No mês da mulher, queremos homenagear todas elas com muito gozo e prazer.
Na segunda parte da nossa série sobre o prazer feminino, vamos explicar um pouco da história do clitóris. Algumas pessoas mal sabem o que é, outras acham ele se resume àquela pequena bolinha rosa acima da vulva. Nada disso! O clitóris mede cerca de 10 centímetros e é o único órgão humano exclusivamente dedicado ao prazer. O mais assustador é que nós levamos anos para descobrir a sua real forma, popularizada em 2016 quando o primeiro projeto de impressão 3D do clitóris foi criado em arquivo aberto para que todxs possam ter o seu, mas o clitóris é conhecido desde o século XVI. Depois de 500 anos de negação e mentiras a respeito do prazer feminino, é hora de falar sobre a nova revolução sexual que essa descoberta pode propiciar a nós, mulheres.
Ei, eu sou o Clitóris 🙂
A primeira pessoa a descobrir o clitóris, em 1559, foi um homem, Matteo Realdo Colombo, professor de anatomia italiano. Nessa época, ele já tinha identificado que o clitóris era o despertador do prazer feminino, e o bichinho também já era bem conhecido e os desenhos científicos e médicos da época o mostravam quase por completo.
Cinco séculos depois, em 1998, foi a vez de uma equipe de pesquisadores australianos coordenada pela doutora Helen O’Connell, da Universidade de Melbourne, revelar a anatomia exata do clitóris com seus bulbos e propriedades. Além da glande, que debaixo do prepúcio é a parte mais visível e sensível (a tal de bolinha), ele também é composto por um corpo, dois pilares e dois bulbos, que formam um duplo arco na entrada da vagina, na altura dos dois lábios externos. Totalmente formado de corpo cavernoso, o mesmo tecido erétil do pênis, ele se enche de sangue quando excitado para produzir a ereção. O clitóris também é um órgão móvel que acompanha os movimentos do pênis durante a penetração. De todos os órgãos, ele é o mais sensível e, como diz a diz a jornalista do New York Times Natalie Angier “há mais terminações nervosas na sua extremidade de que em todos os outros órgãos, inclusive a língua ou o pênis”.
Para ela, enquanto o pênis é uma simples espingarda, o clitóris é uma verdadeira metralhadora!
Fazem mais de vinte anos que o tema voltou a tona, com o protagonismo militante dessas pesquisadoras. Mas como podemos constatar, ainda está longe de ser amplamente conhecido na opinião pública. Hoje qualquer adolescente sabe desenhar um pênis com seus testículos, mas sequer as mulheres sabem como seu próprio clitóris é feito. Entre dogmas e superstições a historia do clitóris é uma verdadeira epopeia. “1998 é exatamente a data de comercialização do Viagra. Ou seja, quando sequer se sabia como era feito um clitóris, os homens já tinham um remédio pronto para tratar seus distúrbios de ereção”, nota Odile Buisson, ginecologista membro da equipe francesa que fez o primeiro ultrassom in vivo do clitóris em 2007. A palestra completa feita na na Universidade Paris-Diderot em 2011 você pode conferir aqui.
Era uma vez, o clitóris…
“Mas então como podemos ter passado de uma época na qual sabia-se tanto sobre o botãozinho rosa para um tal nível zero de informação? O papel da ciência não é de progredir sempre? Não senhora! Quando falamos de prazer feminino tudo se complica sempre”. Esses são os comentários da jornalista Clarence Edgard-Rosa, da revista francesa Causette que publicou em janeiro desse ano um especial integralmente dedicado ao clitóris e da qual tiramos grande parte das nossas fontes.
O ponto central que captou a atenção dos cientistas nos séculos XVI e XVII era a crença de que o clitóris tinha um papel central na procriação. O sexólogo Jean-Claude Piquard (autor do livro ainda não traduzido em português, a Fabulosa historia do clitóris) explica que na época “a estimulação do clitóris é considerada como uma prática importante na cama do casal. Até a Igreja o recomenda aos maridos. Alguns médicos vão até dizer que o orgasmo simultâneo é condição necessária para reprodução”.
Mudança total de cenário no século XVIII. A masturbação feminina passa a ser chamada de “conspiração natalista” ainda segundo Piquard. O prazer feminino, quando ocorre sem penetração vem sendo considerado com forma de contracepção. Casos de excisão terapêutica começam a ser praticados pelos médicos na França e na Alemanha, com a ilusão de conter o que pensava-se podia causar o fim da humanidade.
Na mesma época, o clitóris encontra-se no centro dos tratamentos psicanalistas para curar as pacientes consideradas histéricas. Após ter queimado milhares de bruxas nos séculos anteriores, a histeria se tornou a doença do século para controlar mulheres inconformadas e com supostos comportamentos desviantes. Enquanto alguns psicanalistas preconizavam a ablação do clitóris, outros indicavam cessões de … masturbação! A chegada do orgasmo contribuía a parar as crises e acalmar as pulsões. Piquard conta que essa atividade constituía cerca de 30% do lucro dos psicanalistas, extremamente rentável. A comédia romântica Hysteria da britânica Tanya Wexler (2011) descreve esse contexto histórico que contribuiu para invenção do vibrador por … um médico cansado de masturbar suas pacientes!
