência do papel que os meios de comunicação têm nesse processo é fundamental para a vitória e para demais avanços sociais.
Cabe a todos mostrar que regulação da mídia não é censura, mas garantia de liberdade de expressão e de direitos.