Por fim, o que devia acontecer aconteceu: os psicanalistas entenderam que o clitóris não tinha nada a ver com procriação, e o querido clitóris caiu no esquecimento. Segundo a historiadora Aude Fauvel, especialista em sexualidade feminina no instituto universitário de Lausanne, “surgem na época teorias darwinistas especulando que o clitóris era um órgão em desaparecimento na evolução da espécie. Algumas até chegaram a dizer que tratava-se de um vestígio da pré-história”. Tais especulações deram assim embasamento para teorias racistas estipulando que as mulheres negras teriam o clitóris mais desenvolvido porque mais primitivas.
Confira o videoclip de Dorian Electra, “Our music Ode to the clitóris” que relata a historia da opressão masculina sobre o prazer feminino.
Orgasmo clitoridiano versus orgasmo vaginal
No século XX, o clitóris cai em desuso e a única fonte considerada normal de prazer feminino se torna a penetração graça ao célebre psicanalista Sygmund Freud. O pai da psicanalise dizia desde 1905 que o prazer clitoridiano era infantil e que a penetração vaginal era a única forma de se praticar a sexualidade adulta. “Para ele as meninas tinha inveja dos meninos por não ter pênis”, diz a doutora O’Connell. Ele escrevia que “a eliminação da sexualidade clitoridiana é a única condição para desenvolvimento da feminidade adulta”, reporta a revista Causette.
Sendo assim, as mulheres que se masturbam não seriam verdadeiras mulheres, afirmação muito diferente da visão de outras culturas, como a de Ruanda, da África. Tais teorias espalharam universalmente e são à base da frustração de milhões de mulheres que até hoje sentem vergonha ao não “conseguir” chegar ao tão desejado orgasmo vaginal. A ideia que o orgasmo clitoridiano seja algo secundário, menos gostoso ainda prevalece nas mentes femininas e vem sendo veiculado em muitas revistas contemporâneas.
Tais injustiças continuaram vigentes enquanto só os homens tinham legitimidade para falar e teorizar sobre o corpo da mulher. Com a entrada na profissão das primeiras mulheres começa um novo discurso sobre a sexualidade não reprodutiva. Entrada que como se sabe, acompanha-se de muitos preconceitos.
A virada de protagonismo do nosso sininho
Uma das primeiras vozes femininas a ressoar contra a moral masculina foi a da princesa Maria Bonaparte, descendente de Napoleon, que em 1924, após uma pesquisa empírica junto a 200 mulheres contesta o dogma teórico imposto por Freud e recoloca o clitóris no centro do debate em torno do prazer da mulher. Segundo ela a frigidez seria a consequência do extenso afastamento entre o clitóris e vagina (ver o livro ainda não traduzido em português deAlix Lemel, “es 200 clitoris de Marie Bonaparte”(2010)).
A grande revolução chega em 1976 com a cientista social norte americana, Shere Hite que pública seu famoso “relatório Hite: um profundo estudo sobre sexualidade feminina”, que causou grande polêmica na sociedade da época ao ponto de obrigar a pesquisadora a se exilar fora do país. De fato Hite ousou fazer o mais evidente: perguntar às mulheres o que elas sentem durante a penetração. E foi assim que ao mandar questionários para uma amostra de 3000 americanas, através de associações, anúncios em revistas e até paroquias, ela demostra que só 30% das mulheres afirmam ter orgasmos frequentes durante a penetração. Portanto, a maioria delas conhecem o orgasmo clitoridiano. Um cataclismo que revela que falo não seria mais o principal objeto do prazer feminino.
Outra peça chave dessa revolução dos paradigmas, o casal norte americano Virginia Johnson e William Masters, ambos sexólogos que desde os anos 50 deram maior divulgação na sociedade sobre a importância do clitóris na sexualidade feminina. A série “Master of Sex” relata essa historia.
Imagem do vídeo realizado por Marie Docher sobre a impressão 3D do clitóris. Vídeo legendado aqui pela TV Folha.
Muita luta está ainda por vir até que o clitóris chegue ao mesmo patamar que o pênis. Mas grandes ações já foram realizadas. A última foi o trabalho da pesquisadora francesa Odile Fillod que divulga desde 2016 uma modelização 3D do clitóris podendo ser baixada e impressa por qualquer pessoa. O link com arquivo e modus operandi (em francês) está aqui. Com isso ela espera alcançar escolas e projetos educativos e assim, sair do mundo acadêmico.
Segundo a historiadora francesa Stéphanie Wyler , a etimologia do clitóris vem do grego “kleitor”, literalmente “o fechador/lacrador”, nome de um rei de Tessalia, pelo fato dele precisar conter fatos, segredos e poderes. Nada de mais claro: está na hora de rebentar de vez essas correntes! Porém no meio dessa confusão outro pesquisador alemão em 1848, o Dr Georg Ludwig Kobelt, ao pesquisar sobre prazer masculino e feminino, faz um paralelo entre as glandes do clitóris e do pênis e chega à conclusão que o prazer feminino seria mais intenso.
Depois de tanta informação, que tal entrar no clima do nosso prazer? Indicamos o filme “Clitoris, prazer proibido” de Michèle Dominici (2003). Disfrute-se!
Agradecimentos Especiais:
Edwaldo Queiroz, do coletivo Mola, pela gentileza e a dedicação para impressão 3D;
Carlos Cox Costa, pela tradução do vídeoclipe “Ode ao Clitoris”;
Thaina Nogueira e Verilucy Cristine pela contribuição no vídeo “Prazer, Clito!”.